quinta-feira, dezembro 31, 2015

As paragens


Existe um certo prazer poético em observar os barcos que pintam a sua passagem na linha do horizonte, a cruzar o azul do mar na sua aparente lentidão ao olhar. Navios enormes, carregados de contentores, por sua vez cheios de mercadoria, coisas que se vendem e se compram nas nossas prateleiras.
Fazem com que me interrogue: Quem vai lá? Quem são essas pessoas que cruzam os oceanos nessas embarcações cheias de tralha? De onde vêm? Que lugares os acolheram? Para onde vão? Que paragens os esperam? Questões que acompanham essa viagem vagarosa (ainda que cheia de pressa).
Será que estes marinheiros sabem valorizar a sua jornada entre os vários cais do mundo? Ou concentram-se somente no peso do labor que os acompanha no dia-a-dia? Trabalho duro não foi feito para poetas. Suponho que as histórias destes personagens desconhecidos fiquem apenas na sua memória. Talvez um dia sejam partilhadas numa conversa qualquer…
Há uma certa inveja em mim pelos barcos que passam. Quem dera poder viajar como eles, entre o aqui e o ali, sem nunca ter pouso certo. Navegar as águas como um pássaro que voa os céus migrando de conto em conto, sendo personagem em várias peças, interpretando em múltiplos palcos a inquietude que existe em mim.

quinta-feira, dezembro 24, 2015

A lagartixa


O pai natal esgueirou-se pela chaminé abaixo. Ao contrário do que dizem não é um homem gordo. Pelo oposto. A sua anatomia mais se assemelha a uma qualquer espécie de lagartixa esguia, cujo tronco alongado e estreito leva agarrado a si dois pares de membros igualmente ressequidos. A idade, essa, sem dúvida tão avançada que o próprio tempo já se encarregou de a fazer esquecer, é a única verdade acerca do velho das barbas.
O corpo mirrado, de aspecto tão bizarro faz esquecer que um dia carregou a pele da humanidade. Quem sabe se as rugas, animadas pela eternidade, o foram tomando até ao expoente da magreza. Ou melhor. Fizeram evoluir (ou regredir) a sua figura a um ser rastejante e ignóbil que em comum com a ideia que temos da sua aparência não tem nada.
Não tem necessidade de roupas. A sua epiderme enrijecida é o suficiente para garantir o seu conforto. Deixa as vestes e adornos vermelhos para as pessoas. Essas que cuidem dos enfeites e da ilusão das suas feições bem-dispostas.
A sua verdadeira imagem, repugnante, serve somente para assustar as criancinhas, que iludidas com o pançudo das barbas se deleitam com as prendas oferecidas em seu nome. Ainda assim, a pobre criatura vai descendo a chaminé. Rastejando até abaixo para se certificar que todos estão felizes no natal. Assim é!
Os outros. Os infelizes, não importam. Tal como ele. Resta-lhes o esquecimento. A solidão. Ou talvez a sorte traga uma migalha que surge aqui e ali, pela mão de uma qualquer alma caridosa. Assim escrevem-se as boas-festas.
Mais uma casa com abundância. Ainda bem. O pai-natal fica feliz. Com o seu corpo de lagartixa volta a trepar a chaminé. Outras famílias se reúnem e a noite ainda agora começou…