sábado, dezembro 30, 2017

A génese de todos os porquês


Por vezes fico imensamente feliz por existir em mim uma profunda ignorância e inocência face aos mistérios do Universo. Não me deixo de maravilhar com cada descoberta feita na minha mente, nem pelas portas que são abertas à minha compreensão.
Encanta-me a pequenez infantil com que meço a sabedoria que há em mim. Ser como uma criança a descobrir o mundo nas suas brincadeiras na escola da imaginação. Se a vida é tão extraordinária porque me vou contentar apenas com o crescer?
Existe uma liberdade profunda quando digo: “quero descobrir tudo que se esconde dos meus sentidos primários e do meu saber ingénuo”. Não me basta saber de onde estou, dos outros, e das coisas. Há que conhecer a própria génese de todos os porquês!
Hoje rimo uma oração de louvor a todos os segredos que há por encontrar. Voar em cores. Desenhar aventuras. Ser herói numa canção ao percorrer a vastidão do mundo. Sou único, mas não sozinho. Como tudo, moldado na semente do germinar da criação.
Eu próprio um enigma para o meu desvendar. Todas as viagens que cruzei trazem-me ao destino de mim mesmo, fazendo-me também ponto de partida para novos caminhos a percorrer. Ainda há tantos tesouros a encontrar para lá do horizonte. São como um convite!
Por isso vou. Nos meus próprios passos, na boleia da companhia, ou simplesmente impelido pela brisa que enche as velas içadas pela minha curiosidade. Tudo o que desejo encontrar está espalhado pelos recantos da existência, nas veredas do desconhecido.

sábado, dezembro 23, 2017

Nas palhinhas deitado


Vai adorar o menino nas palhinhas deitado. Mas antes não te esqueças de esconder os teus pecados. Não precisas de um local muito elaborado, podes colocar mesmo no bolso das calças. O importante apenas é que não se vejam, o resto pouco importa.
Vai adorar o menino nas palhinhas deitado. É importante salientar que deves colocar uma expressão emotiva, quase pesarosa, ao mesmo tempo que o teu corpo assume uma posição orante. Deve ser fácil para ti simular essa atitude. É bonito para que os outros vejam.
Vai adorar o menino nas palhinhas deitado. São apenas uns minutos de sacrifício, calado, a olhar para a figura de um bebé. Podes aproveitar para reflectir nos teus próprios vícios. Não há qualquer problema, pois ninguém é capaz de te saber o pensamento degradado.
Vai adorar o menino nas palhinhas deitado. Sem que percas a noção de que o importante está debaixo da árvore de natal. Sabe bem receber uma prenda, não sabe? Assim uma coisa cara. Às vezes não se dá importância, mesmo assim convém que o Pai Natal seja generoso.
Vai adorar o menino nas palhinhas deitado. E já que lá estás pergunta-lhe se tem algum conforto para esse teu vazio. Afinal de contas não custa nada perguntar. Quem sabe até que ele te responda, já que estás de joelhos a implorar como um mendigo.
Vai adorar o menino nas palhinhas deitado. Talvez descubras a felicidade. Se resulta com quem tem Fé, talvez resulte contigo também. Já que, apesar da tua alienação, também és filho de Deus. Acresce ainda saber que, embora a imensidão da tua ignorância, no fundo do teu ser, já sabes a resposta…

segunda-feira, dezembro 18, 2017

Abismo e prazer


O corpo da mulher deve ser divinizado por quem o contempla com os olhos de um poeta. Esculpido, colorido, cantado, rimado, louvado, tal como deve ser no seu estatuto de manifestação sagrada!
Da mesma forma, tem de ser paganizado por quem o apetece com os olhos do desejo. Sem virtude, expulso do paraíso, arrastado até à terra, sinónimo de devassidão, tal como deve acontecer na sua forma pecaminosa!
Entre os extremos destes dois caos, vai-se desenhando a essência feminina. Para aqueles que, na sua eloquência, ousam assumir o papel de amantes da carne e da alma destas criaturas, resta-lhes o abismo e o prazer.
O vestir, a nudez e a intimidade. Várias camadas de sedução, que se abrem em convite da sua descoberta, àqueles que o queiram (ou ousem) aceitar. Cores de uma pintura, traços de um desenho, silhueta de uma escultura, versos de um poema, belo como uma flor que brota na Primavera, imenso como um mundo oculto a explorar.
Felizes os que dominam a arte e o animal. Tomam as rédeas do espasmo que grita na pele. Bebem o sabor agridoce que se solta do veneno. Entram na porta do inferno, encorajados pelo calor do fogo da luxúria.
Depois há o olhar. Comprometido, tímido, convidativo, provocador, como janelas para a alma da mulher. Ser de carne com dom celestial. Onde se perdem os sexos e a vida floresce. Aventureiros, poetas e mansos, sabem que podem, no mesmo nome da perdição, encontrar o paraíso…

terça-feira, dezembro 12, 2017

O enigma da humanidade


O que entendes por ser humano?
Ter dois braços; duas pernas; um rosto que tenha herdado os traços de Adão; saber falar; entender ter algum tipo de inteligência?
Ou é no pensamento que se esconde realmente o ventre da humanidade?
Poderá um ser, oposto à aparência pré estabelecida, dizer-se humano apenas porque sabe discernir no seu pensar que possuiu esta característica?
Pergunta inútil. Para além dos animais nunca encontrei nada, vivente ou não, que pudesse dizer-se como tal. Nem tenho a certeza de que, quando os bichos falavam, como nos contos de fadas, eles quisessem essa denominação. Quiçá fosse insultuosa, para quem nasce dito irracional.
Tudo isto surge como uma interrogação sobre o meu lugar no universo, na sociedade, e no meio dos homens, com a sua mania extravagante se engrandecem acima do seu estatuto de carne e osso.
Observo-me com os olhos da criança aventureira que um dia fui e a vida sabe a pouco.
Revejo-me também com a benevolência do sábio que um dia serei e encontro alguém a percorrer o seu caminho.
Sinto-me rodeado de frustrações e alegrias, duvidas e certezas, ódios e amores. Uma constante dualidade de sentimentos, como deve ser, afinal, a senda humana ao escrever a sua história.
Sou uma ínfima parte de um passado remoto, para um futuro que está por acontecer.
Reduzo-me a nada na divindade com que me falsearam. Ao mesmo tempo transcendo-me ao infinito na gnose que tanto busco. Nada em mim é perfeito embora seja fruto da perfeição absoluta.
Sou insignificante como uma partícula de pó. Simultaneamente sou grandioso, como quem se eleva na imensidão de um pensamento profundo.
Aqueles que na solidão encontram um refúgio compreendem o que digo. Pouco mais tenho a acrescentar. Cada um de nós percorre a sua sina entre a dor e a felicidade. Uma sinfonia feita de momentos.
Por vezes acontece haver instantes de absoluta clarividência. Um deslumbre de pura sabedoria que dura apenas o elaborar de uma pergunta. Todas as respostas trazem os seus segredos. Assim aprendemos sobre nós, os outros, o mundo e tudo o resto…

quarta-feira, dezembro 06, 2017

Tudo é vida


Tudo é sono.
Ao meu redor a realidade transformou-se numa vastidão de cansaço.
Um deserto feito de inercia resumido a uma única ânsia de descanso. Sem sentimentos a pulsar. Sem desejos que acordem. Sem decisões para onde continuar. Apenas adormecer. Enroscar o corpo no conforto dos lençóis e deixar-me ir no chamamento imenso da quietude.
Acolhe-lhe a paz no berço do repouso. Faz-se em mim uma crisálida a convidar o renascer. Desenho-me e reencontro-me entre o profundo vazio da mente em absoluta serenidade.
Talvez sonhe! Embora a fadiga seja em demasia e qualquer devaneio nocturno se transforme em esquecimento…
Passa a noite. Embala-me o calor pela madrugada dentro. A manhã vai chegando, como chega sempre, e traz o sol consigo. Regressa o acordar, com força e alento. A energia voltou e o meu ânimo com ela. Depois de uma trégua perante a obrigação de acontecer, cumprimento o novo dia com um sorriso.
Tudo é vida.

quarta-feira, novembro 29, 2017

A marcha


Então vocês, no alto da vossa perfeição, declararam-me proscrito. Condenado a um existir longínquo, onde os meus gritos calados e a minha imagem disforme não pudessem perturbar a vossa carne imaculada.
Quanto a essa sentença, não a considerei como tal. Pelo contrário! Aceitei-a como uma oferenda e dela retirei o meu esplendor. No vosso superior viver, não tomaram em conta de que aqueles, como eu, expulsos do paraíso onde só mora a beleza e a alegria, aprendem as artes da distância.
Para lá do horizonte do requinte encontra-se a imensidão dos sonhos, onde moram aqueles que observam e aprendem no silêncio. Excluídos das normas ditadas pela voz da tirania a que chamam “ser feliz”.
Nesse longe para onde me escorraçaram, fiz da inquietude o meu trono, da sabedoria a minha coroa e da solidão o meu reino. Ergui-me soberano de mim mesmo sem que os vossos olhares de desprezo me aprisionassem numa pele que não é minha.
Eis que me agiganto diante vós, sem vergonha da minha figura. Orgulhoso! Com luz própria! Ofusco os vossos olhos amedrontados pela altivez da minha presença. Desfaço as vossas verdades nos passos firmes do meu erguer.
Nem um ínfimo de vingança vos darei como atenção. O vosso choro de nada me servirá. Não será mais do que um mero incómodo aos meus ouvidos. As vossas lágrimas não vão trazer qualquer comoção, apenas aumentar o ridículo do vosso ser vazio.
Sois agora aquilo que entendeis por tristeza. A vossa alegria transformou-se em mentira. Os vossos risos manifestam-se como sempre foram, ocos, sem qualquer tipo de cor nem sentimento. Nenhuma história reza em vós. Nenhum brilho que cative.
Na minha inclemência obrigo as vossas cabeças a fitarem o chão em desonra pela vossa nulidade. Não vos concedo a graça de me encararem como iguais. Nem sequer inferiores. Remeto-vos ao pó da terra, entre dejectos e sujidade. Como ratos a mendigar na imundice.
Segue assim a marcha da minha glória, alheio aos escombros da vossa multidão. Tudo isto se pode traduzir em ironia. Ou talvez, indiferença. É difícil adjectivar o que, afinal, não interessa. Assim sendo, depois de toda esta senda, resta-me questionar: afinal de contas, aonde está a vossa perfeição?

quarta-feira, novembro 22, 2017

Como quem sente medo


A névoa que vem do mar foi surgindo lentamente. Aproximou-se quase imperceptível e foi cobrindo devagar o céu azul veranil. Formou-se como um corpo e tomou para si consciência dela própria. O sol, assustado, não ousou enfrentá-la.
Cá em baixo, na terra, aqueles que gozavam o calor foram-se aconchegando a uma qualquer peça de roupa, violados pelo frio húmido que a penumbra trazia no seu manto. A pele arrepiou como quem sente medo. Hoje, a noite, ia chegar cedo…
Fez-se o convite àqueles que estavam alegres a se recolherem ao conforto do lar, como quem lembra o inverno. O relógio ainda marca uma hora não tardia. Mesmo assim, a neblina, essa, declarou-se suprema, acima da sabedoria dos homens.
Pouco mais havia a fazer senão tentar ignorar as sombras no conforto de um refúgio. Quem assumiu a coragem de enfrentar aquele crepúsculo agreste, encontrou apenas apatia. O sentido da vida perdeu-se em pensamentos vazios.
A verdade calada do anoitecer seria vencida pela senda humana. Algures, o chamamento da comodidade e da luz acesa em casa havia de se fazer ouvir. Até lá, o marasmo do silêncio, a penetrar na alma pela carne enregelada, permanecia.

segunda-feira, novembro 06, 2017

Pessoas caladas


Gosto de pessoas caladas. Que seguem os acontecimentos apenas com as cores do olhar, gravando os sons do movimento. Quietas. Sem julgar.
Marcam presença apenas com os seus olhos profundos fixados nas paredes do que os rodeia. Sem profanar aquilo que os outros julgam ser mundo.
Poucos são os que os notam, escondidos algures nas multidões gritantes. Rosto longínquo como quem tenta compreender uma linguagem estrangeira.
Vivem na solidão, como eremitas que se entregam somente ao conhecimento. Ninguém imagina os segredos que escondem atrás da capa da banalidade.
A voz de pouco lhes serve, senão para indicar que lhes sobra uma réstia de humanidade. O que têm a dizer nada interessa aos que lhes servem de camuflagem.
Os seus ensinamentos são como enigmas de compreensão impossível a quem não se importa com os segredos do Universo e lhe basta a própria pele.
Por tudo isto limitam-se apenas a aprender com os que nada sabem além de si, que na sua ignorância e comportamento, expressam lições de infinita sabedoria.
Quando me cruzo com eles, fixo-os de igual para igual sem esboçar uma palavra e deixo-lhes um cumprimento silencioso. Serve de algum consolo saber que afinal não somos únicos…

quarta-feira, novembro 01, 2017

A jornada (O Narrador X)


Não sei bem por onde começar. Talvez pelo início como dizem os clichés. Mas é tudo tão confuso que por vezes se torna complicado saber onde é o princípio da história.
Sabes como é. Tanta coisa a enumerar, tudo misturado na cabeça, sonhos, ideias, amores, desaires, tristezas e euforias. Muitas histórias para contar sem que nenhuma importe verdadeiramente, embora todas mereçam atenção. Na realidade não passa de uma narrativa criada de pequenos momentos sem grande importância. O segredo é saber escolhe-los, pois todos juntos, compõem uma jornada épica!
Há uma nota importante que deve ser levada a sério antes de tudo. Perde-se tempo a pensar no amanhã sem olhar para hoje. A desculpar-se nos “ses” que a vida não nos deu sem olhar para as cartas que se tem na mão. Um erro que todas as pessoas cometem sem perceberem que isso está roubar vontade à alma. Cria-se uma grande expectativa sobre uma grandiosidade qualquer, que vai ocorrer sabe-se lá quando e como. Talvez até aconteça. Mas se assim for vai faltar o êxtase que era suposto irradiar quando foi desejada pela primeira vez. Acho que sabes do que estou a falar.
Regressemos aos pequenos momentos. Às letras que compõem as palavras, que compõem as frases, que compõem os parágrafos, que compõem os capítulos, que compõem o livro dessa tal história sobre uma aventura que levou a uma conquista onde o passado fica calado com vergonha de si próprio. Estou a falar da satisfação que se sente ao soltar o primeiro peido depois de acordar. A euforia que se tem ao chegar o fim-de-semana, ao “foda-se” que se suspira quando o tempo custa a passar. Se isto não te chega podemos avançar para aquela pessoa com quem “flirtastes” num misto de inocência e marotice, ao ódio quase irracional que se sente dos imbecis que se vão cruzando connosco. Coisas banais que se esquivam dos cadernos da memória. Creio que já apanhaste o fio à meada.
Tudo começou por um pensamento. Era assim que todas as histórias deviam começar, em vez do entediante “Era uma vez” que nos ensinavam nos contos de fadas. Alguém pensa sempre alguma coisa antes de tudo começar. Algo fez sentido na mente. Umas quantas peças encaixavam umas nas outras, portanto havia que as juntar como quem monta um puzzle (ou uma peça de mobiliário barato). Seja como for, esse trabalho cabe a quem decidiu tomar para si o papel de herói. Neste caso já sabes que és tu.
A seguir veio a companhia (ou a falta dela). Sabes que as maiores desilusões ocorrem com as pessoas que nos são mais próximas. Nesta história essa regra não é excepção. A mágoa pode moldar o coração humano de forma implacável. Quem ontem pregava as maravilhas da amizade, hoje pode dominar com mestria a lâmina da vingança. Estas palavras são-te familiares com certeza, fazem despertar os teus sentidos de alerta para uma guerra que te forjou na decepção. São estes os ingredientes para a nossa personagem. Nada demasiado original nem nunca antes visto. Apenas alguém que busca justiça e um canto onde se encaixar no caos da existência.
Depois há que escolher um caminho. Tudo que envolve mudança pode ser assustador. Sair do canto em que lançamos raízes é difícil porque não conhecemos o futuro. Por outro lado, é relativamente fácil para quem está de fora a observar, cuja tarefa se resume a um mero aconselhar sem que sintam o peso da cruz em cima dos costados. Dizem eles: Basta olhar em volta, existem vários destinos, não vais por ali ou por acolá porque não queres. No entanto chega a altura em que é preciso firmeza na vontade. Seja por onde for, é necessário tomar a decisão mais malfadada: ir por ali!
Inicia-se assim a jornada. Ou melhor, já iniciaste. Assumiste o protagonismo dessa história a partir do momento em que descobriste que a realidade era insuficiente para a tua vontade. Sabes, todos os que estão destinados a grandes feitos passam por esse momento de descoberta. Aqui é que a narrativa se complica. Ter consciência de que o mundo não basta pode levar à frustração ou à grandiosidade, mas há que ter a noção absoluta de que esta última virtude não se alcança pelo simples facto de estar escrita na nossa sina. Se assim for, é simples cair nos braços da desilusão. Essa conheces tu bem. Tudo porque te concentras apenas na imensidão que mora em ti!
É fácil acontecer, isto porque esqueces que vestes o fardo da humanidade, num mundo feito para humanos, na pele de um corpo humano. Na visão ampla do universo isto parece pouco. Talvez sim, no entanto é tudo que tens e esse é o teu ponto de partida, a tua arma, o teu grande poder!
Sabes, por vezes perco-me em devaneios que mais parecem sair de uma mente embriagada, embora saiba que consiga fazer algum sentido. Deixo-me levar facilmente pelas palavras. Já me conheces. Estive aqui a falar de jornadas, pensamentos, companhia, humanidade e pequenos momentos. Tudo isto para se resumir a uma simples questão: Quem és tu?

quarta-feira, outubro 25, 2017

O dom da inteligência


Uma mosca pousou na minha cabeça e apanhou boleia nos meus pensamentos. Na sua forma de insecto repugnante e na insignificância da brevidade da sua existência, acompanhou-me numa das minhas viagens sem destino. Não a sacudi. Durante alguns metros serviu de companhia ao palmilhar dos meus sapatos.
Enquanto circulava as ruas e misturava a minha figura com outras gentes nas cores da multidão, ela foi aprendendo sobre a organização dos homens. Mostrou algum interesse nas primeiras impressões, no entanto, logo percebeu que tudo aquilo era demasiado caótico para quem apenas almejava alimentar-se numa gordura qualquer.
A sua riqueza era aquilo que nós entendemos como imundice. Tudo o resto era demasiado complicado e inútil. Os bichos a quem Deus concedeu o dom da inteligência regulavam-se por ideias estranhas, que mais pareciam uma prisão aos olhos de quem pode voar. Por isso abandonou-me e continuou o seu caminho.
Depois de ter ocupado alguns momentos de mim mesmo com aquela companheira minúscula, não deixei de meditar sobre o seu comportamento e comparei-a comigo mesmo. Interroguei-me o que fazia ali no meio de vivências simples, se afinal de contas eu sabia imaginar. Senti um certo asco pela banalidade a que chamamos ordem.
Senti inveja dos artistas, que com o seu instinto criativo conseguem fugir à realidade nas suas obras, sem terem medo de ser apelidados de loucos. Afinal de contas a fronteira entre a loucura e a genialidade é quase imperceptível. A única coisa que as divide possivelmente é o medo. O eterno receio de saltar entre a pequenez e a grandiosidade. Porque no meio está um abismo e a queda pode ser dolorosa, por isso esquecemo-nos que temos asas e podemos voar para lá do que nos define…

sábado, outubro 14, 2017

Conversas que nunca foram


Tenho saudades tuas.
Fazes-me falta porque nunca te conheci. Sei que nunca nos encontramos, não trocamos palavras de amizade, nem tão pouco um mero cumprimento que seja. Muito menos um cruzar de olhares a sugerir cumplicidade.
Nem imaginas como sinto a tua ausência. Dessas conversas que nunca tivemos sobre o significado da vida nas pausas para um café. Dos pores-do-sol em frente ao mar a beber um refresco qualquer e a rir de piadas mundanas.
Inquietam-me as aventuras que nunca vivemos. Loucuras que nunca cometemos. Memórias que ainda não aconteceram. Idealizo a tua presença para atenuar o marasmo que seria se de facto aqui estivesses.
Sabes, tudo que é normal aborrece-me. Por isso me dizem longínquo e não nego esse fardo. Confesso-te esse meu pequeno segredo. De quem não se contenta com o que aqui está, ou quem me rodeia.
Já reparaste na quantidade de barulho que há no mundo? Tolda-me o pensamento tantas vozes a gritarem coisa nenhuma. Falta-me o sossego da minha mente vadia a dançar em versos num silêncio qualquer. Onde não há companhia as respostas tornam-se perfeitas.
Aconchega-me a ideia de existires sem aqui estares. Poder apelidar-te de amigo sem nunca te conhecer. Lamentar a tua inexistência mesmo ficando aliviado que assim seja.
A saudade perfeita é esta, a que se sente do impossível. Poder dizer que se conseguiu o inalcançável no simples desejo de o ter!

sábado, setembro 30, 2017

Je t'aime en noir et blanc!


Amo-te em preto e branco!
Num retrato dito “vintage” entre o tom escuro e o claro, em traços de cinzento. Como quem colheu a beleza hipnótica da melancolia a atrair no teu olhar, a combinar com a sensualidade da tua pele descolorada.
Desenhada como a lápis de carvão na tela da fotografia. No silêncio da falta de cor, confessas-me segredos infindáveis sobre tua feminilidade e chamas-me com a tua voz calada para contemplar o teu vazio.
Por vezes apaixono-me por momentos, ou imagens, que duram a eternidade de uns breves segundos e ficam gravados na mitologia do esquecimento. Não me contento com a insignificância de um mero “para sempre”. Desejo apenas a luxúria de incontáveis infinitos feitos de poesia e pensamento.
Sou feito de instantes. Pequenos nadas que desnudam a pele da realidade. Sonhos e sentimentos que me revelam a essência da intensidade humana. Como este, em que, as sombras da tua imagem me transportam para as rimas da tua verdade. Versos de desalento pintados a preto e branco numa fotografia silenciosa.

quarta-feira, setembro 27, 2017

Enigma do sonho esquecido


Se te lembrasses de todos os sonhos que tiveste até hoje, quantas vidas já terias vivido enquanto estás a dormir?
Mundos grotescos, bizarros, alternativos, para além da barreira da imaginação. Amor, ódio, medos, conquistas, glórias e fracassos cabem todos nesse cosmos incompreensível que se forma na tua mente enquanto dormes.
Rostos desconhecidos em caras familiares, premonições sem sentido, lugares imensos tão conhecidos como estranhos. Passagens sem nexo aparente, ou talvez cheias de verdades insuportáveis. Tudo é enigma quando a mente adormece nos braços da fantasia. Se do sentido da vida pouco se conhece, quem sabe a origem do sonho?
Por algum motivo que nos é alheio, o Universo, na senda da criação, não quis que nos lembrássemos dessas existências extravagantes que acontecem no nosso ser desacordado. Impera que a consciência, como que em tom de rivalidade, remetesse essas recordações ao esquecimento. Uma espécie de passado alternativo sem lugar na bagagem memória.
Mas nem tudo é esquecimento… Agraciamos os pequenos fragmentos de sonho que teimam em permanecer depois do despertar, como uma chamada de atenção. O seu mistério cativa os seres inquietos e marca a impossibilidade de ignorar o que o sono esconde.

terça-feira, setembro 19, 2017

Seja o teu nome vingança!


Parte.
Parte tudo!
Destrói a realidade.
Contenta-te apenas com o caos!
Bruto,
Violento,
Sedento de sangue!
Na pele dos outros,
Carne em agonia,
Bocas em gritos.
Sonhos desfeitos a calar o teu vazio!
Raiva.
Arde em raiva!
Seja o teu nome vingança!
Selvagem,
Implacável,
Justiça pela tua mão!
Onde mora o mal,
Sem misericórdia,
Hipótese de perdão,
No rosto do arrependimento.
Dor manchada na parede do teu querer!
Rasga.
Rasga tudo!
Sem que o passado se escreva.
Desfaz as páginas do livro da mágoa!
Tirano,
Indomável,
Tudo em ti é liberdade!
Não te ditam leis,
Regras castradoras,
Mundo a teus pés.
Alma do desassossego no teu viver!

segunda-feira, setembro 11, 2017

Quem se contenta apenas com o infinito


Existem lugares que, pela sua insignificância, atingem tal grandiosidade que ultrapassam a compreensão. Só aqueles que têm o hábito de contemplar o silêncio podem ousar conhecer um pouco dessa essência.
Sejam pontos onde a natureza tem a liberdade para se exprimir, ou locais onde a arte humana nasceu na imaginação de alguém que por ali passou.
Desenham-se arestas. Produzem-se sons. Emana a Paz!
Não importa o que está além. Quem se contenta apenas com o infinito, ama essa simplicidade, onde o nada se torna imensidão e convida a um momento de paragem para abstracção. Instantes de meditação onde se louva o Universo com todos os seus mistérios e maravilhas.
É assim que se canta uma oração na mente de quem é eternamente insaciável. Só as pequenas coisas podem acalmar a inquietude. Adormece a bravura. Aconchega-se a mansidão. Sem palavras que estraguem o que se fez perfeito. Imenso momento de transcendência…

terça-feira, agosto 29, 2017

Os melancólicos


Nós, os melancólicos, encontramos a felicidade nos pequenos pormenores da vida. Não buscamos um apogeu de alegria pois sabemos que esta é efémera. Queremos apenas a simplicidade de um sorriso honesto.
Nós, os melancólicos, temos um fascínio pela solidão. Gostamos do isolamento e da liberdade de não depender de mais ninguém a não ser dos nossos próprios pensamentos, longe de quem vive o fado da banalidade.
Nós, os melancólicos, observamos os outros. A coberto da nossa distância passamos despercebidos entre os demais. Somos como mais um na multidão, sem que o nosso ser seja distraído pelas ambições que o mundo tem.
Nós, os melancólicos, conhecemo-nos na poesia. Como quem conversa intimamente com desconhecidos nos versos da nossa inquietude, a partilhar segredos obscuros nas palavras rimadas da nossa fantasia.
Nós, os melancólicos, amamos o infinito, onde não há fronteiras que nos imponham impossíveis. Queremos ter por destino o que está longe e nessa viagem expandir a nossa mente até ao inacreditável.
Nós, os melancólicos, repudiamos a tristeza pois conhecemos a sua sombra. Procuramos refúgio na noite como vampiros, ainda assim amamos a luz do sol e o calor, pois o fardo da escuridão na alma é demasiado penoso.
Nós, os melancólicos, temos o nosso nome escrito no livro da sabedoria. Fomos abençoados com a maldição de buscar o conhecimento. Abraçamos o castigo de caminhar em direcção à gnose. Convictos da nossa vontade, neste destino eternamente insaciável...

segunda-feira, agosto 07, 2017

A criatividade de quem vive inquieto


A verdadeira religião não tem nome. Nem rituais pré-estabelecidos. Não tem sequer regras. Obviamente que a espécie humana tinha de tentar compreender aquilo que entende como divino. Claro que na sua ignorância, e num acto totalmente imbecil, dividiu a Fé naquilo a que chama “religiões”. O que resultou dessas separações, foi revelar o que existe pior na essência da humanidade. A desunião.
A verdadeira religião não tem um Deus, pois na há nome que Lhe possa ser atribuído. Não tem um santuário, pois todo o Universo é uno consigo. Não tem um tempo, porque o princípio é igual ao fim, e o intermédio apenas uma sensação interpretada pelos sentidos e contabilizada pela ciência. A pequenez da existência apenas reduziu toda esta grandiosidade a algo que possa compreender pela dita lógica.
A verdadeira religião é incompreensível, nem a ciência, nem a teologia, nem filosofia, lhe encontram explicação e certamente, a humanidade presa à sua percepção da existência, não vai encontrar uma orientação que lhe mostre conhecimento. Talvez, se todos pensarem como um, se chegue a alguma conclusão que permita abrir uma porta para o entendimento e o transcendente se torne verdadeiramente próximo.
A verdadeira religião não nega a natureza. Se assim fosse não teríamos sido criados da forma que fomos: planetas e galáxias; masculino e feminino; animais e plantas; crescimento e aprendizagem. O desejo e a curiosidade são parte integrante da nossa essência tanto quanto a nossa carne e sem dúvida alguma parte integrante da criação. Querer anular esta verdade é afastar tudo que é divino.
A verdadeira religião é um caminho que nos guia a um propósito desconhecido. Sem entender a sabedoria como um pecado mas sim como o único meio de alcançar todos os mistérios da criação. Para além daquilo que nos ensinam, ou do que os nossos sentidos nos mostram, existe urgência em derrubar impossíveis e não criar limites naquilo que deve ser um mundo aberto para conquistar pelo raciocínio e pelo sentir.
A verdadeira religião começa no silêncio. Torna-se embrião no pensamento e explode na arte, no olhar, no tocar, na criatividade de quem vive inquieto. No saber daqueles que se apelidam génios e não se conformam com leis castradoras de ideias, vindas da autoridade mirrada de quem não sonha. É uma energia intensa que pulsa com vontade própria na pele daqueles que vivem para além deles mesmos.
A verdadeira religião está no teu coração de criança que brincava ao amanhã!

segunda-feira, julho 31, 2017

Música em sentimentos - 1 de Agosto (É já amanhã!)

Música: 1º de Agosto
Interprete: Xutos & Pontapés
Álbum: 1º de Agosto no Rock Rendez-Vous
Ano: 2000
Duração: 3,54 m
Estilo: Rock



Decidi reavivar esta rúbrica para falar acerca desta pequena grande música, que praticamente passa despercebida no repertório dos Xutos. Ainda assim merece uma grande atenção!
Mas afinal o que é que tem de especial?
A melodia começa num tom descontraído, a fazer lembrar férias e Verão. A letra vem confirmar isso mesmo. Reporta-nos para os Agostos dos anos 80, onde eu era criança, em que Agosto era o mês das férias e da praia por excelência. Não admira que o primeiro dia deste mês fosse de grande excitação, pois era para muita gente, como aliás ainda hoje o é, o primeiro dia de férias e praia. Ficar estendido ao sol sem grandes preocupações, a não ser a de ficar morenos… Bons tempos! (Como dizem os mais velhos) 
Escrever uma música sobre isto com um poema tão simples e no entanto tão eficaz, é de uma genialidade que só os Xutos, nos anos 80, conseguiam fazer.
Para mim é uma música obrigatória no dia 31 de Julho, já que também eu costumo fazer algumas férias em Agosto e simplesmente viver tranquilo. 
Resta acrescentar o facto, de que, o dia 1 de Agosto marca também o aniversário deste blog. Logo, só por si, uma boa data por estes lados.
Assim sendo, acompanho os Xutos na euforia. Tudo em mim é um fogo posto porque amanhã é dia 1 de Agosto! 
Aproveitem, apaixonem-se, tenham aventuras e curtam o sol :D

Letra:
É amanha dia 1º de Agosto
E tudo em mim é um fogo posto
Sacola ás costas, cantante na mão
Enterro os pés no calor do chão
É tanto o sol pelo caminho
Que vendo um, não me sinto sózinho
Todos os anos, em praias diferentes
Se buscam corpos sedosos e quentes

Adoro ver a praia dourada
O estranho brilho da areia molhada
Mergulho verde nas ondas do mar
Procuro o fundo pra lhe tocar
Estendido ao sol, sem nada dizer
Sorriso aberto de puro prazer

sábado, julho 29, 2017

Um viver a que eu possa chamar lar


Alguém sabe onde mora o infinito?
É que hoje tenho vontade de descobrir coisa nenhuma
Fala-me palavras sem nexo para que construa um poema
Escrever nada de certo sobre o que me foi dito

Alguém sabe onde está o destino?
É que para quem anda perdido é necessário um guia
Dá-me uma desculpa qualquer para todos os desaires da vida
Sonhar como se fosse verdade tudo que imagino

Alguém sabe onde fica aqui mesmo?
É que andar por aqui às voltas não me leva a lado nenhum
Sabia-me bem ficar parado em vez de não chegar a lugar algum
Caminhar é duro para quem não sente entusiasmo

Alguém sabe onde me encontrar?
É que ser outro qualquer a vestir a minha carne adormece
Conta-me como sou para me poder arrancar de quem esquece
Chegar por fim a um viver a que eu possa chamar lar

quarta-feira, julho 19, 2017

O ventre do pensamento alheio


A ficção não tem limites. Preparem-se para o desconhecido cada vez que abrem um livro. Abandonem-se a vós mesmos sempre que entram nesse caminho, pois essa é a verdadeira porta do mistério.
A história já não é vossa. O trilho, não foram vocês que o traçaram. As personagens nasceram do ventre do pensamento alheio. Os vossos olhos vestem essas peles vindas de outra imaginação. A vossa ideia traça outros cenários ditados pela vontade de outros.
Cores, cheiros, dores e prazeres, são narrados aos sentidos e fazem-se reais nos parágrafos da inquietação. Medos e desejos são moldados na fonte da ansiedade. Amores e ódios vivenciados como quem gosta de sentir o fio de uma lâmina afiada.
Parados, viajam para longe a mundos desconhecidos, de páginas abertas na mão, pintadas por palavras escritas com o poder que o sonho tem. Tudo isto vai muito para além de vocês, ao apogeu que a aventura leva.
Se os romances vieram provar alguma coisa, é de que Deus não é o único criador de universos e destinos. Nós, humanos, dotados apenas de cérebro e dita inteligência, podemos construir o infinito na ponta de uma caneta e na imensidão de uma folha em branco.
Quem de entre vós nunca se esqueceu nas suas próprias lembranças e sentimentos, para viver os poemas que os outros rimaram?
Aqui reside a verdadeira sabedoria. Na imaginação que nos foi concedida pela gnose do Universo!

quinta-feira, julho 13, 2017

Não peças licença


Aprende a olhar directamente na íris das pessoas para saberes o que vai dentro da sua mente.
Encara-os de frente. Sem medo. Com a chama de todo o teu ser projectada na tua imagem. A mirar, sem clemência, para a essência deles próprios.
Despe-lhes o espírito. Derruba muralhas. Abre as portas mais íntimas, não como um invasor, mas antes, como senhor desses esconderijos no pensamento privado. Chama a ti todos os segredos da centelha alheia, como se fosses tu próprio o dono desses recantos.
Não peças licença, pois um amo não necessita de permissão. Mergulha na cor dos olhos para viajares na constelação da alma. Entra com a violência do silêncio onde o âmago se acha intocável.
Deixa que a telepatia nasça nas asas da tua ousadia. Doma o cosmos dos outros como quem é imenso e na tua voz calada espelha a tua vontade…

sexta-feira, julho 07, 2017

As nádegas


Gosto genuinamente de mulheres com cu grande.
Não me refiro àquelas que, com um corpo mediano, têm a ideia, quase insultuosa, de que lá porque o seu traseiro se evidencia ligeiramente para além da silhueta, o acham gordo! Nada disso!
Falo daquelas, com um pouco de gordura, vulgarmente apelidadas de “roliças” e que têm a zona das ancas bastante alargada, fazendo surgir umas nádegas exageradamente proeminentes. De tal maneira que o seu andar se torna um pouco arqueado.
As calças justas e bem preenchidas que evidenciam esta característica, convidam a pensamentos mais lascivos (chamemos assim). Como por exemplo, poder debruçar aquele corpo torneado numa superfície qualquer, seja uma mesa, cama, ou o que estiver ali mais perto e como um cavaleiro tomá-la por trás, fazendo dos seus cabelos as minhas rédeas.
Sei bem que aquelas nádegas bem encorpadas, resistem (e até imploram) um pouco de dor. Umas palmadas bem assentes e a agressividade dos meus dedos enterrados na sua carne volumosa. Marcar a vermelho agreste os contornos dominadores da palma da minha mão, enquanto faço o desejo furioso entrar na essência do prazer.
Não quero com isto ser mal interpretado, como se reduzisse a mulher a um simples utensílio para perversões, pelo contrário, faço-o para reverenciar o expoente da feminilidade. Existem outras luxurias igualmente interessantes no meu íntimo, acreditem. Embora hoje me tenha apetecido partilhar convosco esta. Nada de julgamentos, é apenas a natureza a cumprir os seus desígnios.

quinta-feira, junho 22, 2017

Infinita ironia


Ali estava ele cheio de expectativas para o futuro, momentos antes do espectáculo começar. Era jovem, cheio de ideias, de planos e projectos para concretizar, carregado de energia. Pronto para ser o herói daquela encenação magnífica. Nada podia destruir a sua vitalidade. O seu momento de glória estava próximo.
No entanto, Deus, na  sua infinita ironia estalou nos dedos esboçando um sorriso malandro. Então, com a Sua ordem, todo o palco ruiu  em segundos, transformando o cenário em escombros.
A sua inocência caiu por terra. Vieram as lágrimas, a dor, a mágoa, a tristeza e a desilusão. O espectáculo ficou adiado. Para  breve disseram os homens na sua ignorância (ou hipocrisia). Ele acreditou e aguardou. Afinal que mais podia fazer? Restava-lhe acreditar na mentira.
O tempo passou. O breve que lhe haviam prometido teimava em tardar mais e mais. E atrás dos tempos vieram mais tempos, longos e insípidos. A audiência cansou-se de esperar e rapidamente abandonaram a sala. Um após outro. Sem hesitarem, sem interesse e sem vontade de voltarem.
O guião da peça já há muito que tinha ficado esquecido. Ou melhor, destruído pela revolta, o ódio, a raiva e a fúria. De nada servia, já que o cenário foi erradicado para sempre devido a um capricho divino.
Ele, o outrora futuro herói, ficou sozinho. Até as emoções o abandonaram. Restou a esperança, como é seu dever, para lhe fazer companhia nas longas horas de vazio. Mas mesmo essa o abandonou. Afinal porque havia de o acompanhar, se já nem na mentira acreditava?
Então, sem esperança, tudo desapareceu. Até a solidão deixou de doer, também foi embora como tudo o resto. Ele ficou vazio, desprovido de ambição, desejo ou vontade. Para o resto das pessoas ele ficou esquecido para gáudio delas. Arrumado, ocultado, demasiado longe das suas memórias. Ele tornou-se nada.
Foi então que, no meio da nulidade em que tornara, se apercebeu que estava livre. Solto de sentimentos humanos que nada mais causam do que mágoa. Sem o peso da consciência a acusa-lo dos pecados humanos. Sem a ganância a pressiona-lo. Liberto dos grilhões que o prendem à existência mundana.
E também estava rico, pois o vazio podia ser preenchido a seu bel-prazer e por isso tornou-se o seu novo palco. Transformou-se, então, num artista, guerreiro, poeta, criador, a preencher a sua nova existência apenas com a sua vontade… De certa forma rival de Deus, que na Sua infinita ironia, foi derrotado! Ou, com tanto sofrimento, teceu o destino que sempre desejou àquele homem. Quem saberá dizer?

quinta-feira, junho 15, 2017

As palavras da alvorada


Brinca poeta, com as tuas palavras a versar
Inquietação que nasce ao anoitecer
Caneta que implora para escrever
Devaneios soltos até o amanhecer
Perde-te poeta, nesse teu sonho a rimar
Deste mundo está longe o teu viver
Para outros sentidos todo o querer
Além do pensamento o engrandecer
Viaja poeta, por essas paisagens a imaginar
Mágoa sombria que não deixa esquecer
Amante melancolia com corpo de mulher
Escritos nascidos do silêncio do teu dizer
Acredita poeta, que um dia a tristeza vai acabar
Ao longe onde o destino está acontecer
Olha para lá com ânsia de o conhecer
Sem medo do trilho incerto a percorrer
Caminha poeta, essa estrada tem muito a mostrar
Letras que pintam de cor o alvorecer
Enigmas decifrados nesse transcender
Entrega-te à fantasia com todo o teu ser
Rima poeta, conta a todos o segredo de amar

terça-feira, junho 06, 2017

A metáfora do abismo


Por vezes, quando me aproximo perigosamente da berma do abismo, entre as minhas vertigens, gosto de encarar as suas profundezas infinitas!
Nesses momentos, juro que consigo ouvir o sussurro da sua voz gutural e sedutora a chamar o meu nome. Desdenho do perigo e deixo esse chamamento traduzir-se em tonturas que me tomam o corpo, assim como uma sudorese anestesiante, que me unta a pele.
Sonho em saltar. Mas sei bem que se o fizer, nunca iria tocar violentamente o fundo numa queda impiedosa. Em vez disso, abriria umas asas, tão negras que toda a luz que as ousasse desafiar seria ofuscada pela sua escuridão.
Voava entre as escarpas com a mestria de um anjo (ou de um demónio). Cruzava sem incertezas as paisagens frias dos escombros da vida, para depois voltar novamente a esta berma onde me encontro agora, sem qualquer tipo de medo que me tolde a coragem.
Entretanto, amaldiçoo esta metáfora do abismo… Quem, de entre os poetas deste mundo que cantam a melancolia, nunca a usou?
Todos!
Todos quiseram saltar!
Todos quiseram voar!
Todos assim o rimaram!
Todos se repetiram!
Tal como eu!
Assim declaro que maldito seja o abismo e o desejo de o sentir…

sexta-feira, junho 02, 2017

O sabor


Foi acordado por uma fada que dançava alegremente no seu rosto. Deixou-se ficar com os olhos fechados. Não tanto por preguiça, mas para que ela continuasse a sua dança e fizesse da sua face um palco para a magia, enquanto o julgava adormecido.
Passeava em rodopios e em saltos pelas suas feições, animada pelo chilrear de um pássaro pela manhã e o sol primaveril que irradiava da janela. Ele estava agradecido por aquela minúscula criatura, filha da fantasia, o tivesse escolhido para o pouso do seu bailado.
Tinha tempo de despertar. Momentos em que o mistério desce ao mundo dos homens são raros. Por isso, manteve-se imóvel, como espectador da sua própria alegria.
A certo momento decidiu levantar as pálpebras para que observasse a pequena fada. No entanto, ela, com enorme rapidez, transformou-se numa mosca! Não podia cometer a indecência de ser vista por um olhar humano, na sua verdadeira forma elemental.
A sua dança parou. Em vez disso, na sua forma varejeira, percorria-lhe a face com pequenas espetadelas provocadas pelas suas patas agrestes. Chupava a gordura pegajosa que lhe cobria a pele. Restos da transpiração nocturna provocada pelos pesadelos que lhe assombravam o sono.
Aquele suor sabe a sal. Ele conhece bem o sabor. Prova-o a cada grito de tormento que o faz saltar da cama em absoluto terror. A fada, agora na sua forma grotesca, parecia deliciar-se com aquela viscosidade, como se também ela quisesse provar o seu medo!
Sacudiu-a como a qualquer outra mosca. Ainda a tentou matar, mas a dita, com eximia mestria de voo, escapou-se por entre os dedos. Olhou em volta e nada mais restava a não ser a manhã. Sem fadas, sem danças na pele, sem magia. Apenas o gosto vazio da rotina…

segunda-feira, maio 29, 2017

Tempus est e somno expergiscendi


De repente fez-se silêncio e eu acordei!
Não sei para onde foram os outros, nem o ruído que os acompanhava. Apenas soube que despertei, sem a dormência do mundo na sua azáfama.
Senti-me vivo no meio daquele sossego e na quietude do meu corpo. Fiquei, assim, feliz!
Não consigo precisar quanto tempo durou aquele momento. Somente que entrou em mim uma energia com a cor da Paz.
Fiquei imóvel. Se não estivesse sozinho diria, quem me olhasse, que eu estava louco, ou talvez drogado com uma substancia qualquer. Não imaginariam eles, de que eu estava mais lúcido do que alguma vez estivera. Que podia resumir a perfeição àquele breve instante. Meros segundos que a ignorância do relógio teima em contar.
Olhei a cidade inerte, prestes a retomar a sua confusão. Dei conta do seu veneno a corromper a essência da alma. Os sentidos estremecidos pelo grotesco das sensações. Tudo assente numa grandiosa fragilidade a alimentar a ilusão de quem julga sonhar.
É esta a estranha linguagem do Universo, a acariciar os seus próprios fragmentos de consciência. Aqueles que desejaram provar a debilidade da carne.
Depois há um carro que acelera, passos que ecoam pela calçada, vozes que palreiam entre si. Tudo volta onde é suposto estar. Cai de novo o adormecer sobre mim. Mas não sem antes conseguir guardar a sabedoria que roubei àquele escasso estímulo da percepção.
Voltei ao meu caminho.
De repente fez-se confusão e eu adormeci…

quinta-feira, maio 25, 2017

Já foste à internet hoje?


Já viram a quantidade de frases feitas que pairam na internet?
Se conseguir ler metade delas, creio que fico com um doutoramento, ou dois, de filosofia para ter à mão. Posso até tornar-me mestre nessa arte. Tirar um curso na “universidade da vida”, como contam alguns perfis nas redes sociais.
Gosto de as ler. São como cartões que servem de instruções para viver. Faz isto, faz aquilo. Pensa assim, pensa assado. Eles são loucos, eles são invejosos. Podia fazer umas quantas teses, só com essas citações tiradas do intelecto iluminado de um génio qualquer, que viu os seus pensamentos serem partilhados a torto e a direito, sujeitos a qualquer interpretação.
Sempre que me atravesso com uma destas leituras rápidas, não deixo de me interrogar se aquilo é levado a sério, ou é apenas uma publicação cujo intuito passa apenas por ser bonito?
Deixo, como deve acontecer, o impulso de julgar os outros de lado, pois cada um tem o seu caminho e as suas escolhas. Quem sou eu para criticar?
Olho para mim e para a minha própria aprendizagem. Analiso os trechos que decido assimilar, e também distribuir com o mundo. Frases que sinto verdadeiramente que fazem parte de mim. Uma ou duas linhas de pura sabedoria que encerram em si todo um infinito de ideias, resumidas a uma simples partilha no ciberespaço.
Cheguei à conclusão que todos que o fazem dão um pouco de si. Seja muito ou pouco, trata-se de um ensinamento e tal como qualquer outro ensinamento, decidimos guardar, ou simplesmente esquecer…
Já viram a quantidade de vidas por acontecer que pairam na internet?

sábado, maio 20, 2017

A Poesia mais Perfeita


Quem ama a vida também ama a Primavera, assim como quem ama a alegria também ama as cores do arco íris.
O sol tranquilo e os sons da criação, revitalizam a energia de que é feito o universo, as estrelas e os sonhos.
A natureza renasce, assim como quem não se acomoda renasce a cada descoberta. Em cada ciclo que passa vai acontecendo uma pequena mudança e ao longe tudo fica diferente.
Cada destino alcançado, vai enriquecendo o caminho daquele que viaja em busca da sabedoria, sabendo que, algures no seu destino, vai encontrar a sua própria paz de espírito.
Os bosques cantam o seu verde, assim como os homens cantam o dia. Louvam-se os deuses pelo dom da existência. Tocam-se os corpos agradecendo o dom de amar.
Germinam as sementes plantadas. Crescem com a força com que a mãe Terra as impulsiona.
Tudo tão simples. Tudo tão belo. Tudo tão perfeito. Quem ama a vida também ama a arte e engrandece toda esta poesia, pois nela vê o segredo da felicidade…

terça-feira, maio 16, 2017

A amizade (O Narrador IX)


Cá estamos novamente a narrar as amarguras da vida!
A verdade pode ser muito dolorosa, ou pelo menos, extremamente aborrecida.
Estás num daqueles momentos de clareza existencial absoluta em que percebes que os que te rodeiam e te são mais próximos, a quem, no mínimo de interação social que te resta, denominas de ‘amigos’, não passam de pessoas enfadonhas. Gente que, apesar de terem no seu íntimo a semente da inquietude, preferem entregar-se ao discurso fatigante sobre as banalidades humanas. Sentes um cansaço na alma só de os ouvir!
Pois bem! Para o diabo que os carregue!
Abandona-os. Entrega-te tu ao silêncio e à tua própria solidão. Não deixes que essas sanguessugas, a coberto da moral do sentimento da amizade, te roubem o tempo, os devaneios e a pouca paz de espírito que tanto fizeste para merecer.
São como vampiros a drenar-te a energia anímica, enquanto tomam a tua atenção com as suas histórias enfadonhas sobre as vulgaridades do dia-a-dia. Já reparaste no cansaço que se abate sobre ti quando se vão embora?
É isso que fazem: cansam! Roubam! Contaminam a positividade que existe em ti! Desgastam essa energia que te é essencial, sem nunca a chegares a usar em quem devias: na tua própria pessoa.
Vira-lhes as costas e deixa-os a falar para a tua ausência. O que não te falta são caminhos a percorrer. Além disso, o que há com abundancia no mundo são vozes com algo a dizer. Por isso não fiques aí na paralisia do que te ensinam que “assim é que deve ser”. Faz isso, faz aquilo, porque assim é que é correcto. Mentira! Apodreces sem história em dias seguidos de momentos iguais, até que um dia o espelho te diga que o tempo passou e tu desapareceste com ele.
Todas aquelas frases feitas que são partilhadas na internet, com imagens todas bonitas, a bendizer a amizade são uma grande mentira. Um aconchego para tentar iludir o vazio que a individualidade te impõe. Chegas à conclusão de que quem as inventou não tinha vida própria. Restou usar palavreado bonito para iludir umas quantas pobres almas a dar-lhe atenção em troco de ilusões vazias.
Analisas as fotos partilhadas nas redes sociais onde te ‘marcaram’ com toda a pompa e circunstância. Toda a gente a posar para a câmara. Todos com sorrisos abertos, cheios de alegria para provar em imagem que a felicidade habita naqueles corpos. Pois bem! Dou-te as boas vindas ao palco da vida onde todos são actores numa peça de teatro! Sem esquecer que todos são em simultâneo espectadores duma felicidade encenada!
Onde está a tua alma no meio disto tudo?
A gritar por um pouco de verdade!
São estes os teus ‘amigos’! Os mesmos que te magoam e a quem tu magoas de volta, como se fosse um jogo a imitar um filme ou uma novela. Somos todos heróis, sem que ninguém queira interpretar o papel de vilão. Talvez nessa posição se encontre um pouco de verdade, pois os maus da fita terminam sempre sozinhos.
A solidão!
Já aqui estivemos tantas vezes… A narrar as maleitas e potencialidades deste sentimento incompreendido. No entanto, se não me turva a memória, nunca o fizemos em contexto de amizade. Quando um ínfimo de inocência que vive (e sempre viverá) em ti, procura a salvação na frágil moralidade de outro ser humano qualquer. O resultado dessa equação termina quase sempre em desilusão!
E tu sabes bem disso. Estudaste essa lição vezes e vezes sem conta para falhar no teste constantemente. Se tens de culpar alguém porque te magoaram, essa pessoa és tu!
Só tu!
Apenas tu!
Não és o centro do mundo e ninguém te deve nada. Sobra a eterna culpa de esperar alguma coisa dos outros como um mendigo implora uma esmola.
Faço um pouco de silêncio para que possas percorrer a berma do abismo, entre a verdade e o choro.

Agora, depois de o teu espírito acordar. Louvo-te por ainda tentares viver a amizade, mesmo que esta só tenha o destino de magoar. O amor tem muitas faces e os amigos são uma delas.
Para além do que a solidão oferece, existem os outros, que tal como tu escolheram um caminho. Seja por que motivo for, é essa estrada que seguem. Não nos cabe a nós julgar e muito menos exigir que nos agradem. Ou vice-versa…
A criança que um dia foste, a brincar no recreio e que acreditava em contos de fada, ainda reside num canto qualquer do teu fado. E seja porque motivo for, continua a pesar nas tuas escolhas, mesmo que estas levem à decepção.
Acreditar no impossível pode parecer um ‘cliché’ bonito para se publicar na internet mesmo que a alma doa. Ainda assim acreditas. Para além da religião, filosofia ou novelas. Acreditas que tudo pode ser melhor. Isso é bonito. É como um dom. Um tesouro que te torna especial…
Perdoa-me a dureza das palavras. Só quero que a mágoa te passe ao lado.
No entanto, de que vale isso se sem a tua inocência continuas sem chegar a lado nenhum?
Deixo-te por agora.
Já tomei muito tempo da tua atenção na minha função de narrar…

sábado, maio 13, 2017

O Encontro


Num instante olho para ti quando te aproximas. Algo na minha inquietação faz com que me questione quem és tu?
Não tenho intenção de te conhecer. No máximo cumprimento-te secamente, assim que nos cruzarmos e os nossos olhares concordarem, se o universo assim o desejar. Somente isso.
Para mim não passas de uma interrogação. Uma história que ninguém me contou. Um mundo que está longe e não me atrai. Apenas isso. Ou tudo isso! Porque na vida existem incontáveis encontros insignificantes como este. Gente com alma e sonhos que se atravessa na rua.
Instantes que não servem para nada. Momentos perdidos que têm como destino serem atirados para o baú do esquecimento. Apesar disso, com a sua pequenez, conseguem ao mesmo tempo, preencher o pensamento de quem se questiona sobre a existência…

sexta-feira, maio 05, 2017

«Hello darkness my old friend»


Hoje sinto uma pesada solidão.
Das inúmeras almas que me rodeiam não existe nenhuma que me ofereça um ínfimo de companhia.
Também assim está o meu grito. Calado. A trespassar violentamente os ouvidos surdos que não o escutam.
Percorro, errante, os caminhos sem destino deste labirinto a que chamo mundo.
O universo também decidiu que neste dia não me acolhia como um dos seus filhos no conforto da sua imensidão. Não responde às minhas súplicas, nem tão pouco me revela um caminho para a sabedoria.
Parece que as minhas próprias crenças decidiram virar-me as costas, até que decida acordar da humanidade que subitamente me vestiu.
Sobrou a escrita.
Sem devaneios para descrever, sem aventuras que me impulsionem, nem paixões que nascem, resta a tristeza do momento.
Está na natureza de quem tem carne, repelir a felicidade de vez em quando. Seja porque a vida é cruel, a realidade não é a que esperamos, ou pura e simplesmente porque o acto de ser feliz é contranatura.
Nada mais tenho a confessar. São estes os meus pecados e as palavras também não se querem compadecer de mim.
Não há alento.
Dói esta minha senda solitária…

quarta-feira, abril 26, 2017

As borboletas


O silêncio era sepulcral. Parecia que o mundo se tinha calado para assistir àquela cena sórdida. A rua tinha-se aquietado. Todo o movimento cessara. Uns quantos corpos inertes, salpicavam os passeios, janelas e varandas. Limitavam-se a olhar sem tentar a ousadia do movimento. Em todos sobressaia a expressão facial de espanto misturada com pavor, acusada pela boca entreaberta.
O chiar de um velho motor em movimento quebrava a mudez sombria que se tinha instalado em todo aquele caminho. Um jovem, a quem a enfermidade tinha deformado a fisionomia e inutilizado os músculos, conduzia uma cadeira de rodas desgastada pelo tempo e cuja ferrugem tinha roubado a cor. Seguia decidido pelo asfalto dentro, entre as entranhas daquela cidade temerosa.
Os automóveis pararam, em sinal de reverência, para que a passagem daquele ser de olhar determinado fosse uma prioridade. Ou melhor, uma espécie de cortesia ao que mais grotesco existe na essência humana.
O rapaz, só por si, não constituía um espectáculo digno deste descrever. A sua existência era apenas o resultado da miséria, a qual a sociedade aprendeu a ignorar, para que a sua quota de perfeição permanecesse imaculada.
O verdadeiro motivo do assombro daquela gente, era um cadáver de homem em decomposição que, amarrado por uma corda em volta do seu pescoço, era arrastado estrada acima por aquela figura distorcida.
Um cheiro intenso a podridão emanava daquele corpo. Atrás do seu roçar, ia deixando alguns restos pelo chão áspero. Ainda assim, os estômagos revoltosos não se atreviam a soltar o vómito.
Um bom número de grandes borboletas necrófagas, atraídas pelo odor intenso, pousava em cima daquele defunto, para que, também elas, tivessem direito a um pouco da sua carne necrosada.
O rasto de detritos, que ia sendo deixado, mostrava o caminho percorrido por aquela procissão desconcertante. Umas boas centenas de metros por entre a urbe, pintados num tom carmesim.
Para além do ranger irritante do rodar da cadeira, nada mais se escutava. Talvez, para os mais atentos, o ténue som do bater de asas daquelas borboletas infernais, que iam chegando, cada vez mais, para acompanhar o cortejo da desgraça.
A felicidade, que é pregada pelos profetas da ilusão, foi silenciada. O cortejo continua até que alguma alma destemida tenha coragem de o parar. Até lá, assim se cala o frenesim da aparência vívida dessas gentes mundanas: Com a inercia dos estarrecidos…

quinta-feira, abril 20, 2017

Lápis do infinito


Dei por mim a mendigar carinho. Ainda pior! Como um proscrito a suplicar companhia. Esqueci-me do universo que há em mim para me rebaixar à pequenez da condição humana, com medo da solidão, a buscar uma migalha de atenção.
Deu-me nojo da minha pessoa.
Virei as costas ao rosto que desejava cativar a meio de uma conversa qualquer. Na minha vergonha esperei vir a tempo de recuperar a dignidade. Como um pecador arrependido penitenciei-me pela minha falta contra a gnose.
Onde estão os meus sonhos?
O que tornou a minha vontade casta?
Onde estou eu?
Tornei-me invisível aos olhos dos carnais. Recolhi-me aos confins da minha essência. Entreguei-me despido de rótulos à forja da minha criação e numa réstia de humildade implorei para renascer.
Pó das estrelas com figura de gente. Carne desenhada com o lápis do infinito. Entendimento gerado na ideia da criação. Assim sou eu!
Rogo à sabedoria para nunca me esquecer dessa verdade…

terça-feira, fevereiro 28, 2017

A lucidez


Por vezes acordo com uma lucidez absoluta.
Vejo claramente para além de mim e de todos os sonhos que me constroem. Consigo aperceber-me da verdade do mundo. Uma revelação com tanto de fascinante como de assombro.
Na solidão do Universo criou-se a vida para que haja companhia!
Mesmo assim os seres humanos entendem-se pela sua individualidade. Aquilo que pregam por simpatia não passa de uma mentira egoísta para alargar sua própria personalidade aos outros.
Estas palavras provam isso mesmo, pois não estou a ir além do meu próprio existir. Tenho limites rimados por poesia melancólica. Certamente existem pessoas ímpares algures nesta realidade, pautadas pela benevolência. Quem sabe, mesmo aqui ao lado em frente a mim. Como estou entregue ao meu eu, embriagado em desejos e sentimentos, não me apercebo e deixo-me seguir a minha vontade adulterada.
Contudo, acredito numa mensagem de esperança. Há que ter o mínimo de crença de que nem tudo é ilusão. Se a verdade traz desassossego, então que este seja o combustível para poder verdadeiramente amar!
Por vezes acordo com uma lucidez inquietante…

sábado, fevereiro 25, 2017

Em Fevereiro tem Carnaval


No Carnaval as gentes saem à rua porque é obrigatório ser alegre naqueles dias. Cantam, saltam e dançam. Mascaram os corpos para esconder a podridão que existe em si. Alguns, em simultâneo, aproveitam para fingir aquilo que gostariam de ser. Tudo neles é frustração, pois a vida escapa-lhes durante o resto do ano. Trazem as fantasias para dizerem que é brincadeira, quando na realidade abraçam aquela mentira a pretexto dos festejos e cospem na banalidade em que se tornaram. Tudo fica invadido de cores vivas para disfarçar o negro da sujidade, nas paredes, nas estradas, nos rostos, nas almas de quem tem data marcada para brincar ao ser feliz!
No Carnaval o sino toca a anunciar um funeral. Aquele, que jaz cadáver, está dispensado da folia. A mentira, para ele, já passou. Resta-lhe o conforto da terra fria. Os que o vão velar, esses, assumem a tristeza como um facto, a saudade como um fado e deixam os festejos do lado de fora das paredes chorosas. Devem remeter-se ao esconderijo da sua própria desgraça para que não sejam vistos em público. Tanto pesar parece mal perante quem celebra a ilusão. Cabe-lhes baixar o rosto em sinal de vergonha e calar qualquer lamento, esse direito não lhes assiste até que cheguem as cinzas da quaresma. Até lá que se mantenham no silêncio porque ninguém os quer saber!
No Carnaval ainda há quem definhe na solidão. Os escorraçados, os malucos, os famintos, os aleijados, os velhos que se desenham em rugas e atrofio, porque o seu corpo já não sabe dançar, nem o seu espírito tem vontade de cantar. Tudo que vive neles é a dor. À janela do seu sofrimento, lançam olhares danados aos foliões, que coloridos festejam a mentira. Lançam-lhes injúrias cobertas de ódio e maldição. Cospem naquela indecência com o maior dos desdéns. Atiram-lhes pedras inflamadas com raiva de quem está abandonado. Enchem-se de nojo perante a sua festança, porque uma máscara merece mais atenção do que aqueles se esquecem na berma da alegria.
No Carnaval também saem à rua os indiferentes. Passeiam-se entre a multidão sem nada que os cative verdadeiramente. Trajam-se com fantasias a rigor para que se misturem melhor entre os que dizem festejar. Quem sabe, se também eles, possam encontrar um pouco de alegria momentânea entre esse mundo em cor. A estes importa-lhes olhar para os demais a saltarem como macacos ensinados ao som da música arranhada. Há um certo fascínio em observar o comportamento dito humano, mesmo que signifique suportar um certo martírio em se confundir com os outros. Depois disso regressam a casa para despirem as mascaras e sentirem o prazer orgásmico do silêncio.
No Carnaval os bêbados arrastam-se pelas ruas em busca de mais um copo. Afinal os festejos providenciam a desculpa perfeita para que se possa beber sem apresentar qualquer satisfação. No resto dos dias, outros pretextos devem existir para ter uma garrafa por perto. Seja como for, a frustração não se engana sozinha e o álcool é um bom amigo daqueles que nada mais querem saber. Pela noite dentro preenchem o vazio na alma com a cor alaranjada da cerveja até que os seus sonhos sejam esquecidos. De manhã acordam deitados sobre o próprio vómito e dejectos, sujos com a própria porcaria e o vicio nas entranhas, forçados a lidar novamente com a crueldade da vida.

domingo, fevereiro 19, 2017

Magnus pisces


Recebeste o dom de Peixes, mistério da tua constelação
Estrelas dançam a tua rebeldia
Na noite o firmamento irradia
Sentes o chamamento de tudo que não tem explicação
Essência aparentemente vazia
Gnose que habita na tua apatia
Como um eremita que se refugia na própria solidão
Olhas o mundo na luz da fantasia
Acreditas que o amor é energia
Guardas, em teus devaneios, universos de emoção
Um sorriso trazes por companhia
As sombras escondes com alegria
Não deixas que te imponham regras afetas da razão
Sem ciência a explicar a ousadia
Vives para domar a melancolia
Toda a tristeza do mundo não te amarga o coração
Dizem-te bruxo na tua sabedoria
Conheces os mistérios da magia
Encantas porque dominas com mestria a imaginação
Falas sonhos através da poesia
Cantas na voz calada da telepatia
Segredas, a quem sonha também, que tudo em ti é paixão

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Dia de S. namorar


Namorar

Deus criou as estrelas para sonhar
Noite quente a engrandecer
Palavras até amanhecer
Segredos cantados no sussurrar

Namorar

Deus criou o espírito para cativar
Química do nosso viver
Simples deixar acontecer
Olhar de infinito onde mergulhar

Namorar

Deus criou o verso para nos rimar
Timidez para vencer
Felicidade a conhecer
Sorrisos que abrem no encontrar

Namorar

Deus criou a beleza para narrar
Silhuetas a percorrer
Bocas chamam a morder
Rostos jovens viajam no beijar

Namorar

Deus criou a carne para a tocar
Sentir a pele a efervescer
Em fogo degustar prazer
Pintar no corpo a arte de amar

Namorar

Deus criou o ventre para gerar
Semente além do dizer
Plantada no transcender
Nascemos de galáxias a dançar

Namorar

Deus criou o tempo para passar
Romance para escrever
Poesia nesse descrever
A paixão criou o momento para o parar