sábado, abril 30, 2022

Duas Dimensões

– Achas que o gajo se drogou para pintar isto? – perguntou enquanto olhavam para o quadro, como se fosse uma tela de cinema.

– Não. Provavelmente viu uma pizza cair na esquina de um móvel qualquer e ficou com esta ideia em mente – respondeu enquanto comia mais uma pipoca.

– Uma pizza em formato de relógio?

– Não… – Riu-se. – Uma pizza redonda como as outras. Os relógios também são redondos, juntou as duas coisas e a ideia nasceu assim. As ideias aparecem dessa forma, ao juntar memórias.

– O Salvador Dalí devia ser do signo Peixes – comentou ao encher a mão de pipocas.

– Lá vens tu com os signos. Os Peixes não são os únicos capazes de criar surrealismo.

– Em matéria de criatividade os Peixes estão no topo da tabela do zodíaco. 

– Já vou ver – bufou. Mastigou mais umas pipocas, pegou no telemóvel e consultou a internet. – Nada disso. Onze de Maio. É Touro –concluiu.

– Então é uma surpresa. Não sabia que os Touros também fazem arte. Adiante. Gosto como de uma coisa em duas dimensões consegue representar um ambiente em três dimensões. Faz-nos viajar com a mente – reflectiu entre os estalidos do seu mastigar.

– É pena não conseguimos entrar lá dentro. Gostava de saber como funcionam as leis da física naquele sítio. Será que algum cientista já ponderou esse estudo?

– Lá estás tu a divagar. Isto é uma obra de arte, a ciência não tem nada a ver com isto. É para observar e pensar.

– Pensar no quê? – O balde de pipocas já começava a mostrar o fundo.

– Como a vida tem os seus limites e através da arte podemos tornar o irreal possível.

Nesse momento a conversa foi interrompida. Dezenas de polícias armados até aos dentes irromperam pela casa adentro.

– Mãos no ar, vocês estão presos pelo roubo no quadro “A Persistência da Memória”!

Riam como crianças enquanto obedeciam às ordens.

– Pois! Conseguimos roubar e só agora é que nos apanharam! E isto porque nós mandámos a carta com a nossa morada! – Riram-se ainda mais enquanto os polícias puxavam das algemas para os prender.

– Espero que a comunicação social esteja lá fora. Queremos ter o nosso momento de fama! – Gabavam-se com orgulho por terem conseguido fazer aquele assalto. – Considerem esta a nossa obra de arte!


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita


terça-feira, abril 05, 2022

Sonho voador

 «Hoje é um dia memorável para a jovem República Portuguesa!». Os jornalistas presentes escutavam as palavras do novo Presidente da República, embora dividissem a atenção com o receio da plataforma onde se encontravam cair, pois ela elevava-se cada vez mais no ar como por magia.

O político, de pose orgulhosa, exibindo o seu bigode perfeitamente enrolado nas pontas, continuou a preferir o discurso triunfante. «Guardem na memória esta data na Primavera de mil novecentos e onze. Provamos, com esta tecnologia, sermos capazes de dominar os céus, tal como já fizemos com os oceanos e é com grande euforia que os convidei para esta viagem inaugural.» Apontou vitorioso para o navio alado, ornado com a bandeira Portuguesa, enquanto este se ia erguendo sempre mais alto.

Fez-se ouvir uma salva de palmas por parte dos convidados rendidos à admiração. O presidente chamou o engenheiro responsável por aquela majestosa máquina voadora. Era um rapaz bem vestido, sem qualquer tipo de pelo facial, algo raro naquela época. Mostrava-se envergonhado pelos aplausos. Agradeceu e explicou: «Os meus pares afirmam que motores de combustão são o futuro dos veículos de transporte, mas eu e a minha equipa conseguimos provar o contrário, nós tornamos o motor a vapor muito mais eficiente. Basta uma pequena chama de uma vela, ou mesmo um fósforo, para aquecer toda a caldeira de água. Não precisamos de ocupar espaço com combustíveis, podendo voar durante semanas e até meses. Aquece em pouco tempo e todo o calor gerado é aproveitado, maximizado e utilizado sem desperdício. Vossas excelências podem comprovar por vós mesmos. Por baixo do navio existem bolsas de ar quente fazendo-o subir como um balão. Quando chegarmos à altitude certa, aí sim, os motores vão ser ligados e fazer este magnífico navio alado, a que demos o nome de Dom Afonso Henriques, chegar ao seu destino, do outro lado do Atlântico, no Brasil.»

Os convidados e os jornalistas já começavam a ganhar um certo medo por estarem de pé em cima daquelas enormes asas triangulares. Para lá de possibilitarem o voo, também serviam de plataforma e de varanda, onde as pessoas apoiadas no corrimão podiam observar o mundo lá em baixo. Indiferente aos receios engenheiro continuou a explicação: «Também, devido ao seu desenho aerodinâmico ele pode planar como uma ave durante centenas de quilómetros, tornando-o impossível cair!» Ouviu-se mais uma grande ovação, sendo interrompida pela voz projectada nas cornetas de comunicação.

«Senhoras e senhores, daqui fala o vosso capitão. Chegámos à altura limite de segurança exterior e vamos preparar o voo a grande altitude. Pedimos a todos que entrem a bordo.» Eram dezenas as pessoas a passear pelas asas daquela embarcação aérea peculiar, com um formato pontiagudo na dianteira. Estavam maravilhadas por pairarem acima da cidade, com os habitantes a olhar para eles lá de baixo, perplexos.

O engenheiro indicou o caminho e, para alívio de muitos, entraram de forma ordeira, ocuparam os seus lugares nos quatro pisos do navio, divididos por áreas de lazer, descanso, suites, gabinetes e simples lugares de passageiros. Com todos já instalados no interior, ouviu-se o vapor a circular nos canos e os potentes motores começaram o seu trabalho, propulsionando a enorme aeronave pelo céu dentro, até chegar acima das nuvens. Os viajantes aproximaram-se das janelas, maravilhados pela paisagem. Era mágico. Assistiam a algo que acreditavam ser impossível. Muitos até julgavam estarem num sonho. Todos, sem excepção, elogiavam aquela máquina revolucionária.

Alguns graduados militares aproximaram-se do engenheiro, propondo, dada a capacidade de voo do navio alado, poder largar bombas sobre qualquer país inimigo a partir daquela altitude. O engenheiro declinou e afirmou: «O objectivo desta criação é unir o mundo e não destruir.»

Mais uma vez o capitão falou pelas cornetas: «A partir daqui vamos continuar a nossa viagem a planar, sem usar os motores, nem mais nenhum tipo de combustível, a não ser água e uma pequena chama acesa. Desfrutem a viagem.»

E assim, o ‘Dom Afonso Henriques’, imponente e seguro, tal como um pássaro totalmente confiante nas suas asas, atravessou o oceano Atlântico, por cima de todos os outros navios que navegavam pelo mar. Portugal voltava a fazer história conquistando desta vez os céus!


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita