segunda-feira, agosto 29, 2022

A superioridade do polegar oponível

Gosto de ver a vizinha estender roupa. Fá-lo com gestos ágeis a denunciar uma mestria natural. Os pequenos pormenores tornam o processo hipnótico. Desde a sacudidela energética nas vestes, sempre acompanhada de um baque abafado, até à forma quase mecânica como coloca as molas na corda. Em pouco tempo fica tudo ao penduro, à espera que sol cumpra a sua função. Há uma pureza cativante em tudo isto.

É uma jovem adulta e mãe recente. Tem cabelo arranjado e usa um vestido fino de Verão que lhe facilita os movimentos despachados com faz a lida da casa. O visual dela é completamente moderno, no entanto, faz-me lembrar as mulheres de outros tempos. Aquelas que lavavam no rio, de lenço na cabeça, avental e saia comprida, como se vê nos grupos etnográficos, ou até mesmo como via a minha avó na labuta caseira.

Tudo completamente fascinante para um curioso do inútil como eu. Observo-a, sem qualquer malicia. Vou reflectindo sobre as suas acções. O porquê de tanto zelo na limpeza da roupa? Do cuidado nos afazeres que a habitação obriga? Isto, ao mesmo tempo que mantem a jovialidade, ao brincar com a criança ou no namoriscar do seu marido. Uma engrenagem fulcral no funcionamento da família, entre a mocidade e a responsabilidade.

Isto é a vontade da génese humana. Matrimonio, emprego, lar. Crescer, trabalhar, dar continuidade à sua linhagem através da prole. A sapiência divide-nos dos animais. Temos as nossas ciências, máquinas, dinheiro e conforto. A superioridade do polegar oponível. Porém, no essencial, será que existem diferenças de maior para com os outros seres com quem dividimos o mundo? Talvez a verdadeira liberdade seja constatar esta verdade.

A vizinha continua a estender a roupa. Os bichos a fazer coisas de bichos. Eu, no refúgio de pensamentos esdrúxulos, tão supérfluos quanto a existência. A realidade é diminuta para quem se alimenta de fantasia. Os cinco sentidos são tão limitados como uma prisão. Sobram as artes para dar continuidade aquilo que falta. A consciência, fertilizada pela inquietude, serve de ventre para a criatividade. Depois, como quem coloca as molas na corda, deixo as palavras ficar ao penduro, à espera de um leitor para servir de sol.