segunda-feira, janeiro 29, 2018

Nada mais importa a não ser o longe


Engrandeces-te na imagem que te guarda. Sabes que o pensamento viaja mais longe assim, a lugares sem julgamento nem pecado. Com a caligrafia da pele desenhas o poema nas curvas do teu corpo. No berço das estrelas convidas para que te prove. Há em ti um universo que quer nascer e uma lei que torna impossível recusar-te. Mostras que tens sabor a caos e a paz!
Depois cantas estrofes de desejo na lingerie preta que escolhes cuidadosamente. Mostra-se como uma sombra luminosa entre o toque e a flor que se desabrocha. O arrepio mais forte enquanto a fome cresce. Sabes que atiça o feitiço quando despes o vestido. Revelas a essência escondida que se abre humedecida pelo momento. Intensa-se o contraste, o negro, a pele e tu!
Dominas a arte de quem ama além do impossível, por cima da carne e das palavras nos lábios que buscam o beijo. Há o pescoço, as coxas e as costas. Luar erógeno na noite nua. Língua a degustar o sal. Dentes a morder a calma. A linha que se percorre até ao infinito. Os dedos que correm, a boca que naufraga. O querer que se esquece. Nada mais importa a não ser o longe!
Sem reclamar da vida mais que a mágoa, pedes-me um pouco de paraíso. Em mim não existe santidade, porque no teu gemer encontro a fúria do guerreiro. Depois há tudo que se cala na voz dos anjos. O silêncio profundo de quem é imortal. Resta a pausa nos corpos desnudados daqueles que adormecem...

domingo, janeiro 14, 2018

Como quem não se importa


O homem começou a cavar. Espetava a pá no chão com convicção e mestria e atirava a terra para trás das costas. Todos os dias lá estava ele, sozinho, a afundar o buraco apenas com a força braçal.
Quem por ali passava, pelo menos aqueles dotados do dom da curiosidade, observavam o trabalho e não deixava de se questionar qual era o objectivo. Diariamente os braços do homem engrossavam. Da figura franzina que iniciou toda aquela senda pouco restava, a não ser os traços das feições. A sua musculatura reforçava-se à medida que o tamanho da cova aumentava, quer em largura, quer em profundidade. A dureza do trabalho fortaleceu-o, quer física, ostentando um corpo robusto, quer mentalmente, inteiramente determinado no seu objectivo.
Todos os dias o buraco ficava mais fundo, só com a força da vontade.
Certo dia, um jovem, já no fim da adolescência, ousou questionar o homem.
“Para que serve esse buraco”?
Num gesto raro de descanso, o homem pousou a pá, olhou de relanço o rapaz e respondeu.
“Para encontrar companhia”.
Perante a resposta, aparentemente sem nexo, o jovem assumiu o que muitos já diziam. Aquele homem era louco! Mesmo assim, levado pela curiosidade, continuou a questionar.
“Acha que vai desenterrar companhia no fundo desse buraco”?
Desta vez o homem não lhe respondeu. Limitou-se a encolher os ombros, como quem não se importa. Tomou aquela conversa como repouso e logo depois, segurou novamente a pá com robustez e voltou ao trabalho. O jovem ainda aguardou um pouco por um esclarecimento que não veio. Perante o som das pazadas a enterrarem na terra, optou por ir embora.
Nos dias seguintes, sempre que ali passava, o jovem parava por alguns momentos a observar o progresso daquele buraco que continuava a aumentar na direcção das profundezas. Também o homem fazia uma ligeira interrupção e olhava fixamente o rapaz com os seus olhos, azuis profundos, carregados de histórias caladas, cumprimentando-o com um ligeiro aceno de cabeça.
Já, as outras pessoas continuavam o seu caminho, deixaram de ligar àquele homem e ao seu buraco fruto da loucura. Já não havia curiosidade, apenas alienação. Ainda assim ele continuava a escavar sem dar importância a opinião dos outros. Afinal de contas que sabiam eles sobre a sua determinação?
Certo dia, o jovem, a provar o sabor da audácia, resolveu descer ao fundo do buraco. O homem recebeu-o com alguns traços momentâneos de surpresa. Não o impediu. Saudou-o, como sempre, no silêncio do seu olhar intenso. O rapaz também não recorreu à voz. Em vez disso mostrou-lhe a sua própria pá e esperou por algum tipo de instrução. Sem o uso de palavras, o homem, agradeceu a ajuda, e apontou-lhe o local onde escavar. O rapaz anuiu, com os braços ainda franzinos, mas com o espírito pejado de vontade e prontamente iniciou o trabalho.
Já eram dois.