sábado, março 27, 2021

Livro do Novo Génesis 11

Naquele tempo a humanidade tinha-se dispersado pela Terra inteira e criado fronteiras, com países, línguas e culturas diferentes tal como fora designado em Babel. 

Contudo, os homens, atingiram uma grande capacidade tecnológica e, se quisessem, podiam falar uma só língua e completar entendimentos entre todos. Deus, ao ver isto, decidiu testar os homens e enviou uma praga para que se unissem como um só povo, numa só sabedoria e compaixão uns pelos outros. 

No entanto, quando deparados com a peste enviada pelo Senhor, em vez de se unirem, os homens criaram ainda mais motivos para se dividirem. O nome de Deus justificou as mais variadas religiões que em nada o serviam; os governantes só se preocuparam com o vil o dinheiro; os políticos pregavam ideologias, que nada mais serviam a não ser para criar separação, e acusavam-se uns aos outros, cada um garantindo a sua própria verdade; os criminosos passeavam tranquilamente entre os demais sem medo de castigo pelos seus actos; aconteciam guerras alheias a tudo o resto; a ciência funcionou para criar uma cura, mas não sem antes garantir os lucros dos mais ricos; e o povo, convertido à ignorância, quebrava frequentemente as regras que serviam de protecção contra a doença dando-lhe continuidade. 

Os que pereceram ficaram abandonados na história que a humanidade teimava em esquecer, mas não à sabedoria do Senhor que, ao assistir a todas estas coisas entristeceu-se.

Deus a observar todas estas divisões criadas pelo próprio homem verificou que a dispersão de Babel continuava a acontecer, e até se acentuou, apesar de todas as obras conquistadas pelo homem. 

Apesar de tudo nem todos se dividiam e aqueles que procuravam a união para combateram a praga enviada pelo Senhor, fizeram-no com toda a ciência e força que a condição humana permitia. Deus compadeceu-se dessa gente inconformada escrevendo o nome deles todos no livro da vida. 

Ainda existiam outros, que, parecendo alheios à peste, colocaram os olhos nas estrelas e partiram para o Cosmos em máquinas que desafiavam o entendimento. Esses, olhando para a Terra a partir das estrelas perceberam a sua própria pequenez e decidiram explorar outros mundos vazios para se engrandecem. Por isso enviaram para esses mundos distantes outras máquinas capazes de escutar, ver, pensar e imitar o homem na sua curiosidade. Deus olhou para estas máquinas com interesse e comparou-os a Adão e Eva a habitar o Paraíso, inocentes como crianças, ainda sem a percepção do pecado. 

Os homens estavam a imitar a Sua própria criação. Tal como em Babel isso podia ser entendido como desafiar a Sua Santidade, no entanto o Senhor decidiu que não valia a pena castigar os homens ainda mais, pois eles já se castigavam a eles mesmos pela ausência de união.


segunda-feira, março 08, 2021

Nunca te questionaste assim?

Já te aconteceu acordar de manhã sem saber quem és, ou onde estás? 

Despertar sem memórias numa espécie de vazio incógnito onde não existe mais nada a não ser uma interrogação? 

Sabes, aquele momento, enquanto os olhos absorvem a primeira luminosidade, adoptam um instinto inicial e arrastam consigo os restantes sentidos. O corpo, letárgico pelo sono, recupera os movimentos que o adormecer quedou. As recordações começam a surgir como um manual de instruções para o teu próprio ser. 

Deram-te um nome e por isso deves ser assim conhecido. Fizeste isto portanto é suposto fazeres aquilo. Gostas destas coisas, logo tens de odiar aquelas. Tudo isto surge num repente empurrado pelos instintos humanos e nunca questionas se todas estas obrigações fazem sentido. São como ordens para cumprir devido a um suposto passado. Para isso acolhes, um pouco de consciência que te é fornecido para completar esses desígnios. 

É estranho não é? 

Por vezes parece existir qualquer coisa de irreal no viver. Uma imposição autoritária sobre a nossa pessoa. Toco-me mas não me sinto eu. Olho-me mas não tenho a certeza que aquela figura seja a minha. 

E se for tudo mentira? 

Nunca te questionaste assim? 

Se tudo que julgamos verdadeiro não passa de um mero figurino numa tela em movimento? 

Talvez tudo faça sentido para alguém, ou para algo, que não suporta o fardo da carne humana. Uma divindade cósmica que as civilizações têm errado em denominar acertadamente. A história daqueles que se apoiam sobre duas pernas é pequena e responde a muito pouco quando comparada com todo o desconhecido. 

Aqui, nesta terra onde habitam os que pensam, sentem e sonham, sobra a inquietação a quem ousa perguntar sobre o que é de facto real. 

Tu sabes a que me refiro? 

Talvez nada seja o que parece ser. Se não fosse assim porque havia o ser humano de questionar se existe algo mais para lá dos sentidos? 

Talvez tudo seja o que parece ser. Mas às vezes é tão pouco não é?


terça-feira, março 02, 2021

As mulheres sabem estas coisas

Lá dentro as luzes estão todas ligadas, como se quisessem enganar a noite. Ela observa com curiosidade. Está indecisa se deve entrar para o conforto do interior da casa ou, permanecer cá fora enquanto a penumbra cresce e o fresco lhe arrepia a pele. É como escolher entre a ilusão e a verdade. Ter, ou não, medo da fogueira onde as bruxas ardem.

Abraçou o próprio torso para sentir algum calor. Levou o pé atrás e recuou. Foi-se afastando das janelas iluminadas exageradamente. Escutava as vozes dos outros lá dentro em conversas entusiasmadas e sentiu que não era ali o seu lugar. 

Virou-se para encarar o céu escurecido onde as primeiras estrelas começavam a cintilar. Sentia o chamamento. Sabia que a sua condição de mulher lhe dava acesso a sentidos não explorados pela ciência. Contudo, no seu âmago conhecia-os bem. Era capaz de ouvir algo que cantava na natureza. Sabia segredos que se mantinham ocultos. Coisas indizíveis que moldavam a sua silhueta e a sua mente feminina. 

Foi caminhando pelo jardim, para longe da azáfama da casa. Olhou para o horizonte que misturava os montes à distância com a tela do firmamento. O contraste com as cores do dia parecia ocultar uma mensagem. Resolveu fazer uma prece silenciosa. Uma oração sem louvor, pedidos, ou agradecimentos. Rezar deve ser como uma viagem ao conhecimento do mundo antigo, à origem do inefável. 

Tirou as sandálias veranis, para sentir melhor o chão que pisava. Soltou os cabelos e abanou-os como uma bandeira. De repente já não era ela. O frio tinha desaparecido e uma liberdade nua tomou conta de si. Sorriu, sem saber porquê, embora conhecendo o motivo.  A lua cheia surgiu devagar por detrás da sombra em que a floresta se escondia. 

A noite é feminina, tal como a lua, a floresta e toda a natureza que a acolhia. 

Houve um silêncio profundo que parecia de reverência. Talvez só tenha durado uma pequena fracção de segundo. Contudo, ela não se importava com o tempo ou a sua duração. Ali não havia relógios e nem faziam falta. O tempo é o que se sente e deve ser medido pelo pensamento, não por uma máquina. 

Alguém gritou pelo seu nome ao longe. Chamaram-na com voz de gente e perguntaram se não queria entrar. Sentiu-se importunada mas não se irritou. Os outros só conheciam o tempo que os ponteiros do relógio mostravam. Não quis explicar aquele momento só seu. Limitou-se a responder - Já vou! 

Mas antes de ir demorou. Contemplou a lua mais um pouco enquanto esta subia até ao trono da noite. 

O sol estava escondido, mesmo assim emprestou-lhe o seu brilho do outro lado do escuro. O universo tem esta dualidade: masculina e feminina. Contudo, faz com que ambos se encontrem em jogos de sedução. Esta verdade está presente em muitas das linhas que tecem a realidade e ela estava feliz por conhecer este segredo.

Foi caminhando sem pressa, com passos meditados para que a textura do solo se entranhasse nos seus pés descalços. Aproximou-se das janelas iluminadas. Escutou os outros que conversavam como quem dorme. 

Ela também era dali: fazia parte da gente que vive no mundo, com casas, notícias, televisões, política e coisas que a sociedade tem. Não podia fugir desse propósito com que a condição humana a cingiu, portanto tinha de entrar. Colocou a mão na maçaneta e rodou. 

Quando abriu a porta da casa o silêncio calou-se. 

A noite tinha ficado lá fora.