sábado, dezembro 31, 2022

Entre o já e o talvez


Já esperei que a vida acontecesse, atrás da secretária da rotina.
Já me despistei com violência, à velocidade da ilusão.
Já tentei ser quem não sou, no palco dos outros.
Já julguei ser um poeta, porque escrevi algumas rimas.
Agora, depois de tantos "já", duvido que tenha aprendido alguma coisa para lá de frases feitas.
Já faço a vida acontecer, mas a rotina continua lá.
Já não me despisto, mas continuo a perseguir ilusões.
Já tenho o meu próprio palco, mas ainda não sei quem sou.
Já não acredito que seja poeta, mas cada vez vou escrevendo mais rimas.
Agora, depois de acumular tantos "já", assumo com humildade a minha ignorância. Pretendo continuar a aprender coisas novas, para conseguir crescer um pouco de cada vez. Ser como uma criança a descobrir o mundo, entre sentimentos de admiração.
Vou procurar também momentos de alegria. Descobrir algum tipo de esperança na companhia dos outros. Olhar para lá do horizonte e viver o amor na partilha de sonhos. Depois, volto aqui para escrever sobre isto, como já tantas vezes escrevi. Espero fazê-lo com um sorriso verdadeiro no rosto. É só isto que desejo. 
Talvez seja muito, quando a inquietude é tudo que conheço. 
Talvez seja pouco, quando a minha humanidade me convida a algo maior do que eu próprio. 
Talvez nada disso importe, já que cada um tem o seu caminho a percorrer. 
Hoje só faz sentido ser assim, com expectativas livres e a vontade de conhecer aquilo que de melhor o desconhecido pode dar!

sábado, dezembro 24, 2022

As cores que enganam a noite


O vampiro não compreende o Natal. Tantas luzes coloridas a violar a escuridão da noite. Gente feliz a passear pelas ruas da cidade sem se importarem com o frio. 

Fazem-se embrulhos para as prendas compradas porque assim manda a tradição. Os padres rezam missa em igrejas cada vez mais vazias. Há sempre uma religião que substitui a outra. Há sempre hereges que dizem adorar o Deus menino, para de seguida se vergarem à publicidade do Pai Natal. Hoje quem manda é o paganismo, o consumismo, ou também a política, ou então a alegria de ter companhia. 

Os sem-abrigo ficam invisíveis. Lá vai havendo um olhar mais atento pronto a dispensar uma esmola. Os mendigos apenas querem qualquer coisa quente, algo para o corpo, enganar o estômago e manter a ilusão viva de um amanhã melhor. 

Os solitários, também ninguém os escuta. Ficam escondidos Como se as festas lhes fossem proibidas.

Lá longe, está a guerra. Pobres coitados nos títulos das notícias. Apenas isso. Não há vampiros na guerra. Só pessoas de carne e osso que mal reparam na data. Cada dia que passa é uma vitória, sem Pai Natal com presentes, ou padres com homilias.

O vampiro saiu para caçar e não demorou até encontrar uma presa. Mordeu, como mandam os seus instintos, a veia mais proeminente. Bebeu, mas estava vazio. Precisava de mais. Sentir os sonhos da sua vítima. Contudo no Natal os sonhos são escassos. 

Continuou a procurar. Não tardou até capturar outro humano, bebeu mais uma vez e sabia a nada. Olhou para a cidade. Tinha a consciência de que ali não ia encontrar alimento. Em cada ano que passava a multidão tinha menos vida.

As cores enganam a noite, ludibriam também os sentimentos. O riso do Pai Natal fascina as crianças. Os enfeites mascaram todo o cinzento na paisagem da existência. Sonhadores deixam de o ser. Trocam a sua fantasia por aquela que é vendida.

Esta festa toda é muito confusa para quem só quer simplicidade. Perdido no meio de tantos pedidos, o vampiro lamentou desejar apenas um pouco de amor.