quarta-feira, novembro 29, 2017

A marcha


Então vocês, no alto da vossa perfeição, declararam-me proscrito. Condenado a um existir longínquo, onde os meus gritos calados e a minha imagem disforme não pudessem perturbar a vossa carne imaculada.
Quanto a essa sentença, não a considerei como tal. Pelo contrário! Aceitei-a como uma oferenda e dela retirei o meu esplendor. No vosso superior viver, não tomaram em conta de que aqueles, como eu, expulsos do paraíso onde só mora a beleza e a alegria, aprendem as artes da distância.
Para lá do horizonte do requinte encontra-se a imensidão dos sonhos, onde moram aqueles que observam e aprendem no silêncio. Excluídos das normas ditadas pela voz da tirania a que chamam “ser feliz”.
Nesse longe para onde me escorraçaram, fiz da inquietude o meu trono, da sabedoria a minha coroa e da solidão o meu reino. Ergui-me soberano de mim mesmo sem que os vossos olhares de desprezo me aprisionassem numa pele que não é minha.
Eis que me agiganto diante vós, sem vergonha da minha figura. Orgulhoso! Com luz própria! Ofusco os vossos olhos amedrontados pela altivez da minha presença. Desfaço as vossas verdades nos passos firmes do meu erguer.
Nem um ínfimo de vingança vos darei como atenção. O vosso choro de nada me servirá. Não será mais do que um mero incómodo aos meus ouvidos. As vossas lágrimas não vão trazer qualquer comoção, apenas aumentar o ridículo do vosso ser vazio.
Sois agora aquilo que entendeis por tristeza. A vossa alegria transformou-se em mentira. Os vossos risos manifestam-se como sempre foram, ocos, sem qualquer tipo de cor nem sentimento. Nenhuma história reza em vós. Nenhum brilho que cative.
Na minha inclemência obrigo as vossas cabeças a fitarem o chão em desonra pela vossa nulidade. Não vos concedo a graça de me encararem como iguais. Nem sequer inferiores. Remeto-vos ao pó da terra, entre dejectos e sujidade. Como ratos a mendigar na imundice.
Segue assim a marcha da minha glória, alheio aos escombros da vossa multidão. Tudo isto se pode traduzir em ironia. Ou talvez, indiferença. É difícil adjectivar o que, afinal, não interessa. Assim sendo, depois de toda esta senda, resta-me questionar: afinal de contas, aonde está a vossa perfeição?

quarta-feira, novembro 22, 2017

Como quem sente medo


A névoa que vem do mar foi surgindo lentamente. Aproximou-se quase imperceptível e foi cobrindo devagar o céu azul veranil. Formou-se como um corpo e tomou para si consciência dela própria. O sol, assustado, não ousou enfrentá-la.
Cá em baixo, na terra, aqueles que gozavam o calor foram-se aconchegando a uma qualquer peça de roupa, violados pelo frio húmido que a penumbra trazia no seu manto. A pele arrepiou como quem sente medo. Hoje, a noite, ia chegar cedo…
Fez-se o convite àqueles que estavam alegres a se recolherem ao conforto do lar, como quem lembra o inverno. O relógio ainda marca uma hora não tardia. Mesmo assim, a neblina, essa, declarou-se suprema, acima da sabedoria dos homens.
Pouco mais havia a fazer senão tentar ignorar as sombras no conforto de um refúgio. Quem assumiu a coragem de enfrentar aquele crepúsculo agreste, encontrou apenas apatia. O sentido da vida perdeu-se em pensamentos vazios.
A verdade calada do anoitecer seria vencida pela senda humana. Algures, o chamamento da comodidade e da luz acesa em casa havia de se fazer ouvir. Até lá, o marasmo do silêncio, a penetrar na alma pela carne enregelada, permanecia.

segunda-feira, novembro 06, 2017

Pessoas caladas


Gosto de pessoas caladas. Que seguem os acontecimentos apenas com as cores do olhar, gravando os sons do movimento. Quietas. Sem julgar.
Marcam presença apenas com os seus olhos profundos fixados nas paredes do que os rodeia. Sem profanar aquilo que os outros julgam ser mundo.
Poucos são os que os notam, escondidos algures nas multidões gritantes. Rosto longínquo como quem tenta compreender uma linguagem estrangeira.
Vivem na solidão, como eremitas que se entregam somente ao conhecimento. Ninguém imagina os segredos que escondem atrás da capa da banalidade.
A voz de pouco lhes serve, senão para indicar que lhes sobra uma réstia de humanidade. O que têm a dizer nada interessa aos que lhes servem de camuflagem.
Os seus ensinamentos são como enigmas de compreensão impossível a quem não se importa com os segredos do Universo e lhe basta a própria pele.
Por tudo isto limitam-se apenas a aprender com os que nada sabem além de si, que na sua ignorância e comportamento, expressam lições de infinita sabedoria.
Quando me cruzo com eles, fixo-os de igual para igual sem esboçar uma palavra e deixo-lhes um cumprimento silencioso. Serve de algum consolo saber que afinal não somos únicos…

quarta-feira, novembro 01, 2017

A jornada (O Narrador X)


Não sei bem por onde começar. Talvez pelo início como dizem os clichés. Mas é tudo tão confuso que por vezes se torna complicado saber onde é o princípio da história.
Sabes como é. Tanta coisa a enumerar, tudo misturado na cabeça, sonhos, ideias, amores, desaires, tristezas e euforias. Muitas histórias para contar sem que nenhuma importe verdadeiramente, embora todas mereçam atenção. Na realidade não passa de uma narrativa criada de pequenos momentos sem grande importância. O segredo é saber escolhe-los, pois todos juntos, compõem uma jornada épica!
Há uma nota importante que deve ser levada a sério antes de tudo. Perde-se tempo a pensar no amanhã sem olhar para hoje. A desculpar-se nos “ses” que a vida não nos deu sem olhar para as cartas que se tem na mão. Um erro que todas as pessoas cometem sem perceberem que isso está roubar vontade à alma. Cria-se uma grande expectativa sobre uma grandiosidade qualquer, que vai ocorrer sabe-se lá quando e como. Talvez até aconteça. Mas se assim for vai faltar o êxtase que era suposto irradiar quando foi desejada pela primeira vez. Acho que sabes do que estou a falar.
Regressemos aos pequenos momentos. Às letras que compõem as palavras, que compõem as frases, que compõem os parágrafos, que compõem os capítulos, que compõem o livro dessa tal história sobre uma aventura que levou a uma conquista onde o passado fica calado com vergonha de si próprio. Estou a falar da satisfação que se sente ao soltar o primeiro peido depois de acordar. A euforia que se tem ao chegar o fim-de-semana, ao “foda-se” que se suspira quando o tempo custa a passar. Se isto não te chega podemos avançar para aquela pessoa com quem “flirtastes” num misto de inocência e marotice, ao ódio quase irracional que se sente dos imbecis que se vão cruzando connosco. Coisas banais que se esquivam dos cadernos da memória. Creio que já apanhaste o fio à meada.
Tudo começou por um pensamento. Era assim que todas as histórias deviam começar, em vez do entediante “Era uma vez” que nos ensinavam nos contos de fadas. Alguém pensa sempre alguma coisa antes de tudo começar. Algo fez sentido na mente. Umas quantas peças encaixavam umas nas outras, portanto havia que as juntar como quem monta um puzzle (ou uma peça de mobiliário barato). Seja como for, esse trabalho cabe a quem decidiu tomar para si o papel de herói. Neste caso já sabes que és tu.
A seguir veio a companhia (ou a falta dela). Sabes que as maiores desilusões ocorrem com as pessoas que nos são mais próximas. Nesta história essa regra não é excepção. A mágoa pode moldar o coração humano de forma implacável. Quem ontem pregava as maravilhas da amizade, hoje pode dominar com mestria a lâmina da vingança. Estas palavras são-te familiares com certeza, fazem despertar os teus sentidos de alerta para uma guerra que te forjou na decepção. São estes os ingredientes para a nossa personagem. Nada demasiado original nem nunca antes visto. Apenas alguém que busca justiça e um canto onde se encaixar no caos da existência.
Depois há que escolher um caminho. Tudo que envolve mudança pode ser assustador. Sair do canto em que lançamos raízes é difícil porque não conhecemos o futuro. Por outro lado, é relativamente fácil para quem está de fora a observar, cuja tarefa se resume a um mero aconselhar sem que sintam o peso da cruz em cima dos costados. Dizem eles: Basta olhar em volta, existem vários destinos, não vais por ali ou por acolá porque não queres. No entanto chega a altura em que é preciso firmeza na vontade. Seja por onde for, é necessário tomar a decisão mais malfadada: ir por ali!
Inicia-se assim a jornada. Ou melhor, já iniciaste. Assumiste o protagonismo dessa história a partir do momento em que descobriste que a realidade era insuficiente para a tua vontade. Sabes, todos os que estão destinados a grandes feitos passam por esse momento de descoberta. Aqui é que a narrativa se complica. Ter consciência de que o mundo não basta pode levar à frustração ou à grandiosidade, mas há que ter a noção absoluta de que esta última virtude não se alcança pelo simples facto de estar escrita na nossa sina. Se assim for, é simples cair nos braços da desilusão. Essa conheces tu bem. Tudo porque te concentras apenas na imensidão que mora em ti!
É fácil acontecer, isto porque esqueces que vestes o fardo da humanidade, num mundo feito para humanos, na pele de um corpo humano. Na visão ampla do universo isto parece pouco. Talvez sim, no entanto é tudo que tens e esse é o teu ponto de partida, a tua arma, o teu grande poder!
Sabes, por vezes perco-me em devaneios que mais parecem sair de uma mente embriagada, embora saiba que consiga fazer algum sentido. Deixo-me levar facilmente pelas palavras. Já me conheces. Estive aqui a falar de jornadas, pensamentos, companhia, humanidade e pequenos momentos. Tudo isto para se resumir a uma simples questão: Quem és tu?