sábado, novembro 30, 2019

Sentido oculto


Amava eu, sem saber, o impossível. Até que o teu corpo apareceu e o confundi com o próprio Cosmos. Perdi-me durante algum tempo nessa ilusão. Não passou muito até que conhecesse as tuas curvas, vielas ou arestas. Transformaste-te numa ausência de novidade. Depois ficou tudo tão aborrecido e não tardou até querer mais mundos a descobrir.
Foste embora. Ainda assim não demorou até que voltasses, com outro rosto, outra voz e outra pele. Desta vez não foi a carne que me cativou. Tinhas lá dentro, atrás da cor, do toque, do aroma e sabor, algo que só um sentido oculto podia conhecer. Chamei-lhe poesia e entreguei-me nas estrofes. Foi lindo até que te começaste a repetir. Deixaste-me viciado e já não chegavas, queria mais de ti.
Mas tu tens muitas aparências e chamei-te continuadamente para te conhecer sem fim. Vieste, sempre sem te copiares. Uma nova viagem desconhecida. Um novo cântico original. Percorri os caminhos, decorei os pormenores e estudei a tua ciência. No entanto, não demorava até seres tédio. Transformavas-te em algo enfadonho, impossível de suportar para a minha inquietude.
Como qualquer adicto, tive noção da minha dependência por ti. Contudo, eu, indigente, admito que não tenho forças, nem desejo de abandonar esta minha degradação. Portanto, continuas a chegar no teu infinito. Tu, nas tuas versões incontáveis, tornas-te tudo que ambiciono. Eu, igual a ti, nos outros tantos de mim. Como um, parte dum todo sem o saber. Acusa-me de desassossego! E eu não nego que amo o impossível!

terça-feira, novembro 26, 2019

Quando uma criança imagina


Quando o pensamento é jovem a sua força pode linear destinos, ainda que, de forma esboçada, ausente de pormenores. Isto porque a juventude é naturalmente desprovida de conhecimento sobre a vivência humana. O futuro pode assim ser traçado, porque um dia uma criança idealizou que assim seria. Como um argumento cru, resumido ao mínimo.
Julgo eu, que esta força, provém exactamente da ignorância infantil face àquilo que a fantasia pode alcançar e que esta seja, de facto, um propulsor para a vontade do Universo. Sem bases científicas que apoiem esta minha avaliação, não me ocorre outra denominação para o poder do pensamento, a não ser magia!
Sem me julgar mago, olho para a minha própria existência e comparo-a com aquilo que um dia a criança que fui imaginou. As aventuras, os amores e as conquistas. Retiro todos os cenários que servem de entulho e resumo-me a sentimentos. Num golpe de ironia eles estão lá, os mesmos que um dia desejei, ofertados pelas leis da vida.
Claro que, com toda a azáfama com que somos confrontados na nossa qualidade de seres humanos, tudo fica confuso. Torna-se inevitável questionar o que nos rodeia, seja material, regras impostas, ou vontades alheias. É fácil esquecer o que queremos, quando não existe a percepção de que, para sentir, há que percorrer um caminho que sirva de aprendizagem.
Há coisas que doem viver e a fantasia morre aos poucos na ambição dos adultos. Dei por mim a cumprir pena de amargura porque, na inocência da criança que fui, cometi o crime de um dia desejar o que não compreendia. Esta conclusão está repleta de ironia, contudo vou tentando encará-la de frente. Não como um herói, mas alguém que assimila as respostas depois de uma revelação.
No fundo, posso dizer que a magia se limita a duas coisas: pensar e sentir. Todo o resto são adornos impostos pela ilusão em que crescemos. Cingindo-me, assim, a esta mera reflexão ao fim da tarde, sem reconhecer qualquer autoridade nas minhas próprias palavras. Quem compreender, compreendeu. Quem discordar, discordou. Pouco mais há a dizer…

domingo, novembro 17, 2019

Afinal de contas


Um porco gigante viu uma cidade ao longe. O ruído que dali advinha chamou-lhe a atenção e aproximou-se entre grunhidos curiosos. Os prédios levantavam-se da terra, diferentes de qualquer rocha ou planta que conhecia. Entre eles, dispersavam pequenas criaturas a guinchar. Não lhes deu grande importância para além do interesse natural que o impeliu até àquele lugar barulhento. (Afinal de contas, o que é que um porco, tenha ele o tamanho que tiver, percebe de construções e vivências humanas?)
As pessoas, essas, dotadas de compreensão, atemorizaram-se pelo tamanho desmedido do animal que se aproximava. Como bichos que também são, submeteram-se aos instintos mais básicos e, possuídos pelo medo, fugiram em corrida desesperada, ao som dos gritos inúteis de socorro escutados por ninguém. Os automóveis, com a sua velocidade, de nada valiam, quando as estradas que os albergavam ficaram obstruídas pela confusão atropelada. (Afinal de contas, o que é que um ser humano pode fazer contra um suíno de proporções monstruosas?)
O porco, que não compreendia aquela organização, baixou o seu focinho e foi derrubando, sem grande resistência, todas as construções que se encontravam no seu caminho. O que não caía com a investida frontal, não resistia ao balançar do seu traseiro. Já debaixo das suas patas, veículos, tijolos, ou carne, eram esmagados de igual forma. O som de crepitação e ranger era, de certa forma, divertido aos ouvidos do animal, que, entretido, lá continuava o seu percurso. (Afinal de contas, um porco, não tem qualquer remorso, ou discernimento entre o bem e o mal, ainda menos manter respeito por leis humanas!)
As pessoas, na sua pequenez, não conseguiam correr o suficiente para escapar à incursão violenta. Se não ficassem esmagadas debaixo do tamanho colossal daquele invasor desastrado, encontravam a sua aflição debaixo dos escombros. Mesmo aqueles que se esquivavam destes destinos, haviam de ser abocanhados pela besta, que com eles saciava a sua fome depois de os mastigar convenientemente. Aqueles que tinham fé, lá se iam confortando nas preces que libertavam. (Afinal de contas, os seres humanos nada podiam fazer contra as surpresas da natureza, a mesma que julgavam conhecer!)
O porco, continuava na sua brincadeira de destruição. Quando algo não cedia à força do seu peso, não hesitava em morder até que caísse. Por vezes cheirava as pequenas criaturas barulhentas e caçava-as com a boca. Triturava-as com os dentes e sentia a sua textura crocante antes de as engolir. Os seus passos prosseguiam devastadores, até que conseguiu arrasar a cidade. Para ele todo aquele cenário fazia muito mais sentido assim, um amontoado de entulho que se confundia com o resto da paisagem natural. Apenas mais um monte de terra, como todos os outros que se avistavam pelo horizonte. (Afinal de contas, um porco, tenha ele o tamanho que tiver, não tem qualquer entendimento pela evolução humana! E porque haveria de ter?)

terça-feira, novembro 05, 2019

A senda dos iguais


Muitas vezes aqueles que são "diferentes" dão por si a serem pressionados por gente básica para se comportarem de forma encaixar-se na sociedade, também ela básica, impregnada de regras e objectivos banais que não servem para mais nada a não ser aprisionar a mente e a vontade.
Uns deixam-se levar por essa gente cheia de vazio e acabam por se deixar absorver como parte do cenário. Depois, tanto fica por dizer…
Contudo, aqueles que se distinguem na multidão conhecem bem o seu valor. Vive neles um instinto de rebeldia. Conhecem bem os adjectivos que os diferenciam dos demais. A sabedoria, a arte, as ideias!
Há um momento em que surge a revolta. A solidão deixa de meter medo! Urge a coragem para enxotar toda essa gente tacanha para longe. Arreda-los para onde pertencem, atrás da cerca que satisfaz o rebanho.
Deixá-los ir na multidão para os seus afazeres. Rostos em grande número. Sem distinção uns dos outros. Mesmo com traços diferentes, a semelhança é dolorosa, tais são os gestos que os prendem uns aos outros na senda dos iguais.
Lá porque são muitos não oferecem novidade. Gente sem fantasia a repreender quem não se conforma! Audácia insultuosa! Que sabem eles do que é diferente?
Nada!
Não podem, nem têm como compreender!
Que continuem, confortados pelo entretenimento que vai surgindo no dia-a-dia como recompensa à sua obediência.
Já nós, aqui deste lado, onde o querer é profundo, temos outros pensares.
Comemoremo-nos! Nós, sozinhos, livres do fardo dessa gente. O Universo encarrega-se de nos trazer outros com o mesmo engenho para servir de companhia. Diferentes, alternativos, ou simplesmente curiosos, porque o mundo é vasto e o saber quer sempre mais!