quarta-feira, dezembro 15, 2021

Amor em tempos modernos

Ele teve o azar de nascer um tipo romântico! As mulheres é que deviam ser românticas e não os homens. A emancipação do sexo feminino trouxe muitas coisas novas, incluindo falarem e praticarem abertamente as suas fantasias. Obviamente que ele não se opunha a este direito essencial, mas ele era apenas um tipo romântico, não percebia nada de taradices. O que ele queria do sexo, pouco mais era do que a posição do missionário e dormir enroscado com a sua amada. Tão simples quanto isso. No entanto, para mal dos seus pecados, a sua namorada era uma pervertida escondida atrás das suas boas maneiras e óculos de leitora compulsiva. Isso levou-os até aquele momento. Afinal de contas o que é que ele percebia de BDSM!?

Alguém se lembrou de escrever um livro chamado ‘As Cinquenta Sombras de Grey’, que deixou as mulheres todas a fantasiar com sadomasoquismo. A namorada dele também leu, gostou e quis experimentar. Insistiu tanto que ele teve de ceder. Agora olhava para o corpo despido dela amarrado na cama, deitada de barriga para baixo, vendada e amordaçada, com o traseiro exposto à sua mercê.

Debaixo da mordaça ela conseguiu exprimir algumas palavras, que mais pareciam grunhidos: “Quando é que começas”!?

Ele engoliu em seco. Não tinha a certeza se tinha coragem para fazer aquilo. Talvez fosse a fantasia de muitos homens, mas não era a dele. Contudo perguntou: “Preparada?”. Ela soltou um sim abafado. Ele subiu o braço e deu a primeira chicotada, sem qualquer reação da parte dela. Bateu mais algumas vezes sem que ela reagisse.

“Cebola!”, acabou por gritar debaixo da mordaça. Era a palavra-passe que tinham combinado para um caso de urgência. Pensou que era uma palavra estranha. Mas se ela gritou é porque algo estava errado! Apressou-se a soltá-la das amarras. “Estás bem?”, perguntou preocupado.

“Que diabo estás tu a fazer?”, respondeu extremamente irritada. Ele encolheu os ombros sem perceber o que se estava a passar. Ela levantou-se bastante incomodada e pegou no chicote que ele usou. Viu com estranheza que não era o mesmo que tinha trazido consigo. “Não acredito que me chicoteaste com um fio de lã”.

“Mas o chicote ia doer muito! Por isso fiz esse de lã para não doer…”, respondeu confuso.

“A ideia é essa! Agora vou eu mostrar-te como se faz! Tira a roupa!”, ordenou ela furiosa.

Ele estava atrapalhado, mas obedeceu prontamente. Ela atirou-o para cima da cama e colocou-o na mesma posição em que ela estava antes, deixando-o totalmente à sua mercê. Amarrou-o severamente e amordaçou-o, enquanto proferia palavras brutas. “Agora vais ver como se faz!”, resmungou ela, dando-lhe uma forte palmada no traseiro. Estranhamente ele achou aquilo tudo muito excitante.

Depois, sem qualquer sinal de aviso ela usou o chicote verdadeiro e... “FWWIIIIP”! Fez-se ouvir o som do cabedal a atravessar o ar.

A partir daqui, acredito que não vale a pena descrever o resto da cena. Passo logo para o dia seguinte. O nosso amigo romântico estava vigorosamente feliz. Isto, apesar dos colegas de trabalho repararem que ele estava com dificuldades em sentar-se…

É assim o amor dos tempos modernos!...


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita


domingo, dezembro 05, 2021

Dia de festa

O menino estava tão bonito, parecia um padre em ponto pequeno. O hábito branco, cabelo penteado imaculadamente e um terço na mão, faziam-no parecer um pequeno anjo, enquanto posava para a fotografia! Quem olhava para ele não podia imaginar que se tratava do maior reguila do vilarejo. Era conhecido por todos os habitantes pelas suas travessuras endiabradas, que, apesar de lhe valerem algumas valentes tareias, nunca deixou de fazer.

Naquele tempo, início dos anos oitenta, a primeira comunhão era um evento extremamente importante nos vilarejos do interior. Um rito marcante de passagem na infância.

Nesse ano, as catequistas treinaram as crianças para um momento especial, em que o padre, durante a celebração, perguntava aos pequenos qual era o dia mais importante da vida deles? Ao que os pequenos respondiam em uníssono: "É o dia da minha comunhão"!

Tudo isto foi ensaiado vezes sem conta até à perfeição. Só que, no dia da missa, com a igreja cheia de gente e toda engalanada, o padre, ao fazer a pergunta, deparou-se com um silêncio total por parte das crianças. Tendo em conta que estavam intimidadas pela solenidade do momento, repetiu, sem que tivesse resposta novamente.

Ao reparar na timidez nos rostos dos pequenos, repetiu uma terceira vez. E mais uma vez ficaram em silêncio, para frustração do padre e das catequistas. Só o nosso pequeno reguila ganhou coragem de tomar a palavra, e com o dedo levantado disse bem alto: “É o dia em que o meu pai mata o porco”!

Isto fez com que uma gargalhada geral percorresse a igreja. Com excepção das catequistas que não esconderam a vergonha, bem como do padre que ficou vermelho de raiva!

Aqui, convém lembrar que o dia da matança do porco era também uma ocasião festiva nos vilarejos do interior. Juntavam-se familiares e amigos em alegre convívio. Comia-se com fartura, bebiam-se uns copos, diziam-se umas piadas, e as regras rígidas daquele tempo pareciam abrandar com esta festa caseira. Tudo à custa do pobre animal, cujo único crime foi ficar gordo. Obviamente que o nosso pequeno traquina gostava desse dia, em que podia fazer umas brincadeiras mais malandrecas e escapar-se dos castigos com facilidade.

Para azar do nosso rapazola, e apesar das gargalhadas que ecoavam na igreja, esta era a sua primeira comunhão e tinha de se portar muito bem. A julgar pela cara de desagrado dos pais (secretamente divertidos), parece que não se ia livrar de umas boas palmadas.

Com tudo isto, o nosso pequeno traquina fez jus à sua fama; o padre e as catequistas aprenderam que as crianças são imprevisíveis; o povo daquele vilarejo ia-se recordar daquela primeira comunhão durante muito tempo; e nas futuras matanças do porco esta história ia ser recordada com entusiasmo por muitos anos.


Texto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita


quinta-feira, dezembro 02, 2021

Eu, que te amo.

Conheci-te desta forma.

Um espírito livre não tem apenas uma imagem, muito menos um só corpo, porque uma história sozinha não basta para tanta imensidão. Tem, contudo, traços comuns a todas as suas personificações. Passeiam-se pela vida como se fossem seres individuais, ligados pela mesma centelha que os distingue de todos os outros. Pequenos pormenores tão insignificantes quanto grandiosos.

Tu és assim.

Talvez não acredites porque o teu fado é duro, desde a semente que te plantou, até que as tuas raízes se entranhem neste mundo tão agreste. Quem sabe não consigas ver a plenitude do azul do céu quando tudo em ti é Verão. Mas eu, que te amo, reconheço a tua poesia em qualquer lugar em que te cruzes comigo.

Cheiras a mar num dia quente.

És praia deserta, com ondas serenas e Natureza tranquila. O teu rosto a contemplar o oceano destaca-se dos demais. Há um Universo inteiro dentro de ti que não cabe numa só vida. Uma juventude antiga que mais parece uma viagem. Gosto desses teus enigmas. Mistérios que guardas na imensidão da tua alma.

És a madrugada vulnerável.

Amas a beleza do pôr-do-sol, apesar de trazer consigo a noite amarga. Termina o dia e abraças a introspeção dos tons alaranjados do crepúsculo. Se existirem lágrimas, guardas para mais tarde, para que caiam tendo as estrelas como testemunhas. Choras em rimas envergonhadas entre um sono leve e sonhos encantados.

Tens sabor de café.

Sorris. A conversa é fácil contigo. Há uma leveza pacífica na tua voz; no teu vestido comprido; na tua silhueta magra; nos adornos peculiares; nos gestos femininos. Sem ocultares as cicatrizes que fazem de ti quem és. A elegância inconfundível do teu rosto assimétrico irradia algo mais que luz. Magia provavelmente. Embora possa ser a paixão a falar.

Vais e vens.

Chegaste, demoraste o teu tempo e foste embora, porque os espíritos livres são assim. Viajantes sem amarras. A percorrer caminhos entre praias, serras e pessoas. Há sempre um local novo a conhecer. Alguém com quem partilhar um pouco dessa essência enigmática, na língua colorida da aventura.

Tens em ti o longe. 

Foste para algures. Já sabia que ias porque olhavas sempre para lá do horizonte, apartada por essa distância inalcançável do pensamento. Contudo, não partiste sem te apresentares. Agora, já te sei reconhecer, para quando voltares com todos os teus nomes e corpos. Todas filhas dessa mesma centelha pela qual me apaixonei.