quinta-feira, dezembro 26, 2019

A Época das Festas


Gosto particularmente de sair à rua no dia de consoada. Especialmente se o tempo estiver solarengo. Observo com entusiasmo a multidão que palmilha as ruas enfeitadas da cidade. Rostos desconhecidos embrenhados em conversas alegres, timbradas pelos sorrisos entusiasmados e vozes joviais. Aprecio também as roupas entranhadas com tons de vermelho, mais ou menos berrante, a inundar o campo visual. Isto, para que em conjunto com a linguagem corporal, transpareça de imediato um sentimento de animação.
Aqueles que conheço, cumprimentam-me com um efusivo “Bom Natal”. Retribuo-lhes a saudação com ânimo, mesmo que numa quase total ausência de sinceridade. Não porque seja completamente anti festivo, pelo contrário, até porque a alegria contagia e o sorriso que devolvo é verdadeiro por inteiro. Simplesmente não me identifico com a ditadura da felicidade que se impõe na época das Festas, ainda que eu próprio seja cativado por ela. Quanto a mim, agradeço apenas os dias de descanso que, no inverno, sabem bem.
Lá vão eles com sacos na mão, carregados com prendas ou doces, felizes, porque é suposto serem e por isso são. Nada contra, embora prefira manter o meu entusiasmo à parte, no papel de observador. Tenho a minha própria alegria que, embora não seja igual, está em sintonia com a deles. Na rua, entre a multidão colorida e sorridente, sou mais um entre muitos. Confundo-me com os demais e não me importo. Afinal de contas, é bom ver gente com alegria, seja porque motivo for. Não vou condenar o ambiente festivo, pois também eu me sinto em Festa!

domingo, dezembro 22, 2019

Fragmentos da verdade


Mas afinal o que é que os outros sabem do meu mundo e eu do deles?
Julgamo-nos pela moda que seguimos, pelas palavras que repetimos, pelos gestos que fazemos. Será que isto é o suficiente para conhecer alguém? Se estes critérios servem para alguma coisa é para confundir quem avalia. Nada mais!
Eu, como ser dito inteligente, não me mostro pela aparência. Por vezes até repudio aquilo que vejo no espelho. Não me reconheço ali naquela imagem vulgar. Portanto os outros também não o conseguem fazer, ainda que acreditem conseguir.
Talvez haja demasiada complexidade dentro de mim, já que, até hoje, ainda não me encontrei. Não sou uma fórmula que possa ser calculada matematicamente. Aliás tudo o que de grandioso há em mim não é visível, nem palpável, muito menos medível por qualquer ciência.
Tenho um certo orgulho neste meu ânimo incompreensível. Aquilo que sou está cá dentro atrás do olhar. Escondido do observador comum. Até de mim próprio, já que desde que me entendo como gente a única coisa concreta que me pode definir é uma constante mudança!
Quantos de nós podemos dizer que somos os mesmos que éramos há um ano; um mês; ou mesmo ontem? Suponho que ninguém. Mesmo o homem mais básico não é imutável. Cada dia traz algo novo, mesmo que imperceptível à consciência humana. E vamos modificando, cada um com o seu ritmo.
Por isto, aquilo que conhecem de mim é completamente diferente. Varia consoante a visão de quem me indaga. Eu não sou o mesmo para ti, para os meus pais, irmãos, filhos, amigos, colegas, ou para quem se cruza comigo na rua por breves instantes de reparo.
Na realidade, existe, para cada pessoa, uma versão completamente diferente de mim. Única e exclusiva. Criada na mente de cada um à imagem do seu saber. Nenhuma delas verdadeira. Apenas fragmentos da verdade.
Existem, assim, muitos outros “eus” lá fora no mundo. Nenhum deles real!
Sou, portanto, um mistério. Para mim e para os outros.
Assim somos todos.  Insondáveis. No fundo nenhum de nós conhece os demais. Somos inalcançáveis ao saber alheio, pelas nossas próprias limitações, preconceitos e constante metamorfose.

sábado, dezembro 14, 2019

Nas horas da insónia


Bem-vindos às altas horas da noite. Aqui todos somos Poetas. Temos uma fragilidade natural, que nos impele a brincar com as palavras numa tentativa absurda de descrever sentimentos. Vivemos aqui, assim, como se nada mais importasse, além daquilo que nos faz sonhar. O dia já passou há muito. Agora, só a madrugada interessa. A manhã ainda tarda, por isso ignorarmos que ela existe.
Aqui estamos nus, sem pudor, nem vergonha, daquilo que nos é íntimo. Com a nossa pele de vestir atirada para o chão, como roupa usada. Agora somos outros. Uma versão alternativa da nossa figura. Gente que só existe muito depois que o sol se põe e os afazeres terminam. Talvez, até, alguém que amanhã não se entenda assim, porque lá fora tudo dói e há que escudar a consciência.
Portanto, aqui me exponho, na mais profunda das sensibilidades. Enquanto a insónia não me deixa adormecer. Verdadeiro em todas as confissões que se soltam do meu âmago. Pensamentos que lutam para emergir. Anseios que aguardam a sua vez para serem transformados em rimas delicadas. Por vezes só sobram os gestos que buscam outros toques. A conversa intensifica-se no silêncio entre a telepatia da entrega.
Depois, o relógio aparta-nos, insensível ao nosso amar. O sol também quer trazer a sua luz à natureza que o chama. Já nós, temos as nossas regras e vamos. Os horários que impomos a nós mesmos, porque alguém nos disse que era assim. Nós aceitamos e fazemos disso a nossa tormenta. Lamentamos o nosso fado sem nunca o desejar abandonar. Quem sabe porque sem isso, já não havia madrugada, nem poesia, sentimentos ou nudez. E já ninguém nos encontrava…

quinta-feira, dezembro 05, 2019

A submissão


Digo-te a verdade como quem confessa um pecado. Ouves e respondes que compreendes. Além disso, acreditas que é assim que deve ser. Ofereces-te em plenitude, carne, fome e alma, tudo meu. Só me pedes em troca devoção. É tua!
Numa ausência de pudor, concedo-te a honra de querer fazer do teu corpo a tela da minha arte. Pintar a tua pele em tons de vermelho agreste. Riscos pincelados por desejos violentos, proibidos e hereges, ainda assim reais como nós dois.
Escutar, nos teus gritos de agonia, uma composição sinfónica. O estalar implacável do couro a impulsionar sem misericórdia os limites da dor. A tua voz tremida a implorar (falsamente) um pouco de compaixão que sabes eu não ter.
Vais-me provocando e inebriando a cada gemido. Insinuas-te com pedidos de tormenta, enquanto te entregas com submissão ao teu Mestre e Senhor. Mostras-me que és superior ao medo e eu gosto. Quanto mais severo melhor e tu sabes.
Não me acanho em dominar-te. Devoto-me para ti em tudo que sou. Reverencio-te entre as torturas perversas que te administro. Essas, que só tu conheces, nascidas no poço mais negro da minha imaginação. As lágrimas não te quebram e a cada recuperar de fôlego suplicas por mais. Dou-te!
Aceito o desafio. Transformas em jogo o que é perigoso. Já não é luxuria, é guerra! Talvez, quem sabe, até exista ali um profundo acto de amor. Tanto faz. É indiferente. Seja o que for não recuso e retribuo. Inflamam-se os instintos e tem de haver um vencedor. Tu ou eu?

sábado, novembro 30, 2019

Sentido oculto


Amava eu, sem saber, o impossível. Até que o teu corpo apareceu e o confundi com o próprio Cosmos. Perdi-me durante algum tempo nessa ilusão. Não passou muito até que conhecesse as tuas curvas, vielas ou arestas. Transformaste-te numa ausência de novidade. Depois ficou tudo tão aborrecido e não tardou até querer mais mundos a descobrir.
Foste embora. Ainda assim não demorou até que voltasses, com outro rosto, outra voz e outra pele. Desta vez não foi a carne que me cativou. Tinhas lá dentro, atrás da cor, do toque, do aroma e sabor, algo que só um sentido oculto podia conhecer. Chamei-lhe poesia e entreguei-me nas estrofes. Foi lindo até que te começaste a repetir. Deixaste-me viciado e já não chegavas, queria mais de ti.
Mas tu tens muitas aparências e chamei-te continuadamente para te conhecer sem fim. Vieste, sempre sem te copiares. Uma nova viagem desconhecida. Um novo cântico original. Percorri os caminhos, decorei os pormenores e estudei a tua ciência. No entanto, não demorava até seres tédio. Transformavas-te em algo enfadonho, impossível de suportar para a minha inquietude.
Como qualquer adicto, tive noção da minha dependência por ti. Contudo, eu, indigente, admito que não tenho forças, nem desejo de abandonar esta minha degradação. Portanto, continuas a chegar no teu infinito. Tu, nas tuas versões incontáveis, tornas-te tudo que ambiciono. Eu, igual a ti, nos outros tantos de mim. Como um, parte dum todo sem o saber. Acusa-me de desassossego! E eu não nego que amo o impossível!

terça-feira, novembro 26, 2019

Quando uma criança imagina


Quando o pensamento é jovem a sua força pode linear destinos, ainda que, de forma esboçada, ausente de pormenores. Isto porque a juventude é naturalmente desprovida de conhecimento sobre a vivência humana. O futuro pode assim ser traçado, porque um dia uma criança idealizou que assim seria. Como um argumento cru, resumido ao mínimo.
Julgo eu, que esta força, provém exactamente da ignorância infantil face àquilo que a fantasia pode alcançar e que esta seja, de facto, um propulsor para a vontade do Universo. Sem bases científicas que apoiem esta minha avaliação, não me ocorre outra denominação para o poder do pensamento, a não ser magia!
Sem me julgar mago, olho para a minha própria existência e comparo-a com aquilo que um dia a criança que fui imaginou. As aventuras, os amores e as conquistas. Retiro todos os cenários que servem de entulho e resumo-me a sentimentos. Num golpe de ironia eles estão lá, os mesmos que um dia desejei, ofertados pelas leis da vida.
Claro que, com toda a azáfama com que somos confrontados na nossa qualidade de seres humanos, tudo fica confuso. Torna-se inevitável questionar o que nos rodeia, seja material, regras impostas, ou vontades alheias. É fácil esquecer o que queremos, quando não existe a percepção de que, para sentir, há que percorrer um caminho que sirva de aprendizagem.
Há coisas que doem viver e a fantasia morre aos poucos na ambição dos adultos. Dei por mim a cumprir pena de amargura porque, na inocência da criança que fui, cometi o crime de um dia desejar o que não compreendia. Esta conclusão está repleta de ironia, contudo vou tentando encará-la de frente. Não como um herói, mas alguém que assimila as respostas depois de uma revelação.
No fundo, posso dizer que a magia se limita a duas coisas: pensar e sentir. Todo o resto são adornos impostos pela ilusão em que crescemos. Cingindo-me, assim, a esta mera reflexão ao fim da tarde, sem reconhecer qualquer autoridade nas minhas próprias palavras. Quem compreender, compreendeu. Quem discordar, discordou. Pouco mais há a dizer…

domingo, novembro 17, 2019

Afinal de contas


Um porco gigante viu uma cidade ao longe. O ruído que dali advinha chamou-lhe a atenção e aproximou-se entre grunhidos curiosos. Os prédios levantavam-se da terra, diferentes de qualquer rocha ou planta que conhecia. Entre eles, dispersavam pequenas criaturas a guinchar. Não lhes deu grande importância para além do interesse natural que o impeliu até àquele lugar barulhento. (Afinal de contas, o que é que um porco, tenha ele o tamanho que tiver, percebe de construções e vivências humanas?)
As pessoas, essas, dotadas de compreensão, atemorizaram-se pelo tamanho desmedido do animal que se aproximava. Como bichos que também são, submeteram-se aos instintos mais básicos e, possuídos pelo medo, fugiram em corrida desesperada, ao som dos gritos inúteis de socorro escutados por ninguém. Os automóveis, com a sua velocidade, de nada valiam, quando as estradas que os albergavam ficaram obstruídas pela confusão atropelada. (Afinal de contas, o que é que um ser humano pode fazer contra um suíno de proporções monstruosas?)
O porco, que não compreendia aquela organização, baixou o seu focinho e foi derrubando, sem grande resistência, todas as construções que se encontravam no seu caminho. O que não caía com a investida frontal, não resistia ao balançar do seu traseiro. Já debaixo das suas patas, veículos, tijolos, ou carne, eram esmagados de igual forma. O som de crepitação e ranger era, de certa forma, divertido aos ouvidos do animal, que, entretido, lá continuava o seu percurso. (Afinal de contas, um porco, não tem qualquer remorso, ou discernimento entre o bem e o mal, ainda menos manter respeito por leis humanas!)
As pessoas, na sua pequenez, não conseguiam correr o suficiente para escapar à incursão violenta. Se não ficassem esmagadas debaixo do tamanho colossal daquele invasor desastrado, encontravam a sua aflição debaixo dos escombros. Mesmo aqueles que se esquivavam destes destinos, haviam de ser abocanhados pela besta, que com eles saciava a sua fome depois de os mastigar convenientemente. Aqueles que tinham fé, lá se iam confortando nas preces que libertavam. (Afinal de contas, os seres humanos nada podiam fazer contra as surpresas da natureza, a mesma que julgavam conhecer!)
O porco, continuava na sua brincadeira de destruição. Quando algo não cedia à força do seu peso, não hesitava em morder até que caísse. Por vezes cheirava as pequenas criaturas barulhentas e caçava-as com a boca. Triturava-as com os dentes e sentia a sua textura crocante antes de as engolir. Os seus passos prosseguiam devastadores, até que conseguiu arrasar a cidade. Para ele todo aquele cenário fazia muito mais sentido assim, um amontoado de entulho que se confundia com o resto da paisagem natural. Apenas mais um monte de terra, como todos os outros que se avistavam pelo horizonte. (Afinal de contas, um porco, tenha ele o tamanho que tiver, não tem qualquer entendimento pela evolução humana! E porque haveria de ter?)

terça-feira, novembro 05, 2019

A senda dos iguais


Muitas vezes aqueles que são "diferentes" dão por si a serem pressionados por gente básica para se comportarem de forma encaixar-se na sociedade, também ela básica, impregnada de regras e objectivos banais que não servem para mais nada a não ser aprisionar a mente e a vontade.
Uns deixam-se levar por essa gente cheia de vazio e acabam por se deixar absorver como parte do cenário. Depois, tanto fica por dizer…
Contudo, aqueles que se distinguem na multidão conhecem bem o seu valor. Vive neles um instinto de rebeldia. Conhecem bem os adjectivos que os diferenciam dos demais. A sabedoria, a arte, as ideias!
Há um momento em que surge a revolta. A solidão deixa de meter medo! Urge a coragem para enxotar toda essa gente tacanha para longe. Arreda-los para onde pertencem, atrás da cerca que satisfaz o rebanho.
Deixá-los ir na multidão para os seus afazeres. Rostos em grande número. Sem distinção uns dos outros. Mesmo com traços diferentes, a semelhança é dolorosa, tais são os gestos que os prendem uns aos outros na senda dos iguais.
Lá porque são muitos não oferecem novidade. Gente sem fantasia a repreender quem não se conforma! Audácia insultuosa! Que sabem eles do que é diferente?
Nada!
Não podem, nem têm como compreender!
Que continuem, confortados pelo entretenimento que vai surgindo no dia-a-dia como recompensa à sua obediência.
Já nós, aqui deste lado, onde o querer é profundo, temos outros pensares.
Comemoremo-nos! Nós, sozinhos, livres do fardo dessa gente. O Universo encarrega-se de nos trazer outros com o mesmo engenho para servir de companhia. Diferentes, alternativos, ou simplesmente curiosos, porque o mundo é vasto e o saber quer sempre mais!

quarta-feira, outubro 30, 2019

Prece sem destino concreto


Rezei a um Deus desconhecido. Aqueles que já conheço, têm tanto de humano que até dói, tornando inútil qualquer crença no seu nome.
Deixei que as minhas palavras, impulsionadas pelo pensamento, atravessassem as estrelas até aos confins do cosmos. Muito para lá do que a imaginação pode sonhar, ou que a ciência encontrar. Tinha esperança, de que nesse recanto impossível, resida uma entidade, real ou não, acima de todas as outras, que me possa escutar com a caridade benevolente que as divindades prometem a um simples homem como eu, na senda do dia-a-dia.
Em dias como este, em que a pequenez se agiganta e as forças são ridículas ante a vontade soberana do Universo, peço um conforto ou uma ponta de alegria. Nada de impossível a quem determina os desígnios do inefável. Somente um toque de generosidade sem mendigar em demasia.
O martírio da sabedoria, que se apresenta disfarçado de bênção, é um fardo pesado de carregar nas alturas em que a solidão se mostra vazia. Quando assim é, urge descobrir coisas novas. Nem que seja numa prece sem destino concreto.
A resposta que aguardava veio com a própria questão. O desconhecido manifesta-se numa procura incessante com ânsia inquieta. Nada mais há a desejar, a não ser isto: gnose e poesia, onde os sentimentos dançam nas diferentes interpretações de quem, na sua inocência, ou loucura, os tenta descrever sob a forma de linguagem.

domingo, outubro 13, 2019

Tu!


Tu metes nojo!
A merda que defecas tem mais valor do que a tua própria pessoa! Pois a merda pode estrumar um terreno agrícola e torna-lo fértil, enquanto tu, de nada serves ao mundo. Sem ideias, fantasia, ou produtividade. Não passas de um amontoado de carne, com uma espécie de sistema operativo básico, que vive de instintos naturais e ignorância pura.
Não agradeces o dom da sabedoria, nem abraças a possibilidade de a ter. És, em toda a tua pequenez, o sinónimo absoluto da palavra nojo!
O melhor que podias oferecer aos teus supostamente iguais, os mesmos que sofrem a limitação da humanidade, era seres extirpado desse rótulo. Perder o nome, esquecer o legado, não gerares qualquer descendência. Que a tua voz seja calada, as acções desprezadas, na mais verdadeira repugnância pela tua existência enfadonha.
Melhor seria se fosses desmembrado. O teu corpo mutilado atirado como um refugo para cima de uma pilha de esterco, para que apodreças por fora, tal como és por dentro!
E porque me dás asco, as palavras que te digo já vão em demasia. Mais do que isto, só um silêncio invisível te pode salvar, embora a salvação seja uma misericórdia amplamente exagerada a quem não merece a existência, seja carnal ou social. A concepção do teu viver foi um momento maldito, sem amor. Cuspo-te em cima. Pontapeio-te sem piedade. Toda a tortura e humilhação que te possa dar é pouca!
Tudo isto já ultrapassou qualquer valor que mereças. Por isso, nada mais direi sobre ti, a não ser: Tu metes nojo!

quarta-feira, outubro 02, 2019

Os velhos passos rotineiros


Hoje voltei ao passado mas o que encontrei não me satisfez. A cor das paredes estava gasta, desbotada, sem ânimo. Os rostos estavam diferentes do que me lembrava, ao mesmo tempo iguais e não acrescentavam nada àquilo que já me haviam dado. Olharam-me apáticos, como quem conhece, contudo não se entusiasme. As vozes eram velhas, a repetir as máximas de sempre, nas frases ocas e cansadas.
Busquei um espaço que me pudesse acolher por uns momentos, como quem se tenta entreter enquanto espera. As portas que abri estavam silenciosas e vazias, sem novidade ou abrigo. O que havia a dizer tinha sido dito. O que havia a fazer tinha sido feito. A importância era fútil quando medida pelos olhos do pensamento. São assim todas as coisas que não podem ser compreendidas pela razão. Sem importar a explicação lógica. Somente o sentimento.
Ainda assim fiquei um pouco, por curiosidade ou respeito, ou, quem sabe, numa réstia de esperança de encontrar algo novo que me tenha escapado naquele caminho. Procurei, sem sorte, naquele local que parecia ter encolhido face às recordações. Os corredores encurtaram, as divisões mingaram, os corpos seguiam os velhos passos rotineiros. Sentia assim porque, talvez, já conhecesse tudo que seria suposto. Era óbvio que já não pertencia ali.
Não me arrependi da visita apesar de já nada ter para aprender. O tempo que percorri não é um lugar, apenas uma memória que me moldou. Curvei-me em consideração àquilo que de mim passou naquele momento e saí mais cedo. Não adiantava esperar por uma conclusão que já conhecia. Retomei o meu caminho. Voltei para agora, onde eu me esperava, como um mestre aguarda o aprendiz, orgulhoso dos seus feitos.

domingo, setembro 29, 2019

Preso ao nome que me deram


Quando era pequeno não sentia frio nem calor. Fossem os dias tórridos ou gélidos. Tudo que queria era brincar! A energia começava de manhã e só terminava à noite, onde, por força dos adultos, tinha de ir dormir, sem ter noção de que estava cansado. Por isso adormecia tão rápido, na exaustão da qual não tinha consciência. Aproveitava, no entanto, esse tempo, para fantasiar com as aventuras do dia seguinte.
Nessa altura, que sabia eu de corações partidos? Não imaginava que a mágoa podia doer tanto cá dentro, onde não se sente!
Do peso do trabalho? Diziam-me que era fácil ser alguém na vida, só tinha de estudar e fazer coisas importantes, como se fosse fácil!
Da melancolia? A tristeza era somente algo que sentia quando ouvia um ralhete ou sofria um castigo. Mal sabia eu que se podia entranhar na pele do existir!
Do amor? Escolher um outro alguém era simples, uma carinha laroca, proveniente de boas famílias e, estava feito. Ninguém me avisou que afinal amar tinha regras que não se compreendem!
Do infinito? O Universo era apenas um sítio onde podia viajar de nave entre os planetas da minha imaginação. Na ignorância infantil, acertei apenas que o cosmos servia para sonhar!
Na verdade, os “grandes”, que me educavam como havia de comportar um dia, nada sabiam do que me ensinavam. Unicamente tentavam plantar, na criança que eu era, uma semente de esperança sobre aquilo que eles julgavam ser viver. Pobres tolos néscios, que nunca encontraram um destino, nem percebiam que a sabedoria não se aprendia na escola, ou que a grandiosidade estava noutra coisa qualquer. Como podiam discursar a felicidade, se nunca, eles próprios, foram felizes?
Cresci assim, sem orientação verdadeira, a apanhar pancada da vida e a descansar as costas entre as vergastadas que iam e vinham de todos os lados, sem misericórdia, nem aviso. Fui calejando o espírito face aos tormentos e descobri que as regras estudadas eram falsas. Busquei então os meus próprios professores e instrui-me o mais que pude sobre as artes humanas. Conheci venenos, armadilhas, truques e, acima de tudo, tomei consciência que ainda tenho muito a aprender.
Estou aqui, tal como tu, viajante, entre o perdido e o encontrado. Preso ao nome que me deram, embora livre na percepção que conquistei. A riqueza tem para mim outros sinónimos, agora que a carne geme ao fim do dia, fatigada e dorida sem o vigor da meninice. A rotina, que chegou de mansinho e ocupou o seu lugar, vai roubando algum ânimo, ainda que, nunca me faça desmoronar. A simplicidade com que me seduziram desapareceu. Já não existem ilusões.
Apesar de tudo encontro algum orgulho por ter preservado a essência fantasiosa daqueles tempos. O rosto que me encara no espelho ainda apresenta traços de rebeldia e o olhar mostra ânsia de aventura. Há uma fome de conhecimento que se exalta do meu ser. Gestos irrequietos que me classificam de indomável. Ninguém me pode acusar de ter sido tomado pelo vazio, porque, no meio do desalento, ainda sei sonhar!

terça-feira, setembro 24, 2019

Lūna lūcet


Olhei para a Lua cheia e esqueci-me de todos os meus amores.
Erguia-se luminosa e soberana acima da escuridão profunda da noite. As estrelas recolhiam-se como que em submissão à Rainha do firmamento. Havia nela um feitiço, quase erógeno, que me impelia a contemplar o seu brilho hipnótico. Uma presença feminina, superior a toda a beleza, que nenhuma mulher podia ousar rivalizar.
Não existia toque, mas senti a sua carícia como quem partilhava o desejo com uma amante impossível. Entreguei-me ao erotismo poético de quem revela um segredo na hora do prazer. Houve um arrepio de silêncio sussurrado ao ouvido das trevas que me completam. Apresentei-me assim, com a alma despida de qualquer sol. Ofertei a minha ignorância virgem ao enigma da génese e sonhei.
Quando compreendi a ausência de sentido dos mistérios indizíveis do Universo, amei a liberdade como nunca tinha feito antes. Afinal, ser livre é ser parte de um todo, cósmico e infinito. O entendimento limita-se a si próprio na forma humana e aceitei isso como um dom. Algo na minha pequenez é imenso, tal como na origem de tudo que foi concebido pela sabedoria da criação.
Depois, o êxtase dissipou, entre o cansaço, o deleite e o sono. Tal como esvanecem todos os devaneios nas profundezas do esquecimento. A noite manteve-se iluminada, mas a magia calou-se. A Lua continuou cheia na sua imponência e foi amar outros que a admiravam, porque o amor é livre na sua incompreensão e todos devem provar o seu sabor, antes que chegue a madrugada…

quarta-feira, setembro 18, 2019

Pensamento alado


Vi uma multidão incontável. Era igual a um mar, em que as cabeças se perdiam como gotas. Não lhe encontrava fim, nem início. Na minha curiosidade aproximei-me. Reparei que alguns tentavam, em vão, procurar uma saída sem nunca o conseguirem. Empurravam, desesperados, os seus pares, para tentar seguir uma direcção que levava a lado nenhum. Ainda assim, iam lutando com todas as forças para se esgueirar entre os corpos com esperança de se libertarem.
Outros, limitavam-se a ficar quietos, numa espera continua. Trocavam palavras com os companheiros do lado em conversas banais. Os restantes nada faziam. Mantinham o rosto inexpressivo, como que resignados a aguardar por algo que não compreendem, sempre no mesmo lugar e posição. Aceitavam conformados aquilo que eram. Nada mais sabiam do que isso.
Eu, estava acima de todos. Não consegui perceber se me encontrava num local elevado, ou numa plataforma, ou mesmo até, se conseguia voar sobre todo aquele oceano de gente. Olhava-os cá em baixo e observava cada face. Interrogava-me que existência singular era aquela que cada um tinha, com a sua própria história pessoal, embora sem nunca me importar realmente com quem eram.
Entendi a minha altivez como uma revelação, embora sem conseguir interpretar o seu significado. Talvez fosse apenas a minha arrogância natural a atribuir essa definição. Ou então, quem sabe, fosse somente uma recompensa pelo meu espírito livre. Poder viajar sobre o pensamento de quem não sabe elevar a fantasia. Não assumi esta posição como um caminho superior, apenas como uma jornada alternativa entre aquela multidão.
Continuei a pairar sem asas, ignorando o motivo de o fazer. Por vezes, encontrava outros como eu. Elevados sem saber como. Cumprimentávamo-nos com um aceno de cabeça, sem a impureza das palavras. Também eles tentavam compreender o seu voo. Juntos na vergonha da nossa própria ignorância. No entanto, reconhecíamos em nós a mesma imaginação e desassossego que nos apartava do mundo.
Naquele silêncio encontramos algum conforto, partilhado por todos nós, sonhadores, a planar sobre o oceano de gente sem rumo. Não havia explicação, somente uma certa liberdade que aparentava ter objectivo. Sem questionar mais nada olhava para baixo, abstraído pelos pensamentos alados e, numa distracção imperdoável, esqueci-me de erguer a cabeça para a imagem acima de mim.
Não sei se era sonho, ou lembrança…

terça-feira, setembro 17, 2019

O infinito do instante


Apaixonei-me subtilmente
Porque tens olhos azul de mar
Porque caminhas devagar
Porque me sorris levemente

Amei-te impulsivamente
No momento a viajar
No momento a navegar
No momento eternamente

Desejei-te para sempre
Até a tua silhueta passar
Até o pensamento divagar
Até o infinito fugir simplesmente

Senti-te imenso somente
Apenas um mistério a chamar
Apenas um enigma a cativar
Apenas um devaneio do instante

Talvez te encontre novamente
Onde um novo olhar se cruzar
Onde um novo pensamento se tocar
Onde um novo enigma me encante

terça-feira, setembro 10, 2019

O Anfitrião


Bem-vindos à minha humilde pocilga! Aqui podeis desfrutar de um imenso lamaçal, onde podem rebolar os vossos corpos devassos na mais perfeita imundice. Os odores desagradáveis, figuras rudes e inclinações naturais que vos definem, não serão alvo de exclusão. Todos aqueles que têm focinho, livres do fardo da humanidade, são aqui bem acolhidos.
Não se preocupem se a vossa aparência enojar os arautos que se dizem limpos. Esta não é a casa deles. Muito menos são bem recebidos aqui. Pelo contrário. Essa gente que idolatra a perfeição, se passar a esta porta, deve ser escorraçada de maneira bruta com vergastadas e impropérios do mais baixo nível. Os mesmos com que nos avaliam.
Gozai como animais sem consciência que sendes. Desnudos e sem regras. Que apenas o instinto vos sirva de guia. A razão, caso a desejeis encontrar, não é por aqui. Vinde sobre patas; a abanar a cauda; a fuçar o chão; a grunhir, zurrar, mugir ou ladrar. Com sibilares e chilreios, pois as palavras dos homens não são conhecidas nestas paragens.
Que as fêmeas se exibam com o cio e os machos as cubram. É assim que a Natureza manda na sua ordem ancestral e é assim que deve ser feito à vista da multidão. Mas nada é proibido. Carne pode desejar outra carne. O pudor está banido. Não há religião nem deuses que castigam. Pecado é um preconceito exibido com orgulho aos olhos dos juízes.
Vós, os excluídos venham também. Entrem tal como os bichos. Tragam a vossa arte, com música, cores, poesia, e profanação. Sois como órfãos, abandonados por quem vos pariu apenas porque amam miragens. Aqui não há desconformidades, nem vozes que repreendem qualquer atitude que se insurja contra o mundo.
Neste chiqueiro mal cheiroso a fantasia é como ouro. A imaginação é divindade. A indisciplina uma obrigação. Não tenham medo de ser quem são. Tolos, génios, ou desajustados. Venham irmãos! Os vossos passos serão bem encaminhados; as vossas bocas amadas; a vossa mente elevada! Entrem sem temor, vós que procurais refúgio, aqui, na morada dos enjeitados!

sábado, setembro 07, 2019

Tão inútil como é suposto ser


Dei por mim a pensar na vida. Não que o pensamento tivesse algum objectivo. Até porque, não se tratava de uma recordação, ideia, ou sequer um planeamento futuro. Apenas fragmentos sem coerência sobre o existir, que se misturavam com os gestos de quem se cruzava comigo na rua pouco movimentada.
Na realidade pouco sei de mim. Sou melhor a observar o comportamento dos outros. Aqueles que não têm nada a ver comigo. Não se trata de julgamentos, mas antes de compreender a existência humana. Se alguma coisa entendo de mim, é pelo que vejo nos demais. Diferenças e semelhanças físicas e sentimentais.
Mesmo assim não sei quem sou. Não posso traçar uma linha que me defina. Algo que faça sentido. Embora, se calhar, não seja suposto fazer. Também não faço questão de me conhecer. Gosto de me surpreender com as minhas próprias atitudes. Deve ser aborrecido para quem não tem nada a descobrir no seu íntimo.
As pessoas são um enigma. Como um puzzle de carne e ideais. Cada qual é único, embora semelhante a todos na rotina humana. São como um indicador de onde eu próprio me posso encaixar, mesmo sem ter vontade de o fazer. Suponho que há sítio para todos, pelo menos há pregões para tudo e mais alguma coisa. A esses não escuto, fazem-me doer os ouvidos e o ânimo.
Há algo imenso em mim, isso eu sei. É estranho este sentimento. Tenho uma certa curiosidade sobre a pessoa que sou. Mesmo sem pressionar os sentimentos a emergir, sei que tenho uma originalidade única na minha essência. Mas dou-lhe tempo de amadurecer. Vou pouco a pouco a revelar-me, a aprender, a mudar e a crescer.
Creio que não tenho sonhos. Pelo menos desses romantizados, que pouco mais são do que uma ilusão e não servem para mais nada a não ser entreter a vontade. Tenho algo diferente que não sei explicar e a grandiosidade dessa diferença talvez esteja mesmo nessa incompreensão. Seja como for, não me sei dizer para além destas palavras.
Isso não significa que não tenha fantasia, pelo contrário, até a tenho em abundância. Não duvido que faz parte da imensidão que referi. Em cada olhar que dou sobre o mundo encontro criatividade. Escondo esta característica debaixo da pele. Também ela vai crescendo comigo e sempre que necessário emerge à superfície do viver para surpresa de tudo o que é banal.
Desejar ser mais do que sou pode ser uma tormenta, ainda que possa também levar a uma certa elevação poética. Agora que falo nisso, a poesia, só por si, devia ser considerada uma ideologia social. Não tenho dúvidas que havia mais ímpeto na vontade de cada um. Vista assim, é somente um aparte a servir de refugio a quem ama o inatingível.
Há um prazer misterioso em vadiar entre emoções. Aqueles que não se conhecem sabem a que me refiro. A fuga constante aos dias iguais. Os sentidos que não satisfazem a calma. A ansiedade que afinal não é. As rimas impossíveis de encaixar na ausência de idioma que as traduza. O caminho que não tem destino porque chegar dói.
O pensamento já vai longo e tardio. Tão inútil como é suposto ser. Na fronteira da imensidão de inquietude que existe perdida dentro de mim. Sem mapa, ou indicações, não sei onde fica. Apenas a oiço cantar o seu chamamento. Vou assim, procurando desassossegado por respostas, como os outros fazem, ocultos pelo silêncio envergonhado que o dia calou.

sábado, agosto 31, 2019

Clint Eastwood


Escrevo-te porque sei que de vez em quando gostas de reler os teus textos passados e recordar o motivo de os teres escrito. As próprias situações que deram origem aos trechos, cada uma tem a sua história e a sua justificação. Por isso, sei que um dia mais tarde vais voltar aqui e vais pensar em quem era eu. Versão passada de ti mesmo. Porque acredito que nessa altura tu já tenhas mudado bastante e sejas outra pessoa. Não direi que sejas muito diferente, mas mudaste o suficiente para afirmar que não és igual a mim.
Há uma certa estranheza ao conversar comigo mesmo. Não sei a data em que vais ler isto e sinceramente não me importa. Basta-me o hoje para saber quem sou. Sobre ti, não sei se ainda manténs aquele visual de cowboy num “western spaghetti”. Não és exactamente o Clint Eastwood embora o teu look desleixado seja interessante. Estou curioso. Um gajo nunca sabe para onde pendem as modas.
Depois há a tua espiritualidade. Essa sim, espero sinceramente que não a percas, porque é das características mais importantes que tens e, aquilo o que te faz destacar verdadeiramente sobre todos os outros. Sei que por vezes a rotina, o trabalho, os encargos e as banalidades da vida te fazem desviar desse caminho. Por esse motivo, de vez em quando, precisas de te lembrar quem és. Alguém com uma visão transcendente muito mais avançada do que um ser humano comum. Neste momento, tiveste uma revelação sobre a energia que faz mexer o universo. No entanto, sobre isso, não comentes com ninguém. A menos que tenham seguido um caminho similar ao teu e estejam mais ou menos no mesmo estágio de evolução em que estás. Sabes bem que essas coisas são facilmente mal interpretadas e por consequência mal utilizadas. Portanto, reserva para ti aquilo que descobriste na busca pela gnose.
Quanto ao resto, espero que tenhas conseguido aprender a socializar melhor. Para perder um pouco a fama de arrogante, pois muitos não compreendem a tua personalidade reservada. Quer queiramos quer não, somos seres sociais e o vício da solidão não te faz muito bem. Nesta altura estou a tentar e tenho conseguido alguns resultados. Desejo que encontres novos amigos nesse processo. Amigos fazem falta lembras-te disso?
Quanto à política, espero que tenhas mantido os teus ideais de justiça e que tenhas dado luta, colocando o teu saber a favor das causas corretas que tens defendido até agora. Não sei como estará a situação no teu momento futuro. Espero que tenha melhorado. Sem discursos mentirosos, nem operações de cosmética para mascarar podridão dessa gente. (Um gajo tem de acreditar numa mudança para melhor…)
Os poderosos do mundo ainda são estúpidos? Já deram cabo do planeta? Já arranjaram desculpas para criar uma guerra? Toda essa ideia assusta-me profundamente, sabes disso. E a pior parte é que aparentemente, um ser humano comum, não pode fazer nada contra…
No fundo, espero que tudo melhore. “Lembra-te sempre do amanhã que vai ser melhor”. Que o teu caminho continue, cheio de aprendizagens, poesia e fantasia. Sei que vais achar piada ao título que dei, uma espécie de piada pessoal. Seja como for, é bem capaz que outros, ao ler estas palavras, se identifiquem. Até porque, nós não somos únicos :)
Porta-te bem e ouve muito rock!

terça-feira, agosto 27, 2019

A compreensão (O Narrador XII)


Sabes quem és? Tens a certeza que sabes mesmo quem és? Ou fazes confusão com aquilo que gostavas de ser? Pois, agora que falo nisso a dúvida faz-te hesitar na resposta. É difícil ter honestidade quando, no fundo, sabes que o teu ser é feito de pedaços remendados com linhas, colas e fitas. Claro que muitas vezes é fácil uma pessoa se enganar a si mesma para alimentar a ilusão de uma existência mais leve. Mas é falso! Tudo falso!
Volto a perguntar quem és? Uma mentira, ou uma verdade dolorosa? Sabes que não te deixo dar uma resposta errada, nem tão pouco argumentar contra. Quanto mais me negas mais razão me dás. Tenho soberania em ti. Sabes que vim não sei de onde, parido por uma ideia incógnita dentro daquilo que entendes por pensamento. Talvez seja até a própria personificação de loucura, ou dor, embora sempre com verdade.
O melhor mesmo, para que me possas dar uma resposta sincera, é voltar aos sonhos de criança. Ainda te lembras deles? Antes que o mundo tenha dilacerado a inocência. Quando tudo era regido pela fantasia. Era bom brincar, não era? Quem querias ser tu nessa altura, lembras-te? A memória está deturpada pelas vivências adultas e amargas, no entanto essa recordação nunca se perde, por mais enterrada que esteja. Surge num repente quando folheias os velhos cadernos da escola, ou assistes a um desenho animado antigo. Ora reflecte um pouco.
É triste abandonar a criança que foste, mas esta não desaparece, pelo menos por completo. Um pouco da sua essência ainda vai acompanhando as tuas desventuras, como um espectador amargurado pela trama. Podes perguntar-lhe, que vais ter uma resposta sem medo por entre um rosto envergonhado. A desilusão é grande ou andas apenas por caminhos mais penosos?
Às vezes o Universo dá-nos aquilo que queremos, embora noutra linguagem diferente da que nos foi ensinada, que não sabemos interpretar. É estranho, mas a aventura que um dia desejamos está a acontecer, noutras palavras que não as nossas, noutros cenários que não são aqueles que imaginamos. Um pouco de silêncio mostra essa verdade. Um pouco de pausa ajuda na revelação. Um pouco de ausência ajuda a voltar à origem.
Se não te lembras de ti em tenra idade, basta observares uma criança qualquer: Que sabem elas da vida? Ainda assim divertem-se a brincar ao que eles julgam ser o amanhã, ludibriados pelas expectativas dos adultos, os mesmos que não viveram as deles. Tu também foste assim, a construir castelos na areia da praia com a ilusão de que ao cresceres tudo vai ser como no Verão, simples despreocupado.
Claro que o crescer é amargo e dizem-nos as regras estabelecidas que viver é muito mais árduo. Mesmo assim, temos de aceitar o facto que a criança que fomos desapareceu? É aqui que me surge uma dúvida repentina: E se for esse mesmo o objectivo? Erradicar por completo a criança que um dia nos sonhou? Afinal de contas se não nos incentivarem a sonhar, qual seria o sentido de ser adulto?
Estou a fazer perguntas a mais e a desviar-me do ponto inicial: Quem és? Não precisas de responder. A tua condição humana faz isso por ti. A sociedade que te acolhe nos seus ideais vazios diz-me tudo o que preciso saber. Não encares isto como um incentivo de revolta, ou um motivo para verter umas quantas lágrimas. Apenas um constatar da verdade. Do passar dos dias entre a inercia das obrigações e o entretenimento que vão colocando à tua disposição. É assim para todos e pouco há a fazer. O que pode um ser humano sozinho fazer contra sua própria génese? Nada! A própria ideia em si é quase um convite à insanidade e para isso já basta a inquietação constante que habita em ti.
Há uma desmotivação intensa cada vez que acordas sem o conforto do manto da ilusão. A manhã não ofereceu descanso, com esta realidade presente a enregelar o ânimo. A melancolia é um sentimento constante a acompanhar a solidão do existir. No fundo, estar só, é a única verdade confiável.
Os outros têm os seus corpos e as suas fantasias. Vivem como dormem. Agradecem cada migalha de prazer sem nunca questionar se o mundo podia ser diferente. Certamente também têm os seus momentos de lucidez, onde a tristeza é profunda e só a mentira anima o vazio. Tal como tu, não os revelam ao mundo. É proibido não ser feliz e a pena a cumprir é mais dolorosa do que a mágoa de existir. Não olhes para eles. Não são referência e pouco ou nada têm para te ensinar.
Há aqueles que compreendem. Sim, eles existem: Os sábios! Podes reconhece-los no silêncio em que observam os demais. Se lhes conseguires colher uma troca de palavras, não te esqueças de aprender. Nem tão pouco de ensinar, porque todos nós sabemos algo que sirva para preencher o enigma do inefável. Todos os saberes são poucos na pequenez humana. O caminho para a auto compreensão está nestes pequenos passos de partilha.
Se por um mau acaso nunca encontrares nenhum desses sábios, basta olhares no espelho. A figura que te observa vai ter uma resposta sincera à questão que mais assusta: Afinal quem és tu?

terça-feira, agosto 20, 2019

Sentimentos controversos


De que vale falar no anoitecer se, há muito tempo, anoiteceu em mim.
Não foi apenas uma noite, mas várias. Algumas tenebrosas; outras vazias; solitárias; apaixonadas; raivosas; violentas ou serenas. A escuridão tem vários sentidos conforme a sina de quem nela se embrenha.
Cada noite que cai tem a sua história e declamo cada uma como uma fábula insatisfeita, porque nenhuma me completou, e nenhuma foi verdadeiramente imortal, como a poesia tem de ser.
A brutalidade de quem ama!
No corpo, na voz, no prazer e no silêncio de outro alguém em comunhão com o meu desassossego. A paixão é infinita na sua brevidade, por isso, nada mais é do que a ilusão no sentir naquele momento.
O sentido de quem odeia!
Planos de vingança dão um propósito na vida de quem é injustiçado. Se a dor destrói, a dor também recria. No seu ventre insensível, gera os monstros mais desumanos, educados com os mesmos instintos que os (me) esmagaram.
A mansidão de quem acalma!
Por vezes o céu nocturno está estrelado, ou a lua está iluminada para que se acredite em magia. Quando assim é, vem como uma mão maternal, aconchegante e compreensiva, tal como um descanso sem julgamentos.
O recolhimento de quem medita o seu dia!
Porque há que lembrar a jornada e de quando em quando, questionar cá dentro: “Quem somos”? A resposta surge quando o mundo está calado. Existe uma pacificação que tem de ser feita com o impulso interior, para que o fardo do amanhã tenha menos peso.
Assim são os meus anoiteceres, cheios de cenários longínquos, jornadas grandiosas e sentimentos controversos. Assim sou eu, como as minhas noites, pequenos contos na insónia das palavras. Tanta coisa e nada em simultâneo. Sementes que me fazem e refazem nas Primaveras do existir.
Embora, quiçá, devido ao hábito, conheça apenas estes horizontes noctívagos, como um vampiro melancólico. Fadado a viver na madrugada nua. Não devo culpar ninguém, até porque o destino (se existir) é como tem de ser. Ou melhor, o que aconteceu agora é passado e há que seguir em frente.
Como tudo muda, talvez deva agora dar atenção ao nascer do sol...

terça-feira, agosto 13, 2019

Deus, Paixão e Infinito


Gosto de acreditar que a criação do Universo se deva a uma paixão. Aquele por quem tomamos como a derradeira entidade divina, gerou um pensamento enamorado e, desse momento de felicidade absoluta, originou-se tudo aquilo que conhecemos por real.
E nós, feitos à Sua imagem e semelhança, nos sentimentos e desejos, herdamos igual capacidade de paixão e, com ela, a mesma capacidade de criação. Quando a chama da atracção se exalta, nasce um Universo próprio no nosso íntimo. Com as nossas regras, cores e magnificência.
Somos como Senhores dessa versão do existir, naquilo que chamamos sonhar. Ainda que, numa tentativa ridícula de comparação, aconteça numa dimensão mais pequena quando equiparado com tudo o resto. Não importa, não é por isso que deixa de ser igualmente magnifico.
Todos já amamos e, desse modo, também já recebemos em troca a amargura do sofrimento. Infelizmente há sempre uma dualidade na alma quando o sentir é profundo e por cada felicidade alcançada há sempre o outro extremo a espreitar. Seja como for, valeu a pena toda a génese só para que conheçamos o sabor da paixão.
Gosto desta ideia romântica de que Deus criou o infinito porque se apaixonou. Talvez como um adolescente que, coberto de ingenuidade, dá o seu primeiro beijo. Quando lábios jovens se encontram tudo se transforma em beleza e nada mais existe a não ser a fantasia.
Aquela ilusão poética que habita em mim acredita nessa quimera. Afinal de contas, algum propósito deve existir na criação e essa ideia conforta-me para lá de todos os dogmas: Ele, abismado pela grandiosidade do sentimento, concebeu-nos de forma a que, também nós, pudéssemos partilhar de igual forma o êxtase de amar!

quarta-feira, julho 24, 2019

O homem de solidão


O homem de solidão entende o mundo de uma forma muito particular. Tudo devido à sua condição separada de todos os outros. Podemos considerar isto como um dom libertador; ou uma mágoa intensa; ou ainda, insanidade! Seja como for, no fim de contas, o mundo não se rege pelas mesmas regras para aqueles que abraçam esta sina.
O homem de solidão tem de criar a sua própria cultura. Ser o seu próprio “entertainer” e também a sua própria audiência. Ter a sua linguagem íntima e os seus ideais exclusivos. Devotar-se à sua religião, cingida à imensidão do seu Universo. Até a sua história particular deve ser distinta, sem que nunca tenha importado na perceção dos que estão cá fora.
O homem de solidão ri com frequência das suas piadas geniais, contadas com a mestria do sarcasmo do seu sentido de humor peculiar. A ironia que o mundo carrega é por si mesma uma fonte de inspiração inesgotável. Cada situação cómica, anima a plateia de diferentes versões de si mesmo que vão aplaudindo freneticamente entre gargalhadas choradas.
O homem de solidão tem por companhia apenas a sua criatividade. Esta é de facto a sua real amiga, pois a verdade com que interpreta a humanidade é cruel demais e, encarar esse facto dói exageradamente acima do suportável. Apenas a fantasia se destaca sobre qualquer outro pensamento, ausente de qualquer forma corpórea, ainda assim tão completa como a companhia deve ser.
O homem de solidão é, portanto, um profundo entendedor da melancolia, tudo devido ao seu saber de exímio observador. Aqueles que interagem com sã comunidade entre os seus pares, suportam esse fardo com a ignorância da suposta amizade. Acabam, esses, por ser alvo de alguma inveja pela ilusão que os alimenta, leve no sofrimento e confortável no afecto.
O homem de solidão não se conhece. Em vez disso recria-se a cada experiência vivida, aceitando o conhecimento adquirido como o único caminho para uma suposta felicidade. A sabedoria, apesar de toda a amargura que acarreta, serve tanto de isolamento, como de energia para a imaginação: força criadora e superior a qualquer regra imposta!

domingo, julho 14, 2019

Considerações sobre a vingança


Há, no ser humano, um certo orgulho por ser capaz de pensar e dominar as emoções. Porém, existem situações em que os primeiros impulsos a surgir, são idênticos aos dos animais. Vejamos, por exemplo, o instinto de vingança. Quando uma situação provocadora de ódio surge em que penso eu de imediato, mesmo antes de tomar qualquer acção? – Vingança!
No mesmo instante, a minha mente é tomada pelos mais complexos planos de vingança. Dou por mim a ser testemunha dos meus próprios pensamentos e acho isso fascinante. Entretenho-me a observar todos os pormenores meticulosamente engendrados, sempre com toques de sadismo e surpresa, para que o sofrimento do alvo seja violento até ao auge da dita vingança!
Na realidade, há uma apoteose esperada no culminar da vingança. Há uma humilhação sentida. Há a dor desejada ao inimigo. Há a glória por alcançar. Existe toda uma arte de artimanhas e jogadas, que os génios da literatura vão explorando em histórias que se confundem com justiça. Toda uma trama dramática que se estende, quase em tom de aventura, ao falar de vingança!
Assumo toda a vingança que é traçada no meu raciocínio. Eu, na qualidade de observador de mim mesmo, sinto quase um certo orgulho por ser capaz de algo tão maquiavélico e ao mesmo tempo brilhante. Mesmo sem intenção de executar tais planos, porque felizmente impera o civismo em mim. Sem negar aquilo que sinto, confesso que por vezes me seduz a arte da vingança!
Grandiosos pecados que atravessam em segredo a nossa consciência. Estes, que forjados no ódio, combinam a nossa estratégia de bicho “superior”, com o intento primário animalesco de agir. Sentimentos ditos inferiores e dos quais supostamente “evoluímos”. Eu prefiro usar a palavra mistura, de divino e de fera, até ao “topo” da Natureza. Onde, supostamente, não existe vingança!
Não deixo de admirar a brutalidade dos nossos antepassados, que se livraram desta tentação insensível, com regras sociais e uma pressuposta justiça. Ainda assim, estas ideias mais básicas, mesmo com repúdio, ainda povoam a mente humana. Seja em segredo, ou em fascínio. Mesmo que, aparentemente, estas não tenham lugar neste mundo, onde, atrás de ideais nobres, ainda reside a vingança!

sábado, julho 13, 2019

13 de Julho de 2019 pelas 11 horas

O ódio entranhado na carne, na aura, no espaço em redor, tão palpável como um corpo e violento como a destruição tem de ser. A razão desaparece e o pensamento fica tomado pelo instinto implacável.
O rosto transfigurado para um visual animal, com traços grosseiros. Mais adequado a servir o seu propósito. Os dentes parecem sobressair da boca tal como um cão feroz ao atacar um estranho. Ali não há lugar a humanidade.
O olhar inflamado serve de cenário à raiva disparada pela voz. As palavras, afiadas como punhais, não têm misericórdia. Atravessam a pele até a alma, onde se gravam para sempre longe do esquecimento.
O que está dito, está dito. Algo em mim morreu nesse momento, não sei o quê. Senti apenas a desaparecer ante a ferocidade do instante. Fosse o que fosse, já não está lá. Quem sabe fazia parte do alicerce de tudo aquilo que sou.
Sobrou a apatia. Sem resposta, porque afinal, naquelas palavras impiedosas, algo em mim ficou irremediavelmente perdido. É como um misto de cansaço e mágoa. Um desalento profundo, talvez. Ou pelo menos interpretei assim.
Se há algo que a mágoa me ensinou, depois de trespassado pelo ódio no seu estado mais devastador, é que afinal de contas ainda tenho sentimentos. Pelo menos assim acredito. Porque a dormência não me deixa sentir.
Apesar de tudo, com uma réstia de ironia, comecei a bater palmas perante o espectáculo decadente e saí em silêncio. O amanhã virá e só depois vou saber o que morreu em mim. Sei que há um desânimo que vai crescer. Uma data que vai ficar perpétua na memória. Para já escrevo o que não sinto porque o momento está doer…

segunda-feira, julho 08, 2019

Saudades de quem não sei


Hoje perdi-me
Como quem sabe onde vai ter
Por terras longínquas do esquecer
Onde a ruas são silêncio
Fui com velocidade quieta
Numa rapidez sem pressa
Passei por casa de gente amiga
Com quem nunca falei
Muito menos conheci
Deixei-os atrás das paredes
Não bati na porta fechada
Para dois dedos de conversa calada
Ficam saudades de quem não sei
Sem cor nos muros pintados
Ocultos nos portões fechados
Depois continuei em frente
Em estrada de paisagens abertas
Tela onde cabiam todas as coisas
Cenários que chamam sem voz
Os lares ficaram distantes
Meros pensamentos errantes
O caminho sem destino continua
Só assim me sei encontrar
Saber quem sou sem nunca parar
Semeio leves recordações
Cresço com cada momento
Compreendo-me com cada sentimento
E vou em frente…

terça-feira, julho 02, 2019

Exactidão matemática


Quando observo uma mosca gorda, não deixo de ficar maravilhado pela engenharia do Universo ao criar os seres vivos. Cada pormenor, por mais ínfimo que seja, é pensado com toda a exactidão matemática para que possa ser completamente funcional. Qual, de entre todas as ciências humanas, pode rivalizar com a criação da Natureza?
No caso das moscas, destacam-se perante a minha curiosidade, sendo dotadas de asas para que tenham o prazer de voar (mesmo não entendendo elas tal dom como como superior). De certa forma, a ignorância acerca das coisas do mundo daqueles que caminham sobre duas pernas, faz delas um ser particularmente interessante.
Têm, como única sabedoria, a forma como obedecem aos seus instintos naturais. Aqueles que as fazem alimentar-se da nossa merda. Sem que o compreendam fazem, do que há repugnante para nós, a sua fonte de nutrição. Dizemos que estas são um insecto nojento, talvez porque encontram o seu sustento na nossa própria imundice.
Já sentiste a irritação de ter uma mosca gorda a passear pelo teu rosto, enquanto chupa a gordura que se vai amontoando sobre a tua pele? É quase irónico que a aquela barriga volumosa seja o resultado daquilo que te é sujo. Tu, que te dizes virtuoso em todos os sentidos. Nada é tão imaculado que não possa ser destronado, até por um simples insecto!
Aquilo que dizemos ser imperfeito, é fonte de vida para aqueles que apelidamos como parasitas. No entanto, para o motor do Cosmos nada é desperdício. Tudo tem o seu lugar e um propósito. Até aquilo que achamos ser mais baixo na nossa tão imaculada sociedade, entre leis, moral e uma suposta sanidade. Resumimos tudo a limpeza e excluímos todos os incómodos.
Entre as insignificâncias do existir, vão-se escondendo os segredos mais completos da verdadeira intenção cósmica. Observar faz-me chegar mais perto da compreensão absoluta (ou da ilusão de a poder ter). De qualquer maneira, encontro nestas constatações algum conforto com o qual amenizo o desassossego. Uma simples mosca gorda pode guardar os mistérios mais ambicionados do Universo e isso, só por si, é fascinante!

terça-feira, junho 18, 2019

Solem in Aurora


Já sentiste o tédio a crescer?
Desperdiçar o existir
Vontade desesperada de fugir
Coragem castrada sem viver!

Já sentiste o cansaço a vencer?
Sem saber o que sentir
Adiar constante do partir
Sentença no prazer de adormecer!

Já sentiste o sonho a desvanecer?
Memória sem existir
Vida que teima em se evadir
Destino surge apenas para esquecer!

Já sentiste o empenho a entorpecer?
Pausa carente de dormir
Descansar nunca foi desistir
Amanhã renasce o sol ao amanhecer!



quarta-feira, junho 12, 2019

O que tenho para dizer é igual ao Infinito


Tenho sempre algo para dizer, todos os dias, a alguém. Nem que seja a mim. Nem que seja silêncio.
Há sempre algo que precisa ser dito, mesmo que seja calado.
Os loucos falam para si mesmos, porque têm algo a reparar.
Os génios falam para si mesmos, porque têm algo a questionar.
Os ignorantes falam para todos, porque não têm nada a ensinar.
As respostas vão surgindo no meio do caos; entre o barulho; na confusão das cores. Também na voz dos sábios, ou dos estúpidos. Muitas vezes a explicação está no inverso do que é discursado. O conhecimento está em perceber o que o mundo diz e isso, só por si, é uma disciplina complexa.
O que tenho para te dizer é igual ao Infinito, por isso é vago. Só o consigo verbalizar quando estou longínquo, com o pensamento fixado no inefável. Naqueles momentos, que tu conheces bem, em que o olhar está concentrado num ponto para lá do horizonte. Eu, meditativo, na tua companhia, mas sozinho. Numa viagem ausente pelos mistérios do existir.
Tenho o teu toque por perto e isso dá-me conforto. Tens o meu mundo tão longe e isso dá-te abrigo no carinho da minha inquietude. Sabes que é difícil explicar o que não se compreende, por isso calo-me e deixo que me interpretes com telepatia.
A ciência de quem ama é proibida e, só por esse argumento, é grandiosa. Saber o que não se toca. Dominar a sinestesia dos sentidos curiosos. Alimentar a fome de entendimento, a mesma que nunca se sacia. A Gnose é impossível de expressar. Talvez seja algo que cresça com cada questão. Ou um caminho que se torna mais longo com cada resposta.
Seja como for, tudo que digo agora é um devaneio de quem é insaciável. De nada mais serve a não ser para desassossegar. Pouco mais te posso acrescentar do que este pensamento. Em mim não existe uma verdadeira serenidade. É preço que se paga para quem se perde pela madrugada fora.
Agora fala-me de ti. A condição humana aborrece-me, portanto, abstém-te do que é banal e deslumbra-me com o teu próprio Universo. Não existe nada que seja demasiado insignificante. Há sempre algo a saber, nem que seja dos teus próprios retalhos.

quarta-feira, junho 05, 2019

Fetiche grotesco


Tenho um fetiche por pessoas quebradas. Peço desculpa.
Acho que cicatrizes são o expoente máximo da sensualidade. Venham elas da mágoa que habita a alma, ou da profanação do ser que lhe dá abrigo. O âmago melancólico implora o caos, tal como a felicidade anseia a vida. Nada me seduz mais do que aquilo que é feio, estragado e impossível. O convite tímido de entrar em portas que se abrem com fome de toque. A entrega surge por direito próprio. Saber dos pecados, afinal, inexistentes. Da culpa que nunca foi. Provar o sabor afrodisíaco de bocas caladas. O gemer que se solta do íntimo, entre deleite e súplica. A humidade aberta de um espírito envergonhado com o seu nascer.
A beleza está no grotesco e isso excita-me. Peço desculpa.
As obras de arte estão velhas e cabisbaixas. Não há regras quando a verdade acorda. Os rasgos na pele lisa, sem qualquer objectivo de perfeição, elevam o seu desenho ao auge do erotismo. Toda e qualquer deformação é, para mim, pornografia no sentido mais sexual da palavra. A formosura está morta e o seu cadáver podre. Em nada me cativa a pele lisa, hidratada e imaculada. Só me satisfaz o que está desalinhado. Carne amorfa em êxtase a pedir devassidão. A sujidade crua e pegajosa de quem se vem por inteiro. Corpos disformes, como coisas proibidas, num gozar absoluto em orgasmos translúcidos de prazer.
Só encontro apoteose entre o que é anómalo. Não peço desculpa.
Não podem existir julgamentos quando a virtude é ignorante.

quinta-feira, maio 30, 2019

É fácil seguir um sorriso


Esperei por ti sentado, numa dobra qualquer do infinito, ao som da poesia e sonhos de criança. Mas tu nunca chegaste. Por causa disso, confundi-te várias vezes com outros rostos sorridentes que iam passando por mim. É fácil seguir um sorriso quando procuramos algo mais do que a nossa própria grandiosidade. 
Cada figura que encontrei, vinha nutrida com a sua própria busca pessoal e por isso, também a mim me confundiram com outro alguém. Sei que a minha procura não terminou e não parece que me vá submeter à palavra desistir. Creio que já aprendi a diferenciar as faces que desenham a linha do sorrir, para que não troque o teu ser por uma ilusão.
O problema é que não eras tu. Nunca foste tu. Corpos sem o teu toque, sem as tuas emoções, sem o teu Universo onde eu pudesse viajar, para me perder (e voltar a encontrar). Dizem que é assim o amor. Ou, pelo menos, eu acho que é assim o amor. Considerações à parte, não sei se um dia vais aparecer, ou também te perdeste numa espera qualquer.

sábado, maio 25, 2019

As distracções


Hoje, olhei para o mundo e senti uma profunda desilusão. Todas as doutrinas são mentiras. Todos os moralismos são falsos. Todos os ideais momentâneos. Apenas distracções para ocupar a mente quando esta não está focada nas tarefas da carne. Somente uma abstracção do fardo de existir.
Não existe um sentido para isto tudo. Só uma ocupação desconhecida ao nosso saber. Possivelmente o sentido seja mesmo esse, o de procurar dar sentido àquilo que não o tem. Portanto, talvez a existência tenha algum sentido até, porque, afinal de contas, quem somos nós se não forem os nossos sonhos, ou a nossa arte? Bichos, como os outros que andam aí, no meio do mato.
Os sentimentos fazem de mim aquilo que sou (ou o que desejo ser). Os sentidos, esses, têm tanto de prisão, como de liberdade. Creio que os segredos mais profundos estão vedados à perspectiva humana e pouco mais há a acrescentar. No fundo, apenas a ilusão importa e está tudo bem assim. Não adianta meditar sobre aquilo que não nos cabe controlar, nem sobre a criação que nos engendrou.
Somos nós em oposição a uma divindade extraordinária, para quem não passamos de algo ridículo. Assim sendo, quando falta a capacidade de aceitar a minha própria ridicularidade, nada me resta a não ser a decepção. Pelo menos enquanto não encontro outra distracção. Talvez algo a que eu possa chamar amor… ou ódio…

terça-feira, maio 14, 2019

As leis “politicamente correctas”


Ai de mim, que sinto solidão!
Em cada rosto que me sorri, não encontro verdadeira empatia, nem a química agradável de uma conversa sagaz. Não há ninguém neste horizonte que se traduza no mesmo caos que eu e isso dói. Dói muito! Mesmo muito! Esta solidão pesada sobre mim, sem ser fruto do meu próprio desejo, atormenta-me profundamente cá dentro, onde a Alma mora, na origem do meu eu. A inquietação é constante, agreste e sem tréguas…
Ai de mim, que sinto ódio!
Tenho a vontade infame de rasgar a garganta de um outro humano. Ter a satisfação de me embalar com os gritos alheios de agonia extrema. Regozijar com a lâmina afiada de um punhal impiedoso, enterrada veemente em corte, sem remorsos, na carne imaculada. Depois, como um enamorado, contemplar em êxtase a beleza do metal frio, quando pincelado a carmesim depois de cumprir o seu propósito. Há um certo alívio no sofrimento de outrem. Peço apenas que não me condenem por este pecado…
Ai de mim, que estou perdido!
Parafraseando algum “eu”, de um passado distante: “O sentimento mais poderoso que existe não é o amor, mas, sim, o ódio e a solidão, juntos em uníssono”. Engrandecidos na sua ligação. Imparáveis no seu poder devastador. Eis que paira sobre mim algo que só posso descrever como “magia” e todas as minhas faltas se metamorfam em imaculadas virtudes perante o mundo sem solidariedade. Há! Que felicidade completa me inunda ao constatar esta epifania maldita…
Ai de mim, que me esqueci como amar!
A culpa, não sei de quem é. Vou fazer como todos e sacudir o peso dessa responsabilidade para as falhas que se enraízam na sociedade. O meu quinhão, se existir, repudio-o com as palavras mais hipócritas que encontrar. Tal como dizem os grandes moralistas que nos regem, entre o conforto das suas leis “politicamente correctas”. No entanto, não perco tempo em busca de justificação. Afinal de contas vai havendo liberdade nesta ausência de sentir. Os sentimentos não surgem com medo de se dissiparem. Ou melhor, de nunca o serem, como, afinal, não são…
Ai de mim, que me sinto longínquo e ninguém me vem buscar!

segunda-feira, abril 29, 2019

Considerações sobre o pensamento


O pensamento é uma energia tão concreta quanto a força dos músculos, o calor do fogo, a electricidade num relâmpago, ou a química da Natureza. O ser humano, mesmo obcecado pelo conhecimento, ignora esta verdade e exclui, daquilo a que chamam ciência, o estudo das ideias que a mente gera.
Existem, no entanto, alguns que se debruçam sobre a metafisica em busca e algum tipo de elucidação esotérica, para o que afinal é engendrado e concebido pelo nosso próprio pensamento. Algo em nós tem a capacidade de mover o mundo, muito para além do simples domar das disciplinas materiais. Essa habilidade esconde-se à vista de todos, entre os pequenos gestos, as palavras proferidas, ou no mero facto de observar aquilo que nos rodeia.
Até os próprios crentes, seja qual for o credo, mesmo diante as escrituras, desconhecem que o Universo foi fruto de um pensamento. Uma ideia colocada em prática por uma entidade de imensidão incalculável. Esse mesmo dom foi atribuído ao bicho homem sob a forma de energia, mesmo que insuspeita e incompreendida.
Sem unidade de medida que possa ser calculada e incluída nas matemáticas ou engenharias, o pensamento ausenta-se das disciplinas que tentam compreender a vastidão do Universo, ou a motorização da Natureza. Talvez seja até, o elemento faltoso na chamada “teoria do todo”. A derradeira vontade que une todas as coisas.
Pensar que algo pode ser real pode, e deve, ultrapassar uma simples ordem ao corpo, ou a fronteira da imaginação. Tem uma acção directa na mecânica do cosmos. Camuflar o que se ambiciona debaixo de sentimentos, ou qualificar como mera fantasia é um erro. Desejar é o primeiro acto de toda a criação, para que todas as outras forças se conjuguem no mesmo objectivo.
Sabemos traduzir a linguagem da nossa mente em palavras, números e arte. Como se encontrasse na nossa casca um habitáculo de onde nunca se expanda, a não ser com a nossa própria ordem. Não creio que deva ser entendido assim. Tenha grandiosidade ou pequenez, o pensamento é uma energia viva, que nunca deve ser ignorada!

segunda-feira, abril 22, 2019

Palavras que entoo para ninguém


Tenho um fascínio, quase perverso, pelo eco sombrio numa sala vazia.
É como declamar a história sinistra de um pesadelo maldito a um ouvinte ausente. Ou cantar intentos de vingança a uma pobre alma abstraída, mergulhada na demência. Nada mais se escuta, a não ser a minha própria voz, no seu timbre mais impetuoso.
Ouço-me na pele exposta dos meus segredos mais obscuros. Na nudez sem pudor da violência que povoa os cantos escondidos do meu ser sem cor. As memórias, como tralha, ignoradas em sótãos e caves, de moradas sem fim para cada um dos rostos que visto.
Não tenho respostas, quando a questão que interrogo a mim próprio se escusa da génese de um propósito. Sei que algo em mim dança ao ritmo do som calado da sala vazia. Nada mais. Não sou quem digo ser, nem sei quem quero ser.
O peso que tormenta a vontade, o grito do silêncio inquieto. Encontra-se algum conforto nas palavras que entoo para ninguém. Ora doces, ora brutas, nunca banais, nunca reais. Sentimentos por desejar, que lutam entre si para encontrar um pouco de vida numa estrofe. Faço do eco confissão às paredes despidas de ornamentos e ao chão sem mobiliário, tal como eu, sem emoções. O desassossego alimenta-se daquilo que não tenho para dar.
“Um pouco de Paz, se faz favor”! Soletro em raiva, como quem anseia o infinito. Sei que ninguém me ouve a não ser eu mesmo e os outros que habitam em mim. Todos como eu, mas sem ser eu. Personagens que fui e ainda vou ser que pelejam entre si para me completarem na solidão de existir.
Tudo se resume em nada e tudo inicia aqui. Porque afinal sei que existem baús. Sendas escritas nas recordações. Momentos que alimentam a sabedoria. Dou por mim a olhar para longe, para muito longe, onde os pés não chegam. Afinal não há vazio e isso atormenta-me.
O pensamento é como o Universo, criado do nada, vai crescendo sem se concluir numa inquietação constante. O entendimento, esse, existe apenas numa matemática por inventar. Ainda assim sou invadido por uma felicidade sem explicação. Como se, num repente, me apercebesse do enigma do inefável.

sexta-feira, março 29, 2019

Superior a todas as regras


Levantei-me numa pose de afirmação. Altivo sobre todos os outros!
Ergui o meu braço com o punho cerrado e com toda a convicção do Universo, levantei o meu dedo do meio, num acto de absoluta Liberdade!
Da minha boca soltou-se o grito mais impetuoso que alguma vez disparei no rosto de um inimigo:
«Elite de merda! Que o diabo vos carregue junto com a vossa perfeição!»
Foram só estas palavras que proferi. Uma epígrafe breve, embora a minha mente estivesse povoada com os insultos mais degradantes, grosseiros e brutos alguma vez concebidos.
Não disse mais nada. Limitei-me a ficar ali parado. Sem ter noção do tempo. Só a certeza de que, a minha imagem, superior a todas as regras, ficasse guardada na memória de todos que me olhavam.
Eu, indomável! Ao lado dos heróis de outras eras. Em busca de Justiça. Erigido acima dos cacos de quem mora no medo.

sexta-feira, março 22, 2019

Como todos os apaixonados


Queria fazer de ti um poema. De nada valeu a minha vontade, porque tu és infinito e eu demasiado pequeno ante a ciência do teu ser.
Queria fazer de ti estrofes. As mais belas alguma vez escritas, só que me fugiram as rimas, temerosas com o teu Universo inefável.
Queria fazer de ti beleza. Mesmo sabendo que tu já és sublime, desenhada nas cicatrizes que se afundam no teu abismo colorido.
Queria fazer de ti perfeição. Embora as palavras morram em si mesmas, como todas as frases de amor que se desvanecem no papel, ou se perdem na memória.
Queria fazer de ti sonho. Sem perceber que já vives na minha fantasia, a acariciar o meu adormecer, ou a cantar na alegria do meu dia.
Queria fazer de ti Primavera. Seres como a Natureza que renasce em cada ciclo, tendo eu a ignorância daqueles que se julgam sábios, não percebi que o teu nome é sinónimo de renovação.
Queria fazer de ti a minha pele. Talvez porque ame o impossível, ou então porque já vives em mim, tal como carne e pensamento.
Queria fazer de ti o meu tempo. Calmamente, sem a pressa do amanhã. Pequenos momentos lentos que se confundem com a eternidade, para que nunca caias no esquecimento.
Queria fazer de ti utopia. As almas em junção não bastam para quem vive em inquietude, e como todos os apaixonados, desejei ultrapassar os significados mais altos do verbo amar.
Queria fazer de ti divindade. Já o és, nas minhas orações caladas de crente inabalável, ou no meu entender contemplativo do enigma da existência.
Queria fazer de ti tudo. Ainda que, o resto do mundo se esvazie diante a tua presença. Quando nada mais resta a não a ser a criação, que em nós encontra refúgio.
Queria fazer de ti mistério. Escondido atrás do teu sorriso. Voz que chama para o cosmos que habita no teu íntimo. Eu, curioso, ávido por viajar. Estudar a tua arte nos ínfimos pormenores que te tornam imensa!

quarta-feira, fevereiro 13, 2019

Os adjectivos mais baixos


Hoje, declarei novamente guerra ao mundo. Fi-lo com a violência de quem, num acto extremo, bate com o punho cerrado na mesa. De maneira a que os alicerces da sabedoria, concebidos pela grandiosidade da ignorância humana, estremeçam.
Afirmei o meu caos, sem qualquer tipo de dúvida, àqueles que se haviam esquecido de que eu era invencível e imortal. Depois disso, fulminei-os com o olhar pintado de brutalidade. E eles, sem misericórdia, arderam nas chamas do ódio mais puro e implacável.
Espezinhei-os como o pó. Castrados e sem nome. Desprovidos de qualquer dignidade, ou a altivez que julgavam ter. Mesmo assim, numa réstia de bondade, deixei que fossem elevados a menos de nada, para os poupar da erradicação total da memória.
A esses, dei-lhes, portanto, a honra de constarem na história como os ridículos… Os asquerosos… Os repugnantes… Os que são apelidados com os adjectivos mais baixos, no vocabulário de todas os dialectos criados, em qualquer civilização já existente, ou ainda por vir.
No entanto, há em mim uma sede por crueldade, que não nego. Foi plantada na minha génese pela providencia divina, e eu acarinho-a como uma espécie de autoridade, para que pratique justiça contra quem ameace a minha tão amada serenidade. São os tais, vermes imundos, o alvo da minha ira castigadora.
Seja como for, não os identifiquei como inimigos. Apenas um ligeiro incomodo, como um dia mais nublado, ou uma comichão passageira. Nada mais. Interpretem este gesto como um ensinamento a todos vocês que um dia vão sentir o sabor da revolta contra quem vos tentar subjugar.

quinta-feira, fevereiro 07, 2019

Trajectória implacável


O alvo foi escolhido. Numa mera fracção de segundo o cérebro tomou a decisão de o trespassar. Depois, com precisão matemática, calculou a distância, o peso e a velocidade. Sem hesitar, o dedo abateu-se sobre a frieza do gatilho. A flecha, despida do peso do sentir, atendeu ao seu propósito e voou sem hesitar.
O ar, atravessado pela trajectória implacável, não ofereceu resistência ao lancetar do projéctil em busca do seu objectivo. Aqueles que tomaram alguma atenção, ouviram um ligeiro assobio, como que a acompanhar o estalar da besta no seu disparo perfeito. Toda a beleza do engenhar do homem ao serviço das suas ambições.
O corpo, atingido pelo inesperado não teve tempo para questionar o porquê. Varado pela malícia humana caiu inerte. Sob a frágil capa do viver, nada o separou do perfurar irrepreensível da firmeza do arqueiro. “A seta lançada não volta atrás”.  Não existe lugar para culpa na senda duma vontade cruel. Apenas o êxtase de mais um propósito consumado…

terça-feira, janeiro 29, 2019

Semear temperos


Sobre a vida, malfadada na sua amargura
Do coração: colam fragmentos
Do corpo: gritam tormentos 
Da boca: calam lamentos...
Sobre a vida, amada na sua doçura
Do coração: sonham afectos
Do corpo: suplicam sentidos 
Da boca: desenham beijos...
Sobre a vida, encantada na sua candura
Do coração: guardam momentos
Do corpo: declamam sonetos
Da boca: semeiam temperos...
Sobre a vida, saboreada na sua aventura


sábado, janeiro 19, 2019

Depois do enigma desvendado


Lembras-te do dia em que venceste o caos pela primeira vez?
Tinhas definido para ti a sina da derrota. De tal maneira que te cingiste a ser uma sombra, sem qualquer tipo de vontade. Tal como um ramo caído, a flutuar ao ditar da corrente. Apenas abraçaste a mentira que as regras sociais te reservaram.
Ainda por cima elevaste a tua pena ao estatuto de grandeza e obedeceste: Amar porque é suposto. Trabalhar para ganhar o “pão nosso de cada dia”. Ir de férias como se tratasse de um prémio. Julgar, com tua opinião inútil, traços e condutas de outros, tão vazios como tu, tal qual uma forma de entretenimento.
Eras parte da ilusão e gostavas. No entanto, houve um momento de clareza, daqueles em que enfrentas a verdade olhos nos olhos e em frente ao espelho, abraças a conclusão de que não tens nada a perder. Foi então que decidiste ir ao encontro do desafio, tendo como munição somente os sonhos que julgavas impossíveis e uma réstia de vontade que ias guardando no baú da mente.
Foi esse o momento que até então julgavas impossível. Provaste a iguaria agridoce da vitória. Aliás, saboreaste em grandes garfadas o manjar violento do triunfo e apanhaste-lhe o gosto exótico. Tomaste consciência da tua própria força e domaste as regras do jogo que te subjugava. Soube bem, não soube?
Foste, com o medo calado, na direcção da tua aparente desgraça. Era o tudo ou nada! O fim ou a glória! Coisa nenhuma te travou, ninguém te fez duvidar. Agarraste, com a certeza que nascera em ti, a coroa do teu próprio reino. Mereceste. Conquistaste com dor e fantasia o que sempre te negaram.
Mas não acabou aí. Nunca acaba! O trilho de inimigos pela frente continua, tão imenso como o mundo, tão imprevisível como o mistério. O combate carece de estratégia. Há avanços e recuos. A guerra faz-se de fracassos e sucessos. Tu sabes disso. E sabes ainda mais que também és forte e indomável. Moldaste essa realidade desde aquele primeiro dia em que enfrentaste o caos e venceste. Porque afinal de contas, depois do enigma desvendado, tu és o próprio caos!

sábado, janeiro 12, 2019

Intempéries do sentir humano


Peço desculpa, mas hoje apetece-me amar.
Existe um excesso de ódio e repreensões, onde devia ser apenas a natureza a florescer. Arranham-me as vozes ásperas do julgar. Perde-se o sentido da razão, nos actos vazios de quem não sabe mais do que limites.
Inventam afazeres, veneram expectativas sem vontade própria. Cobrem a vontade de ruído e cansaço. Tenho de acordar. Nada em mim é assim básico. Assusta-me até o expoente do pavor absoluto, ser um igual aos demais em horizontes e sabedoria.
Há momentos em que todo o resto é efémero, apenas o amor se eleva como eterno. Por isso, não exijo mais do que um corpo para acariciar, uma boca para provar e uma outra alma onde viajar.
Só desejo que o tempo fique imóvel, enquanto a inocência regressa na sua juventude perpétua. Antes que a pele perca o tom imaculado e a vida nos relembre a mágoa.
Urge calar a dor. Esmagar a solidão com o peso desta minha rebeldia. Devo afirmar que não sou escravo de imposições ou entretenimento dormente. Existir sem tocar em sentimentos quentes não me satisfaz. Quero um pouco mais!
Este sou eu. Despido e sincero. Exposto às intempéries do sentir humano. Como um tolo irresponsável a bradar sem medo que todo o meu desejo é unicamente amar!
Esta é a minha pequena oração ao Universo, com todo o seu mistério. Sem o nome de Deus, ordem ou ciência. Só a religião imperfeita de quem está cansado da ausência do sonhar.