quinta-feira, dezembro 26, 2019

A Época das Festas


Gosto particularmente de sair à rua no dia de consoada. Especialmente se o tempo estiver solarengo. Observo com entusiasmo a multidão que palmilha as ruas enfeitadas da cidade. Rostos desconhecidos embrenhados em conversas alegres, timbradas pelos sorrisos entusiasmados e vozes joviais. Aprecio também as roupas entranhadas com tons de vermelho, mais ou menos berrante, a inundar o campo visual. Isto, para que em conjunto com a linguagem corporal, transpareça de imediato um sentimento de animação.
Aqueles que conheço, cumprimentam-me com um efusivo “Bom Natal”. Retribuo-lhes a saudação com ânimo, mesmo que numa quase total ausência de sinceridade. Não porque seja completamente anti festivo, pelo contrário, até porque a alegria contagia e o sorriso que devolvo é verdadeiro por inteiro. Simplesmente não me identifico com a ditadura da felicidade que se impõe na época das Festas, ainda que eu próprio seja cativado por ela. Quanto a mim, agradeço apenas os dias de descanso que, no inverno, sabem bem.
Lá vão eles com sacos na mão, carregados com prendas ou doces, felizes, porque é suposto serem e por isso são. Nada contra, embora prefira manter o meu entusiasmo à parte, no papel de observador. Tenho a minha própria alegria que, embora não seja igual, está em sintonia com a deles. Na rua, entre a multidão colorida e sorridente, sou mais um entre muitos. Confundo-me com os demais e não me importo. Afinal de contas, é bom ver gente com alegria, seja porque motivo for. Não vou condenar o ambiente festivo, pois também eu me sinto em Festa!

domingo, dezembro 22, 2019

Fragmentos da verdade


Mas afinal o que é que os outros sabem do meu mundo e eu do deles?
Julgamo-nos pela moda que seguimos, pelas palavras que repetimos, pelos gestos que fazemos. Será que isto é o suficiente para conhecer alguém? Se estes critérios servem para alguma coisa é para confundir quem avalia. Nada mais!
Eu, como ser dito inteligente, não me mostro pela aparência. Por vezes até repudio aquilo que vejo no espelho. Não me reconheço ali naquela imagem vulgar. Portanto os outros também não o conseguem fazer, ainda que acreditem conseguir.
Talvez haja demasiada complexidade dentro de mim, já que, até hoje, ainda não me encontrei. Não sou uma fórmula que possa ser calculada matematicamente. Aliás tudo o que de grandioso há em mim não é visível, nem palpável, muito menos medível por qualquer ciência.
Tenho um certo orgulho neste meu ânimo incompreensível. Aquilo que sou está cá dentro atrás do olhar. Escondido do observador comum. Até de mim próprio, já que desde que me entendo como gente a única coisa concreta que me pode definir é uma constante mudança!
Quantos de nós podemos dizer que somos os mesmos que éramos há um ano; um mês; ou mesmo ontem? Suponho que ninguém. Mesmo o homem mais básico não é imutável. Cada dia traz algo novo, mesmo que imperceptível à consciência humana. E vamos modificando, cada um com o seu ritmo.
Por isto, aquilo que conhecem de mim é completamente diferente. Varia consoante a visão de quem me indaga. Eu não sou o mesmo para ti, para os meus pais, irmãos, filhos, amigos, colegas, ou para quem se cruza comigo na rua por breves instantes de reparo.
Na realidade, existe, para cada pessoa, uma versão completamente diferente de mim. Única e exclusiva. Criada na mente de cada um à imagem do seu saber. Nenhuma delas verdadeira. Apenas fragmentos da verdade.
Existem, assim, muitos outros “eus” lá fora no mundo. Nenhum deles real!
Sou, portanto, um mistério. Para mim e para os outros.
Assim somos todos.  Insondáveis. No fundo nenhum de nós conhece os demais. Somos inalcançáveis ao saber alheio, pelas nossas próprias limitações, preconceitos e constante metamorfose.

sábado, dezembro 14, 2019

Nas horas da insónia


Bem-vindos às altas horas da noite. Aqui todos somos Poetas. Temos uma fragilidade natural, que nos impele a brincar com as palavras numa tentativa absurda de descrever sentimentos. Vivemos aqui, assim, como se nada mais importasse, além daquilo que nos faz sonhar. O dia já passou há muito. Agora, só a madrugada interessa. A manhã ainda tarda, por isso ignorarmos que ela existe.
Aqui estamos nus, sem pudor, nem vergonha, daquilo que nos é íntimo. Com a nossa pele de vestir atirada para o chão, como roupa usada. Agora somos outros. Uma versão alternativa da nossa figura. Gente que só existe muito depois que o sol se põe e os afazeres terminam. Talvez, até, alguém que amanhã não se entenda assim, porque lá fora tudo dói e há que escudar a consciência.
Portanto, aqui me exponho, na mais profunda das sensibilidades. Enquanto a insónia não me deixa adormecer. Verdadeiro em todas as confissões que se soltam do meu âmago. Pensamentos que lutam para emergir. Anseios que aguardam a sua vez para serem transformados em rimas delicadas. Por vezes só sobram os gestos que buscam outros toques. A conversa intensifica-se no silêncio entre a telepatia da entrega.
Depois, o relógio aparta-nos, insensível ao nosso amar. O sol também quer trazer a sua luz à natureza que o chama. Já nós, temos as nossas regras e vamos. Os horários que impomos a nós mesmos, porque alguém nos disse que era assim. Nós aceitamos e fazemos disso a nossa tormenta. Lamentamos o nosso fado sem nunca o desejar abandonar. Quem sabe porque sem isso, já não havia madrugada, nem poesia, sentimentos ou nudez. E já ninguém nos encontrava…

quinta-feira, dezembro 05, 2019

A submissão


Digo-te a verdade como quem confessa um pecado. Ouves e respondes que compreendes. Além disso, acreditas que é assim que deve ser. Ofereces-te em plenitude, carne, fome e alma, tudo meu. Só me pedes em troca devoção. É tua!
Numa ausência de pudor, concedo-te a honra de querer fazer do teu corpo a tela da minha arte. Pintar a tua pele em tons de vermelho agreste. Riscos pincelados por desejos violentos, proibidos e hereges, ainda assim reais como nós dois.
Escutar, nos teus gritos de agonia, uma composição sinfónica. O estalar implacável do couro a impulsionar sem misericórdia os limites da dor. A tua voz tremida a implorar (falsamente) um pouco de compaixão que sabes eu não ter.
Vais-me provocando e inebriando a cada gemido. Insinuas-te com pedidos de tormenta, enquanto te entregas com submissão ao teu Mestre e Senhor. Mostras-me que és superior ao medo e eu gosto. Quanto mais severo melhor e tu sabes.
Não me acanho em dominar-te. Devoto-me para ti em tudo que sou. Reverencio-te entre as torturas perversas que te administro. Essas, que só tu conheces, nascidas no poço mais negro da minha imaginação. As lágrimas não te quebram e a cada recuperar de fôlego suplicas por mais. Dou-te!
Aceito o desafio. Transformas em jogo o que é perigoso. Já não é luxuria, é guerra! Talvez, quem sabe, até exista ali um profundo acto de amor. Tanto faz. É indiferente. Seja o que for não recuso e retribuo. Inflamam-se os instintos e tem de haver um vencedor. Tu ou eu?