quarta-feira, abril 26, 2017

As borboletas


O silêncio era sepulcral. Parecia que o mundo se tinha calado para assistir àquela cena sórdida. A rua tinha-se aquietado. Todo o movimento cessara. Uns quantos corpos inertes, salpicavam os passeios, janelas e varandas. Limitavam-se a olhar sem tentar a ousadia do movimento. Em todos sobressaia a expressão facial de espanto misturada com pavor, acusada pela boca entreaberta.
O chiar de um velho motor em movimento quebrava a mudez sombria que se tinha instalado em todo aquele caminho. Um jovem, a quem a enfermidade tinha deformado a fisionomia e inutilizado os músculos, conduzia uma cadeira de rodas desgastada pelo tempo e cuja ferrugem tinha roubado a cor. Seguia decidido pelo asfalto dentro, entre as entranhas daquela cidade temerosa.
Os automóveis pararam, em sinal de reverência, para que a passagem daquele ser de olhar determinado fosse uma prioridade. Ou melhor, uma espécie de cortesia ao que mais grotesco existe na essência humana.
O rapaz, só por si, não constituía um espectáculo digno deste descrever. A sua existência era apenas o resultado da miséria, a qual a sociedade aprendeu a ignorar, para que a sua quota de perfeição permanecesse imaculada.
O verdadeiro motivo do assombro daquela gente, era um cadáver de homem em decomposição que, amarrado por uma corda em volta do seu pescoço, era arrastado estrada acima por aquela figura distorcida.
Um cheiro intenso a podridão emanava daquele corpo. Atrás do seu roçar, ia deixando alguns restos pelo chão áspero. Ainda assim, os estômagos revoltosos não se atreviam a soltar o vómito.
Um bom número de grandes borboletas necrófagas, atraídas pelo odor intenso, pousava em cima daquele defunto, para que, também elas, tivessem direito a um pouco da sua carne necrosada.
O rasto de detritos, que ia sendo deixado, mostrava o caminho percorrido por aquela procissão desconcertante. Umas boas centenas de metros por entre a urbe, pintados num tom carmesim.
Para além do ranger irritante do rodar da cadeira, nada mais se escutava. Talvez, para os mais atentos, o ténue som do bater de asas daquelas borboletas infernais, que iam chegando, cada vez mais, para acompanhar o cortejo da desgraça.
A felicidade, que é pregada pelos profetas da ilusão, foi silenciada. O cortejo continua até que alguma alma destemida tenha coragem de o parar. Até lá, assim se cala o frenesim da aparência vívida dessas gentes mundanas: Com a inercia dos estarrecidos…

quinta-feira, abril 20, 2017

Lápis do infinito


Dei por mim a mendigar carinho. Ainda pior! Como um proscrito a suplicar companhia. Esqueci-me do universo que há em mim para me rebaixar à pequenez da condição humana, com medo da solidão, a buscar uma migalha de atenção.
Deu-me nojo da minha pessoa.
Virei as costas ao rosto que desejava cativar a meio de uma conversa qualquer. Na minha vergonha esperei vir a tempo de recuperar a dignidade. Como um pecador arrependido penitenciei-me pela minha falta contra a gnose.
Onde estão os meus sonhos?
O que tornou a minha vontade casta?
Onde estou eu?
Tornei-me invisível aos olhos dos carnais. Recolhi-me aos confins da minha essência. Entreguei-me despido de rótulos à forja da minha criação e numa réstia de humildade implorei para renascer.
Pó das estrelas com figura de gente. Carne desenhada com o lápis do infinito. Entendimento gerado na ideia da criação. Assim sou eu!
Rogo à sabedoria para nunca me esquecer dessa verdade…