terça-feira, fevereiro 25, 2025

Viagem para o trabalho


Certos acontecimentos deviam trazer um rótulo com a indicação: 'mau augúrio'. A sério, um grande letreiro com sinal de aviso. A vida não vem com instruções e as pessoas não sabem interpretar estas coisas.

Naquele dia fui trabalhar mais tarde duas horas. O comboio daquele horário estava muito mais vazio em comparação com a hora de ponta. Sentei-me tranquilo num banco sozinho. À minha frente estava apenas uma senhora entretida a tricotar. 

Ao contrário dos outros dias, onde estava rodeado de outras criaturas ensonadas, cujo dever laboral obrigava a encher o vagão, pude observar o cenário do trajeto. Vilas, casas, campos, pessoas, foram alvo da minha atenção através do vidro, já debaixo do sol do meio da manhã. Era agradável viajar assim. 

Perto da última estação antes da ponte vi um grupo enorme, com cerca de cem crianças. Pela aparência faziam parte de um jardim de infância. Tinham entre três e cinco anos e vestiam um bibe colorido. Corriam entre brincadeiras despreocupadas num descampado. Algumas mulheres olhavam para elas com aspecto zeloso. Até aqui tudo normal. 

Ao verem o comboio aproximar-se, apressaram-se todas, sem excepção, até à rede protectora onde se fazia a separação entre o descampado e os trilhos. Ergueram o braço no ar com o punho fechado e levantaram o dedo do meio. Fizeram um pirete determinado na nossa direcção!  

"Aquilo é normal"? Questionei para mim mesmo, enquanto o bando de pirralhos mantinha o gesto obsceno. As vigilantes, não só permitiam, como riam da situação pitoresca. A senhora em frente a mim também olhava com alguma incredibilidade. Encolhi os ombros e ela retribuiu a interrogação silenciosa. Devíamos ter as mesmas dúvidas, acredito nisso, embora nos mantivéssemos calados.

Era, com certeza, algo completamente inadequado para crianças daquele idade. No meu tempo era impensável. Nos dias de hoje, com tanta pedagogia sobre educação contra a violência, era ainda mais estranho!

Logo de seguida paramos na estação ao lado. Saíram duas pessoas. A paragem demorou além do costume. Tive vontade de sair e confrontar as vigilantes sobre o porquê de permitirem tal atitude!? Preferi continuar e guardar a dúvida. O arrependimento aumentou quando as portas fecharam, mas já era tarde para sair.

O comboio seguiu a sua marcha. Não tardou até fazer a aproximação à ponte, onde abrandou para fazer a travessia. Ouvi o som das rodas nos carris, com o rio lá em baixo. Já o conhecia, embora fosse diferente com menos ocupantes na carruagem. Era mais liberto, tendo em conta não existir chão para o abafar. Continuava a pensar nas crianças, com a interrogação cada vez mais intensa na minha curiosidade.

Depois, nó escutei um estrondo. Não sei de onde veio. Logo de seguida o inclinar da composição. Gritos de pânico, na aflição de perceber o comboio fora da linha a cair em direcção ao abismo. Os instintos tomaram conta do corpo. Tentei segurar-me enquanto era atirado aos trambolhões pelo vagão. Não reparei em mais nada.

Era suposto o filme da nossa vida passar diante os olhos no momento final. Comigo não foi assim. Pensei nas manchetes da comunicação social. Tiradas sensacionalistas sobre uma tragédia impensável. Os pormenores mais sórdidos chupados até ao tutano. Quantos morreram? Sobreviveu alguém? Qual foi o motivo? As histórias das vítimas a serem exploradas sem dó nem piedade. Os jornalistas a entrevistarem qualquer pessoa disponível a dar opinião. Tudo repetido para lá da exaustão. Seriam certamente alguns dias com assunto suficiente para entreter o país.

Mas o meu derradeiro pensamento, não foi para a família, amigos ou situações. Nada disso. Só me consegui lembrar do diabo da canalha! No arrependimento de não ter saído na estação e perguntar o motivo daquele pirete conjunto direito a mim. Se o tivesse feito estava vivo e a bendizer a sorte. Nem uma coisa, nem outra, levei a curiosidade comigo para o outro mundo. Ainda assim percebi o seu significado paralelo. Um sinal cósmico de 'mau augúrio', o qual não soube identificar. 

Ninguém sabe, acho eu. Estas coisas deviam trazer mesmo um sinal de aviso.


Informação: Este conto é propriedade intelectual de António Silva, no caso do seu conteúdo ser publicado noutros lugares sem os devidos créditos ou autorização, serão tomadas medidas segundo o Código do Direito de Autor.


1 comentário:

" R y k @ r d o " disse...

Uma publicação que merece profunda reflexão. Gostei de ler
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Saudações poéticas
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“” Amar, apenas amar ““
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