sexta-feira, abril 27, 2018

Valde timete


Correr. Correr com todas as forças.
Fugir. Fugir com todo o pavor a espalhar-se pelas veias e a injectar o coração de adrenalina.
Ofegante. Não importa o cansaço, há que seguir em frente, mais rápido, com todas as forças, não importa como.
Escuridão. Escapar por entre becos, caminhos, trilhos de floresta onde as sombras reinam, para além do esgotamento do corpo.
Importa apenas fugir da figura sinistra que a persegue infindavelmente pela noite. A noite mais sombria que já viu. A noite mais vazia que sentiu. A noite mais solitária de sempre, sem ninguém que oiça os seus gritos de desespero. Sem ninguém que a ajude. Sem um vislumbre de salvação.
Resta correr. Fugir desenfreadamente para salvar a própria vida. Há algo que a persegue. Algo sem nome, ou rosto. Apenas sabe que a deseja como os monstros desejam as vítimas. Sem piedade. Só o sabor do sangue.
Por isso corre. Corre por caminhos que nunca mais terminam. Sem que nunca encontre um lugar seguro. Repetem-se os becos, os atalhos, os trilhos. Tem de seguir em frente sem noção do corpo extenuado.
Apenas existe o terror.
O terror absoluto e a presença daquilo que a perseguia. Não lhe tinha conseguido ver o rosto nem a aparência. Apenas o seu vulto sem constante perseguição, cada vez mais perto. Mais perto. Mais perto. Ainda mais perto.
Um toque nas costas gelou-lhe o corpo. Finalmente alcançou-a. Num derradeiro fôlego soltou um grito a implorar salvação!
Como num acto de caridade os olhos abriram. Tudo que sentiu nesse instante foi o vazio de quem atravessa a ponte entre os delírios da mente e a realidade. Sem o peso da memória.
Sentiu o alívio intenso de acordar de um pesadelo. Teve a graça de um momento de sobriedade para perceber o que se passou. Reconheceu a sua cama e as linhas que traçavam o seu quarto na penumbra. No entanto, não tardou para que a recordação voltasse.
Ainda tremia. A presença já não estava ali, mesmo assim continuava a pulsar na lembrança como uma vertigem. Olhou em volta para ter a certeza de que estava sozinha, enquanto os olhos se habituavam ao escuro. Não convencida acendeu a luz. O silêncio e as cores das paredes deram-lhe alguma tranquilidade.
Só então notou que a cama estava molhada. Durante aquele sonho horrível a bexiga tinha esvaziado. Sentiu-se novamente uma criança assustada na sua tenra idade.
Levantou-se mas as pernas ainda tremiam. Deixou-se cair no chão lentamente, até que se sentou numa posição fetal. Foi tomada por um choro incontrolável, compulsivo, espástico, numa mistura de alívio, medo e vergonha.
Não sabe quanto tempo esteve ali, no frio do soalho, sem amparo. Apenas que, ao terminarem as lágrimas, a leveza entrou em si. Relaxou. Tinha de limpar a cama e a ela própria.
Dirigiu-se ao chuveiro e esperou que a água quente caísse sobre o seu corpo. Era confortável e limpa. Demorou-se para ter a certeza que a pele ficava pura e os músculos descontraiam. Ainda assim, não tardou até que o coração voltasse a palpitar. A sensação maldita de que estava a ser observada voltou quando o fluxo do chuveiro abrandou por um instante.
Imediatamente saiu e enrolou-se na toalha o mais possível. Ninguém estava ali. Era apenas o cérebro a pregar-lhe partidas. Na dúvida percorreu as divisões do apartamento em busca de algo. Nada. Não podia deixar que o seu inconsciente a dominasse. Precisava de acalmar.
A luz que escapava entre as portadas anunciava que o sol já tinha nascido e mais um dia de trabalho se anunciava. Tomou o pequeno-almoço. Vestiu uma roupa colorida e vistosa. Perfumou-se. Tinha de esquecer o pesadelo e para isso queria estar bonita e sorridente. O espelho disse-lhe que sim. Ela ficou contente.
Quando encarou a rua tudo lhe parecia apertado, apesar da largura da avenida. Uma pequena tontura assombrou-a e fez acelerar a respiração. Os rostos que passavam pareciam encará-la mais do que o costume. Não! Não se podia deixar controlar pelos impulsos da mente assustada. Era forte. Na sua coragem avançou entre a multidão em direcção ao emprego. Afinal de contas, o pesadelo já tinha terminado.
Já tiveram aquela intuição terrível de que alguém vos observa? Essa mesmo.
Demasiado forte para ser apenas uma ilusão. Ela olhava para trás continuadamente enquanto o passo se apressava. Todos a observavam. A rua parecia cada vez mais estreita. Era impossível. Percorria aquele trajecto diariamente e conhecia todo aquele espaço com pormenor. Só podia estar a alucinar.
Esbofeteou-se e beliscou-se. Talvez ainda estivesse a sonhar. A dor podia acordá-la. Não. Aquilo era real. As pessoas juntavam-se cada vez em maior número e encaravam-na com malícia no rosto. A calçada apertava cada vez mais. Sentia a claustrofobia a crescer. Aquilo não podia ser verdade! Mas era!
Começou a correr. Com todas as forças, como no pesadelo. Desta vez não havia noite, nem trilhos, nem floresta, apenas um muro feito de gente que tentava impedir a sua fuga. Lutou para abrir caminho. Gesticulou para escapar das mãos que a tentavam agarrar. Gritava sem que ninguém a tentasse socorrer.
Finalmente houve um toque, diferente dos outros. Um toque igual ao do sonho, que lhe gelou a espinha, o corpo e a vontade. As pernas não lhe obedeciam. Soltou mais um grito a implorar salvação! Desta vez não acordou. Não teve essa felicidade. A vertigem foi demasiado forte e tropeçou. Caiu indefesa a implorar misericórdia.
O piso áspero da calçada parecia ter vida própria e impedia-a de se levantar, como se a puxasse para baixo. Ainda assim encontrou forças para lutar. A figura sombria, que a escolheu como vítima, estava agora sobre ela. Conseguiu-lhe desferir alguns murros e arranhões, embora sem sucesso. Era forte demais.
Segurou-a com os braços abertos no chão frio sem que ela tivesse hipótese de se debater. Não havia mais nada que pudesse fazer a não ser desistir. Estava vencida. Deixou-se levar pelo terror, no entanto, desta vez conseguiu ver perfeitamente o rosto do seu perseguidor. Numa fúria derradeira, encarou-o de frente, olhos nos olhos! Era o rosto de ninguém...

quinta-feira, abril 19, 2018

Entre a multidão de condenados


O homem acordou. O dia estava cinzento, tal como todos os outros quando se cumpre uma pena de prisão. Era assim a sua sentença, penosa e injusta.
Sem saber qual o crime que cometera, nem tão pouco o direito de se defender, fecharam-no numa cela de carne e osso. Um qualquer juiz celestial decretou que assim seria. Condenado à solidão e ignorância da humanidade.
Tem acatado o seu mandato cabisbaixo e submisso. Sofrido as amarguras da clausura com a mansidão de quem procura purgar as suas faltas sendo culpado (mesmo sem o saber). No entanto, na sua essência, uma revolta cresce. Traz consigo uma ânsia por justiça e liberdade.
Olha-se no espelho mas o reflexo não lhe diz quem é. Repete o seu nome mas tudo que sente é alheio. A única coisa verdadeira são as lágrimas de mágoa que verte sem que ninguém o escute.
Saiu para a rua e misturou-se na multidão de condenados. Amaldiçoou os que se riam e os que pregavam felicidade. Tudo era mentira.
Foi no meio desses que, levou as mãos ao rosto, e num acto de desespero enterrou as unhas entre a pele. Numa força sobre-humana, cravou-as como formões entre o crânio, os olhos e a área nasal. Estilhaçou os ossos, que ao ceder lançaram um som crepitante, dividindo a face a meio.
Os outros. Os que nada sabiam. Pararam horrorizados pela cena a que apelidaram grotesca. Olhavam assustados, no mais absoluto terror, ao presenciar o acto de suposta loucura.
Forçava os dedos cada vez mais até que finalmente toda a cara rasgou verticalmente. Foi então que começou a puxar para cada um dos lados, enquanto o sangue que escorria pintava a sua cor.
Da sua boca soltava-se um grito de pleno desespero. Talvez fosse a dor dos nervos em agonia; ou talvez fosse a alma em êxtase por conseguir a evasão.
Quando finalmente toda a cabeça se rompeu o brado calou-se. O corpo, desprovido de alento que o sustentasse, caiu no chão. Uma poça carmesim foi crescendo até reclamar a sua glória.
Sobrou o silêncio.
Depois, sem mais detalhes a acrescentar, para aqueles que ousem perguntar, surge a questão: A pena estava cumprida?

sábado, abril 14, 2018

Sem linguagem para me traduzir


O Universo apontou-me a sina de pertencer a uma subespécie humana. Sem direito a etnia ou raça. Nem sequer uma denominação alternativa de quem não se encaixa no modelo padrão da sociedade.
Sou, portanto, insignificante.
Suponho que talvez tenha algo a oferecer. Sem saber o quê, nem tão pouco quem o queira. Tenho como maior desgraça, a suprema infelicidade de não me conhecer intimamente. Ou melhor, a noção penosa de que isso não acontece, já que os demais estão adormecidos, sem sentir a dor na alma de quem não se sabe.
No entanto, não busco explicações para a minha criação. Procuro sim, perguntas. As respostas, essas, deixo-as para aqueles que se brilham como sábios. Apesar de tudo, ainda existe quem procure decifrar os segredos que nos fazem ser humanos no meio do impossível. A esses não os conheço. Com alguma pena minha. Quem sabe não me soubessem interpretar?
Creio que também não me queira solucionar. Mesmo que os pudesse ter como estudiosos do meu pensamento, não os aceitava. Era capaz de largar o rumo perdido que sigo. Apelido-me longínquo, sem linguagem igual para me traduzir. Apenas isso. Em mim há silêncio. Seja ele de desgosto, inercia, ou simples vazio.
O mundo parece tão estranho, com as suas vozes a declamar verdades, para quem as deseje receber como tal, ou para quem as queira odiar. Tudo se torna bizarro, sem uma essência neutra para os que desejam estar calados e simplesmente ser. Ficar aparte deixa de ser raro e declara-se permanente. Sozinho. Ausente. Distante. Inalcançável.
No fundo, sou um lugar sem mapa em que os sentimentos se despem. Onde, numa réstia de esperança, ou loucura, mora o sonho.