terça-feira, outubro 27, 2020

Tu que pregas


Vai-te embora!

Não tens fantasia

Não tenho paciência para gente vazia

Sai daqui agora!

Vai-te sem demora!

Não suporto essa voz que me entedia

Não me prometas uma vida mal parida

Tens uma alegria castradora!

És de uma banalidade avassaladora!

Não cheiras a poesia

Não me sabes a companhia

Em raiva açoito-te com uma vara!

E como um bicho escorraço-te daqui para fora!



quinta-feira, outubro 22, 2020

Peças de lego

Por vezes imagino-te como um ser transexual. Dividido em múltiplas identidades, livres de qualquer estereótipo ou preconceito. Corpo desenhado numa aparente confusão assexuada sem pudor, nem o mínimo objectivo de fazer qualquer sentido.

Desmonto-te e remonto-te com novas peças coloridas nos vários tons de pele, partes masculinas e femininas, transgénero. Gordura e magreza; fealdade e beleza; perfeição e grotesco. Acrescento também partes de bichos como nas lendas de outrora. Reinvento-te de todas as maneiras possíveis e imagináveis, como uma criança brinca com lego. 

Suponho que é assim que Deus monta todos os seres humanos, como um brinquedo com peças de encaixar. Imagina, constrói e dá vida à sua história. Nós, variações da mesma personagem reinventada vezes e vezes sem conta. Aparentemente conscientes no comando dos nossos julgamentos. 

Depois, refugio-me a ponderar sobre estes meus pensamentos estranhos e sobre aquilo que verdadeiramente nos define como humanos. Um pedaço de software instalado num hardware. Um robô de carne e osso a tomar decisões estabelecidas pela programação matemática designa o nosso suposto livre arbítrio. 

Recentemente li um estudo que dizia que o cérebro toma as decisões mesmo antes de termos consciência delas. É tão estranho! 

Claro que estas conclusões tiram toda a ideia de romantismo à existência. 

A própria ciência diz que o futuro já passou, nós, simplesmente é que não nos lembramos dele. Isto deixa-me a questionar: porque é que eu tenho compreensão de mim mesmo? Se afinal tudo já está pré-programado e até acontecido. 

Qual é o sentido, para alguém que não passa de um figurante num jogo cósmico, ter noção de si mesmo?

Apesar de tudo gosto de acreditar que nós somos algo grandioso. Tu e eu como um só e tudo o resto como nós. Tão gigantes como o pó e tão pequenos como as estrelas! 

O teu corpo feito de tantos outros, baseado numa única ideia. Todas as bocas vão dar à tua alma pelos caminhos do prazer e da dor. Eu húmido, tu erecta, na mistura dos sentidos para lá do que o corpo dita. Engolidos pelo fascínio daquilo a que chamam amor. 

Encontramos a nossa casa no que é bizarro. Fugimos pelas veredas do impossível e ficamos no mesmo lugar, cingidos à nossa aparência, sem que nada mais importe apesar de tudo importar!


sábado, outubro 17, 2020

Conjugar


Está morto o verbo amar
Calado
Chorado
Faleceu de tanto se entregar
Adormecido
Aniquilado
Até que um beijo o fez ressuscitar
Atraído 
Encantado
Erguido com um breve olhar 
Revivido
Deslumbrado
Conjuga-se o verbo amar
Infinitamente apaixonado
Anuncia por todo o lado
Que ninguém o pode matar 
Nem desmembrado
Ou castrado 
O eterno verbo amar

quarta-feira, outubro 14, 2020

Os outros são um lugar longínquo

As paredes claustrofóbicas, sempre iguais, na mesma cor, no mesmo tamanho, nas mesmas janelas com o cenário imutável, impelem-me para o exterior. O sol brilha, porém, a sua cor não é suficiente para me aquecer com alegria. 

Percorro as ruas vazias de gente e de ânimo. O vento outonal parece manifestar fisicamente a solidão que me atormenta. As árvores teimam ainda em não se despir nem pintar as suas folhas com os tons quentes da estação. Também elas querem combater o calendário e manter a ilusão do verão na sua aparência. 

O calor parece amenizar qualquer tipo de desalento que possa tentar domar o espírito. A existência carente procura algo que a aqueça, seja no clima, no amor, na arte, ou na beleza, ou em tantas outras artimanhas que o ser humano encontra para dar algum sentido à sua vivência. 

A fantasia talvez me alegre se mais nada me cativar. Sei que lá, encontro sempre um refúgio onde a realidade não me alcança com as suas agruras. A criança existe novamente com a sua imaginação como companheira. Voltam as brincadeiras da meninice e os ralhetes dos adultos pouco importam. Quem manda agora sou eu "o grande". Soberano de toda a diversão mesmo que ela não exista. 

A ânsia de não sei quê pede-me um escape para não sei onde. Os outros tornaram-se um lugar longínquo. Abandonaram-me sem amor, causas, ou conformidade. Eu também não os procurei, entendi isso como um alívio ao fardo de ser gente. Contudo, atormenta-me saber que também sou como eles. Criatura embrenhada no sentir.

Toda a poesia que possa escrever não me afasta da herança que recebi da história deles como sociedade e inquieta-me saber que assim devo continuar. Indicam-me sem questionar as regras que devo seguir. É isso, ou o desassossego. Não há meio termo.

Escolhi, portanto, questionar: quem sou? Tal como todos os significados deste mundo. Mesmo em constante tumulto decidi acreditar em mim mesmo e consumir todos os sentimentos. A curiosidade não me deixa sossegar. Desejo o que está longe e só assim me compreendo. Pouco mais importa…