quinta-feira, fevereiro 20, 2020

A distância (O Narrador XIII)


Eu sei que estás longe. Tão distante que para te reencontrar teria de te conhecer novamente. Parece estranho, eu que já estive dentro de ti, já fui parte integrante dos teus pensamentos, já passeei pelos teus sonhos, colhi as tuas lágrimas e fiz delas poesia. Já te vi em cacos despedaçados, aos gritos dentro do teu peito, com a aflição de quem esconde a dor atrás do sorriso. Já te encontrei na felicidade do verão, de olhar perdido na paz do azul do mar, com o calor na pele a aquecer também a alma.
É estranho. Parece que foi quase noutra vida. Não te parece?
Isto tem tanto de bom, quanto de melancólico. Para que um sentimento destes possa existir teve de haver mudanças em ambos. Não somos os mesmos. Crescemos juntos com as mágoas e as alegrias. No entanto tudo ficou esquecido, como quem guarda os velhos desenhos de infância e os reencontra mais tarde sem neles se reconhecer.
Vejo-te a caminhar junto à natureza, alegre com os cheiros e as cores da floresta que espera a primavera chegar em breve. Sorris. Mas já não sei ler o que está lá escrito. Talvez seja mesmo felicidade (espero bem que sim) ou então o bom velho esconderijo para todas as tuas mágoas. Não sei. Sinto a dúvida mas não a curiosidade. Compreendes?
Acredito que sim. Afinal de contas a essência não muda assim tão drasticamente com o passar do tempo. Mais que não seja deve haver a lembrança daquilo que um dia nos tornou unidos em sentimentos agridoces. Daí surgiu a compreensão mútua. Quase natural. Como uma legenda perfeita para a nossa imperfeição. Narrador e protagonista.
No fundo nunca soubemos realmente quem somos. Filhos da fantasia, ou do sofrimento... Se bem que acredito que as duas coisas estão intimamente ligadas. Como uma chama que precisa de combustível. Diria que somos assim.
Fixo-me na tua silhueta. Por algum motivo já não interessas. Mesmo assim não consigo deixar de pensar em ti. No teu íntimo. No teu mundo interior cheio de ruínas cobertas pela cor da vegetação que vai crescendo como quem insiste em vencer qualquer agrura. Sempre me fascinou esse teu mundo. Transformar isso em beleza sempre foi fácil. Quase viciante. Uma espécie de ópio pessoal em que me perdia com deleite. Agora só há distância.
Queria encontrar um poema mas as rimas estão caladas. Queria pintar-te mas a tela não absorve as tintas berrantes. Resta-me um simples traço negro que segue à deriva pelo mar branco em que te tornaste.
Sempre foste um enigma, isso não vai mudar (pelo menos acredito nisso). Sempre fiz questão de manter o mistério que existe em ti. Nunca perguntei directamente qual é a tua dor. Prefiro adivinhar pelos destroços que ficaram para trás. Mas a curiosidade esteve sempre lá. Perguntar era fácil. Demasiado fácil. E eu não te queria assim, Sem uma incógnita que me cativasse. Sempre soubeste disso e fizeste questão de manter essa magia.
Então porque é que hoje estamos tão longe?
Não somos os mesmos, isso é certo. Eu perdi-me facilmente por outras aventuras.  Tu continuaste em busca dos teus sonhos mesmo sem saber onde estão. Julgo que foste descobrindo pelo caminho. Tantas vezes falamos em percorrer caminhos, parece que encontraste o teu e estou feliz por isso.
Sou um narrador e quero mais. É a minha natureza, sabes disso. Sei que não me vais julgar. Nunca me julgaste, nem eu a ti. Mesmo assim éramos como penitência um do outro. Ou prazer! Ou melhor, um refúgio entre as tempestades que nos rodeavam constantemente.
Podia facilmente questionar-te sobre a vida. Assumir a minha ignorância e deixar que me falasses se ainda acreditas no infinito? Se o amor ganhou um corpo? Se a noite perdeu o medo? Se a solidão te deixou adormecer?
Prefiro não o fazer. Não por orgulho, mas para manter o mistério vivo. A crescer. À espera de outro encontro. Sei que vai acontecer, é inevitável. Ambos sabemos disso. Se fosse agora era vazio e nós não queremos isso. Não nos alimentamos de sentimentos banais. Queremos o que está acima de todo o possível. Onde a fúria se mistura com a paz. Onde o caos encontra uma ciência no nosso nome. Não nos contentamos com menos que isso, mendigos da poesia de fim de tarde de verão!
Deixa-me sentir mais um pouco de inquietude em frente à tua imagem nostálgica. Não vou adivinhar-te agora. Não quero. Deixo-te a minha presença, ou melhor, a nossa presença, já que juntos somos outra coisa qualquer para além de nós.
Já me repito em frases quase sem lógica. Torno-me enfadonho ao tentar descrever algo tão nosso. Não me lembro de ser assim tão ridículo. Tem uma certa piada. Talvez faça parte da mudança e seja tema de uma próxima conversa. Quem sabe assumas tu a narração. Algo diferente para variar. Acho que no fundo aprendeste a língua que me traduz. Nunca a pronunciaste, mas tenho a certeza que a quero ouvir pela tua voz. Na simplicidade de quem se perde para se encontrar...

quinta-feira, fevereiro 06, 2020

Eles


Gente cadáver.
Passeiam pela terra a consumir os louvores que pertencem aos vivos. Lá estão eles, em cima de palanques, a fazer discursos com palavras caras e vozes animadas. Recebem aplausos e são idolatrados por figuras vazias tal como eles.
Outros estão cá em baixo. Abusam da liberdade que têm porque não sabem o quanto custa merecer esse direito. Cospem, esmurram e pontapeiam o bom-senso. E ai de quem ousar contraria-los. Vitimizam-se sem fim, excluindo qualquer tipo de razão, a não ser a sua própria arrogância. Tanto faz que seja errada, é a que lhes convém e por isso é assim que deve ser.
Vão se multiplicando. Alastram como uma praga e apagam aos poucos o sentido que o mundo tinha. Promovem a falta de instrução, cultura e fantasia. Só desejam o fácil e a inutilidade de uma existência básica. Um parasita tem mais propósito do que gente assim. A evolução está posta em causa por causa do egoísmo de quem não tem olhos para mais nada que não seja a própria ignorância!
Têm votos; têm audiências; têm propaganda; têm leis; têm defensores! Têm, sobretudo, a consciência tranquila! Trocam o justo pelo injusto! Rodeiam-se de labirintos burocráticos, politicamente correctos, cheios de palavras caras. Repudiam veemente qualquer forma de protesto que envolva o mínimo de agressividade: consideram, eles, este comportamento indigno, mesmo vindo de quem foi roubado da sua dignidade!
Deste lado estamos nós. Derrubados pelo nosso cansaço depois de um dia de labuta. A dar uso aos nossos estudos e honestidade, em troca de pequenos fragmentos de vida, que vamos sugando à sociedade como mendigos famintos. Resignados, basta-nos o entretenimento de domingo à noite e o maldizer da segunda-feira. Achamos inútil o protesto,  entorpecidos pela fadiga que nos derruba.
Queremos voar mas as asas não batem. Atrofiaram pela inércia e tentar abri-las torna-se um esforço insuportável. Eles mandam! Não constam das fileiras dos vivos mas mandam! Isto, porque nós obedecemos, apesar da nossa revolta. Somos estúpidos! No sentido mais submisso da palavra. É esta a nossa vergonha…