segunda-feira, abril 26, 2021

Prazer exclusivo

Vi uma mosca varejeira generosamente gorda pousada em cima de uma flor no jardim. Parecia que a sua "boca" saboreava alguma parte viscosa que compunha a cor amarela da dita flor. 

Tomado pela preguiça e pela minha posição sentada, desejei ser como um daqueles lagartos, que conseguem atirar a língua para longe para poderem capturar a sua presa. 

O universo, com toda a sua imaginação criativa, não quis que os seres humanos tivessem esse dote natural. No entanto ali estava eu descontraidamente no jardim com vontade de comer uma mosca apetitosamente gorda.

Afinal de contas qual será o sabor de uma mosca? E porque haveria eu de a querer comer se não faz parte da minha dieta? 

Acredito que fazia mais sentido se quisesse comer a flor. Mas não sei porquê pareceu-me que tinha um sabor azedo. Nunca me lembro de ter comido uma flor, talvez o tenha feito na minha meninice e o meu cérebro retenha essa memória no meu subconsciente. 

Existiam outras varejeiras pousadas em outras flores espalhadas pelo jardim. Mas essas não me cativaram. Só aquela. Talvez fosse o seu brilho esverdeado que me chamasse a atenção, embora, provavelmente fosse apenas por estar diretamente de frente para o meu campo visual. 

Não tendo uma língua extensível de lagarto, portanto, deixei a mosca continuar pousada sobre a flor a fazer o que as moscas fazem pousadas nas flores. 

No entanto a curiosidade continuou focada no inseto e lamentei que não falasse português, ou qualquer outra língua de gente. Acredito que uma conversa entre um humano preguiçoso e uma mosca gorda pousada sobre uma flor trouxesse algumas revelações sobre os mistérios da existência. 

Contudo, talvez não existam mistérios nenhuns. Cada bicho tem o seu prazer, exclusivo da espécie a que pertence. Eu com a minha preguiça, a mosca com a sua flor, o mundo a fazer sentido para alguém que o compreenda. 

O pensamento é estranho e isso é lindo. Vai por caminhos impossíveis onde o corpo não chega com a sua limitação tridimensional. Basta saber que é assim. Mas será que é mesmo assim?


quinta-feira, abril 22, 2021

Vitória suja

Gente contra mim? Eles que venham! 

Não sou difícil de encontrar no meio da multidão. Não sobressaio entre os demais, não sou como eles cheios me moda. Não tenho nada que seja digno de referência. Basta procurarem o mais distraído. 

Essa gente, se querem batalhar, que venham. 

De vez em quando também é preciso andar à porrada senão uma pessoa fica mole. Só precisam de sentir o cheiro a miséria humana. Se conseguirem atravessar o pântano que eu sou, talvez me consigam vencer. Convém que não tragam roupa muito clara, pode ganhar uma mancha ou outra por causa do terreno enlameado e depois parece mal.

Não me declaro imbatível. Pelo contrário. Até devo cair ao chão com facilidade. Então, se me apanharem pelas costas mais fácil se torna. 

Que venham por trás de mim, atolados no lodaçal imundo. Tenham atenção para não se rasgarem nos espetos dos silvais. Se só conhecem perfumes, não se preocupem, o nariz vai-se habituando aos odores nauseabundos que se estendem por quilómetros nunca contados. 

Que venham pela mansinha para que não os oiça. 

Contudo, quase nunca querem vir. Mesmo a convite e de guarda baixa. Se a lonjura não os demover, certamente a profundidade da lama vai engoli-los até às profundezas do desespero. Eles não querem vitórias sujas. Desejam coisas fáceis que fiquem bem nas palavras aborrecidas dos discursos. 

De vez em quando lá aparecem alguns, que na brutalidade vinda dum instinto qualquer lá me conseguem bater com golpes violentos de um ego sem força. Nesse caso dou-lhes a honra de me levarem de vencida. Gritarem, para que o mundo inteiro oiça, uma vitória grandiosa contra nada!