quarta-feira, outubro 25, 2017

O dom da inteligência


Uma mosca pousou na minha cabeça e apanhou boleia nos meus pensamentos. Na sua forma de insecto repugnante e na insignificância da brevidade da sua existência, acompanhou-me numa das minhas viagens sem destino. Não a sacudi. Durante alguns metros serviu de companhia ao palmilhar dos meus sapatos.
Enquanto circulava as ruas e misturava a minha figura com outras gentes nas cores da multidão, ela foi aprendendo sobre a organização dos homens. Mostrou algum interesse nas primeiras impressões, no entanto, logo percebeu que tudo aquilo era demasiado caótico para quem apenas almejava alimentar-se numa gordura qualquer.
A sua riqueza era aquilo que nós entendemos como imundice. Tudo o resto era demasiado complicado e inútil. Os bichos a quem Deus concedeu o dom da inteligência regulavam-se por ideias estranhas, que mais pareciam uma prisão aos olhos de quem pode voar. Por isso abandonou-me e continuou o seu caminho.
Depois de ter ocupado alguns momentos de mim mesmo com aquela companheira minúscula, não deixei de meditar sobre o seu comportamento e comparei-a comigo mesmo. Interroguei-me o que fazia ali no meio de vivências simples, se afinal de contas eu sabia imaginar. Senti um certo asco pela banalidade a que chamamos ordem.
Senti inveja dos artistas, que com o seu instinto criativo conseguem fugir à realidade nas suas obras, sem terem medo de ser apelidados de loucos. Afinal de contas a fronteira entre a loucura e a genialidade é quase imperceptível. A única coisa que as divide possivelmente é o medo. O eterno receio de saltar entre a pequenez e a grandiosidade. Porque no meio está um abismo e a queda pode ser dolorosa, por isso esquecemo-nos que temos asas e podemos voar para lá do que nos define…

sábado, outubro 14, 2017

Conversas que nunca foram


Tenho saudades tuas.
Fazes-me falta porque nunca te conheci. Sei que nunca nos encontramos, não trocamos palavras de amizade, nem tão pouco um mero cumprimento que seja. Muito menos um cruzar de olhares a sugerir cumplicidade.
Nem imaginas como sinto a tua ausência. Dessas conversas que nunca tivemos sobre o significado da vida nas pausas para um café. Dos pores-do-sol em frente ao mar a beber um refresco qualquer e a rir de piadas mundanas.
Inquietam-me as aventuras que nunca vivemos. Loucuras que nunca cometemos. Memórias que ainda não aconteceram. Idealizo a tua presença para atenuar o marasmo que seria se de facto aqui estivesses.
Sabes, tudo que é normal aborrece-me. Por isso me dizem longínquo e não nego esse fardo. Confesso-te esse meu pequeno segredo. De quem não se contenta com o que aqui está, ou quem me rodeia.
Já reparaste na quantidade de barulho que há no mundo? Tolda-me o pensamento tantas vozes a gritarem coisa nenhuma. Falta-me o sossego da minha mente vadia a dançar em versos num silêncio qualquer. Onde não há companhia as respostas tornam-se perfeitas.
Aconchega-me a ideia de existires sem aqui estares. Poder apelidar-te de amigo sem nunca te conhecer. Lamentar a tua inexistência mesmo ficando aliviado que assim seja.
A saudade perfeita é esta, a que se sente do impossível. Poder dizer que se conseguiu o inalcançável no simples desejo de o ter!