quinta-feira, abril 30, 2015

Sem regaço nem aconchego


Penosa sina descontente
Destino amargo de escravidão
Caminho perpétuo à solidão
Certeza firme em rumo errante

O espírito paira distante

Escondido em meu impreciso
Breve esperança de paraíso
Somente imaginar é o bastante

Doce prazer angustiante

Constante busca pela verdade
Roubar pedaços felicidade
E do pensamento ser amante

É doloroso ser diferente

Viver sempre em desassossego 
Sem regaço nem aconchego
Sentir inquietude eternamente

segunda-feira, abril 27, 2015

Na taberna‏


– O mito da criação está errado. – Disse o velhote dando um gole no vinho.
– Porque dizes isso? – Perguntou, curioso do porquê daquele tema de conversa.
– Repara. Porque haveria Deus de colocar uma maçã numa árvore e dizer a um casal de humanos para não mexer. Isso é praticamente um convite a lá ir. O Criador tinha obrigação de saber que somos seres curiosos, afinal de contas foi ele que nos criou, não é verdade? – Questionou-o de forma retórica.
– Tens razão, faz algum sentido. Então e a cobra? – Contra-argumentou.
– Isso é só uma desculpa esfarrapada. Se não fosse a cobra era outro bicho qualquer. Mais cedo ou mais tarde Eva havia de trincar aquela maçã. Fruto proibido é o mais apetecido. Deus sabia desde o início que isso ia acontecer. Os padres não me convencem do contrário. – Gesticulava entusiasmado enquanto expunha os seus argumentos.
– Tem lógica sim senhor. Nesse caso, na tua opinião, o que achas que aconteceu?
– Nós somos o diabo! – Arregalou os olhos de tal maneira que pareciam querer sair das orbitas – Todos nós somos encarnações do mafarrico. Olha o que te digo.
– Credo homem! Abrenuncio! – Pousou a cerveja rapidamente e bateu três vezes na mesa com o punho fechado.
– Analisa bem a situação. – Aproximou-se mais do outro como se lhe fosse contar um segredo bem guardado. – Deus expulsou o Diabo do paraíso porque ele se achava a Sua criação mais perfeita. Além disso considerava-se rival do próprio Deus e claro que Ele não gostou, por isso enxotou-o para a Terra. Isto, um padre não pode negar.
O ouvinte anuiu. Levou novamente a cerveja à boca como pretexto para se afastar do hálito pútrido do velho, aguardando que continuasse a expor as suas conclusões.
– Achar que somos deuses, isso sim é um comportamento humano. Os políticos acham-se melhores que o povo; os ricos melhores que os pobres; os chefes melhores que os empregados; os lindos melhores que os feios; o vizinho melhor que o outro; a lista continua, estás a ver a ideia. – Parou por momentos enquanto fez uma careta estranha, evidenciando ainda mais as inúmeras rugas profundas que lhe esculpiam o rosto. – E os burros acham-se melhores que os espertos. Este é o meu exemplo favorito!
Dito isto soltou uma gargalhada sonora. Acenou ao taberneiro para pedir mais vinho. – E todos nos achamos deuses… – Concluiu.
O seu parceiro reparou que desde o início daquela conversa, que ainda não levava meia hora, o velho tinha bebido uma garrafa inteira de um tinto bem puxado, sem que se tivesse apercebido.
Estando de visita aquela cidade resolveu seguir o conselho de amigos e passar pela parte velha onde o progresso parece nunca ter chegado. Disseram-lhe que naquele canto escondido existia uma taberna tradicional, no sentido mais acentuado da palavra.
Era verdadeiramente assim. O cheiro a álcool, tabaco e petiscos estava entranhado naquelas paredes já sem cor, tal era o desgaste que tinham. Se tivesse de adivinhar diria que aquele sítio burlesco nunca tinha sofrido uma remodelação, tivesse os anos que tivesse. A higiene também estava esquecida, da mesma forma que as autoridades se esqueceram de fiscalizar o local. Olhou para o chão atentamente, convencido de que a qualquer momento iria surgir uma ratazana para comer os pequenos pedaços de carne e pão que se encontravam caídos debaixo das mesas.
Ainda assim o local estava cheio. Misturavam-se turistas estrangeiros, homens bêbados com aspecto de mendigos, fulanos bem vestidos de aparência mafiosa rodeados por mulheres evidentemente prostitutas e simples transeuntes que paravam para beber o seu copo e ter dois dedos de conversa. Muitos fumavam livremente como se a lei nunca tivesse passado por ali.
O pequeno cubículo que acolhia a taberna parecia ridiculamente pequeno para tanta gente. Mesmo assim cabiam todos sem apertos. Era possivelmente o local menos recomendável onde tinha posto os pés, contudo não hesitou em entrar.
Falaram-lhe num homem tão velho, que parecia que tinha sido esquecido pela própria morte. Passava os seus dias sentado numa mesa junto ao balcão, mirava com os olhos brilhantes todos que entravam como se esperasse companhia. Recomendaram-lhe, se o visse, que se sentasse ao pé dele e lhe passasse uma garrafa de vinho (ou duas como era o caso). Assim o fez.
Mesmo que a lógica lhe recomendasse para sair dali o mais depressa possível, sentou-se ao pé do dito velhote, que ao olhar para ele pareceu esboçar um sorriso alegre por entre a boca completamente desdentada e o emaranhado de rugas que era o seu rosto. Aquela cara era tão bizarra que parecia uma pintura grotesca saída da mente de um artista tomado pela loucura. Pedaços de cabelo branco saltavam rebeldes na sua cabeça. Era impossível tentar adivinhar a idade do pobre homem, sendo a única resposta possível: muitos anos de vida. Mesmo muitos…
O taberneiro, um homem alto, gordo, bastante peludo, na casa dos quarenta que já começava a ser tomado pela calvície, como que a adivinhar (ou conhecedor da rotina) pegou de imediato numa garrafa de vinho tinto e trouxe-a para a mesa. Nesse momento reparou com mais atenção naquele outro personagem pitoresco. Transpirava com alguma abundância, segurava um palito comprido entre os dentes e vestia uma camisola sem mangas, claramente um número abaixo do seu, o que ajudava a evidenciar a barriga peluda. Quando regressou para trás do balcão retomou a limpeza do que aparentava ser sempre o mesmo copo com um pano encardido. Dado o grande número de clientes parecia quase impossível como um só homem os podia servir a todos, embora fosse isso que acontecia pois ninguém reclamava o serviço.
Para ele próprio pediu uma cerveja de garrafa, bem fechadinha, que abriu com as próprias mãos, ainda assim desconfiado em relação ao conteúdo. Já o velhote, entre alguns tremores, de imediato encheu o copo. – Muito obrigado meu amigo. – Disse, expondo a sua gratidão, visivelmente agradado.
– Não tens que agradecer. – Respondeu o visitante sem formalidades. Sentiu-se impelido a tratar aquela figura por “tu”. Da outra parte não houve objecções.
Tinha começado assim aquela conversa incomum sobre a criação.
O velho calou-se enquanto esperava que o taberneiro lhe trouxesse a segunda garrafa, como se só a bebericar um bom tinto pudesse contar a sua visão dos factos. O que provavelmente era verdade. Quando ela chegou voltou a encher o copo, desta vez livre de tremores e logo de seguida deu um gole, lento e saboreado.
– Como te estava a dizer. – Retomou a palavra. – Todos nós somos a encarnação do diabo. Uns mais que outros é claro. Mas cada um de nós é um pedaço de satanás, ora a fazer o que a sua natureza maligna quer, ora em busca infrutífera da redenção. Isto, meu amigo, é a verdade sobre a criação: Todos somos o diabo a ser castigado vidas sem conta aqui na Terra! – Repetiu a frase palavra a palavra com ar sério.
O ouvinte não respondeu. Havia alguma verdade nas palavras do velho demente. Deu um último gole na cerveja já quente e levantou-se, deixando o cliente habitual entregue ao que restava do tinto.
Dirigiu-se ao balcão deixando sobre ele uma nota bem generosa. – Pode ficar com o troco. – Murmurou entre dentes ao taberneiro que de imediato guardou o dinheiro com a sua mão gordurosa.
Saiu, invisível à clientela barulhenta. Lá fora estava a rua à espera. Escurecia, a noite tinha começado a cair entretanto. Havia perdido a noção do tempo que estivera dentro daquele local bizarro. Apertou o casaco melhor para se resguardar do frio que se fez sentir.
As palavras cobertas de insanidade proferidas pelo velho teimavam em pairar de forma sinistra no seu pensamento. Existia algo de verdadeiro nelas. A cada passo que dava a solidão que sentia sempre tornava-se mais forte, como que animada por aquela experiência grotesca. Não a conseguia ignorar nem evitar, como aquele frio trazido pela noite. Doía na alma. “A vida era um castigo”. Concluiu, e deixou-se chorar…

sexta-feira, abril 17, 2015

A ti que não tens nome


Gosto de ti! Sim eu sei que não conheço o teu nome, nem os traços do teu rosto, nem a silhueta do teu corpo ou qualquer tipo de aparência e muito menos as cores que pintam o teu espírito ou os sonhos que o habitam.
Sinceramente pouco me importam pormenores! Interessa-me somente o acto de gostar, sem grande poesia ou romantismo, livre de ser adjectivado como “eterno”. Aliás, o fascínio está em engrandecer esse mero “amar”, reduzindo-o a um momento efémero, praticamente imperceptível que acaba por se perder no esquecimento entre os detalhes do dia-a-dia.
É como um silêncio repentino, que surge no meio da algazarra que te rodeia, durando somente uns insignificantes milésimos de segundo, contudo, suficientes para te dar um instante de alívio, ou mesmo prazer, enquanto te faz a mente escapar para outras ideias.
Uma voz singela e calada, quase nascida na imaginação, que te sussurra encantamentos libidinosos ao ouvido e te faz arrepiar a espinha e humedecer o sexo. Um toque invisível que faz vibrar toda a tua feminilidade fazendo dançar a tua imaginação por entre histórias de encantar: "E se..."
Amo-te assim, de uma forma tão breve quanto uma mera troca de olhares; ou alguém que passa na rua cativando a curiosidade momentaneamente para nunca mais ser visto; ou uma voz que te chama a atenção entre as demais para nunca mais ser escutada; ou até mesmo a silhueta de um corpo que te surge pelo canto do olho, embora logo desapareça entre a multidão.
Um amar tão básico como estes encontros que em segundos te fazem imaginar uma vida, ou somente uma tentação sensual que encontra guarida no pensamento, onde Deus não está a ouvir e onde afinal não é pecado. Um cruzar de vidas tão intenso como passageiro que logo a seguir já não faz parte das tuas recordações.

Nota: dedicado a todas as mulheres que já foram desejadas e desejaram em momentos de segredo já esquecidos

segunda-feira, abril 13, 2015

A invernia


Sobre mim pairam nuvens ameaçadoras carregadas pelo tom brilhante de um sol intenso. Visualizo um negrume tenebroso de céu azul puro. Torna-se o tempo cinzento pintado com cores vivas. Ouvem-se trovões furiosos que gritam o som pacífico do chilrear de pássaros alegres.
Logo começa uma chuvada invisível, violenta, húmida pelo calor do ar seco. O frio gélido entranha-se até aos ossos de tão quente que é. Sopra um vento forte feito da calmaria de uma tarde amena.
A invernia de um dia de Verão coroa a tristeza que me reina o ser. Enoja-me o sentir da minha humanidade no maior expoente do asco. Não há conforto que me agasalhe em dias de saudade em que o amor se ausenta. Cresce uma inquietude que me atormenta. Não é ódio, nem, solidão, nem qualquer tipo de fúria! Somente um desassossego que consome o espírito.
Nenhuma voz é amiga o suficiente, nenhum ombro me oferece qualquer tipo de conforto e nenhuma fé me promete serenidade. Somente a solidão, no sentido mais penoso da palavra me acompanha ao atravessar o ventre do abandono. Resta a apatia, que num acto de misericórdia, ou de castigo, me desumaniza…

segunda-feira, abril 06, 2015

A aparência


Sonhei que me via num espelho, mas a figura que olhava de volta para mim estava assustada. Era um rosto enrugado, tomado pela calvície e por pinceladas grisalhas no cabelo que restava. Tinha medo! Não sabia para onde tinha fugido a juventude.
Aquele reflexo interrogava-me com o seu olhar trémulo como se implorasse que lhe fosse devolvido o vigor de outrora.
Acordei. Fiquei contente que tudo não passasse de um sonho. Que a aparência daquela imagem não fosse verdade. Ser apenas uma ilusão projectada pelo meu sono, que num momento de escárnio, decidiu fazer-me acreditar na velhice.
A minha pele jovem mantinha-se, o cabelo cheio de brilho abundava, a beleza dizia para não me preocupar. Mas eu sabia que era mentira. O tempo é breve e não perdoa. Hoje gozo a perfeição, amanhã vou perder mais uma gota dessa essência, por aí em diante, até que chegue o dia em que o meu oceano se transforme num mero riacho e o meu reflexo seja igual ao daquele sonho.
Sinto apenas medo, não daquele que assusta, mas daquele que é inevitável.
Agora espero e no entretanto vou tentando ignorar o futuro…

quinta-feira, abril 02, 2015

Descobrir quimeras


Há um certo tédio no ar. Certamente a antecipar uma expectativa qualquer. Cresce uma ansiedade no íntimo com a espera de coisa nenhuma. O olhar divaga por lugares longínquos que existem somente no sítio mais abstracto da imaginação. Uma conversa silenciosa acontece connosco mesmos numa língua incompreensível. Em vez do nosso corpo surge uma ausência gritante com a nossa presença.
Que viagem é essa feita para além dos sentidos em busca de sonhos perdidos, ou de fantasias nunca sonhadas?
Uma inexistência inquieta.
Somente um grandioso viver distante, levado no ânimo de quem se dirige para todas as direcções numa pressa quieta de descobrir quimeras.
Os outros, aqueles que se contentam com a banalidade, em um momento breve de loucura impossível, querem alcançar essa distância numa tentativa irrisória de compreender o incompreensível às mãos da humanidade.