sexta-feira, outubro 30, 2015

A melancolia


Hoje sinto-me sombrio, tal como o dia que se deixa anoitecer cedo, submisso ao outono que veio tomar o seu lugar no ciclo da existência.
A música que oiço canta a melancolia em acordes sinistros e poesia amargurada. Lá fora as nuvens escurecem a alegria. Com tirania ameaçam com chuva e vento qualquer vislumbre de felicidade.
As minhas vestes são negras, solidarias com o meu desânimo. Uma mágoa sem nome pinta-me o rosto, realçado pelo cansaço no olhar que, suplicante, chama pelo sono. A ausência de um sorriso na minha face torna-se gritante, tal como a tristeza silenciosa que se apossou de mim.
É tudo tão solitário que a minha própria vontade foi quebrada pela inexistência de determinação. Nem raiva sinto em mim para poder abraçar a revolta e insultar, com violência, o mundo com os seus dissabores.
A minha figura nada mais é do que uma sombra sem emoções que se mistura no cenário outonal. Como se dele fizesse parte, como se fosse seu igual no meu desalento.
Sou um ser recolhido pelo pesar do meu fado, sem contentamento que me anime. Somente sei que algures no meu íntimo deve existir uma semente de esperança que, tal como a natureza, aguarda a primavera.

sexta-feira, outubro 23, 2015

A entrega


Dou por mim a esperar-te. Vem pela madrugada, quando a urbe está em silêncio na obrigação do seu dormir. Sabes que estou aqui, neste oásis do pensar, a aguardar a tua chegada.
Viver é duro pelo fado que a mágoa te impingiu. Fazes das lágrimas as tiras do chicote que te vai flagelando. Resta-te o sonho que, por entre a inquietude, teima em persistir. Quero que me mostres esse teu sonhar para que contemple a sua beleza.
O dia foi sufocante. Os tiranos que te amordaçaram, de ti nada sabem. Reduziram-te ao papel de serviçal, pele que vestes com martírio até que chegue o escuro da noite, com o seu conforto, para te serenar.
Traz-te para mim, ensonada. Certifica-te que te desnudas do mundo e das suas obrigações. Sabes que aquilo que desejo em ti é a tua alma, com todos os seus esconderijos e segredos.
Vem como uma ninfa encantada. Sem receio de seduzir, pois quero despir o teu ser calmamente. Aos poucos ir beijando cada recanto do teu pensamento. Descobrir a erogenia de cada ideia.
Acariciar a tua alma como se tivesse corpo. Percorrer cada curva da tua essência com um toque de luxuria. Deixar o teu querer agitado, como se do teu sexo humedecido se tratasse. Arder num misto de medo e anseio.
Sabes que viajo nas palavras com a magia que só quem sonha compreende. Gosto que a prosa seja erótica, como quem faz amor com a poesia. Iluminar de prazer o âmago do próprio existir entre o infinito e a consciência.
Mantenho-te por isso acordada, subjugando o sono que te quer entorpecer. Atravessar as cortinas da aparência com que te disfarças. És a tua própria opressora e entre suspiros e delírios vou-te derrotando.
Entrega-te à minha avidez sem receio de heresias ou condenações. Há em mim salvação. O sol há-de nascer, mas entretanto há madrugada e nos nossos devaneios os teus pecados serão perdoados…

terça-feira, outubro 20, 2015

A miséria dos outros (O Narrador VII)


Dizes tu que o teu mundo desmoronou! Achas que já nada faz sentido nessa tua vidinha patética. Pois bem, desta vez digo-te algo extremo. Se achas que os teus problemas são pesados tenta fazer isto:
Parte a espinha se queres saber a verdade sobre a vida. Separa os nervos da medula espinal e paralisa o teu corpo para te tornares em algo peculiar. Desfaz a coluna vertebral, ou se preferires esmaga um membro. Mais acima, mais abaixo, tanto faz, desde que fiques aleijado, entrevado, ou deformado.
Já viste o mundo pelos olhos de um paralítico? Encostado a um canto, a olhar pela janela, ou a circundar as ruas sentado numa cadeira de rodas que deambula com dificuldade. Evitar buracos, degraus e outros altos e baixos pelo caminho áspero e impiedoso. O pavimento não se importa com a miséria dos outros, ainda assim é preciso seguir em frente. Por isso continua-se.
Haja obstáculos! Foi Deus que os colocou no caminho para tornar as pessoas mais fortes! Pelo menos é o que dizem as frases que se vão espalhando pela internet… Quem diz isso, ou nunca teve um fardo pesado para carregar, ou tenta com todas as suas forças acreditar nisso para aliviar o peso, ou então acredita mesmo nessas palavras. Sim é possível acreditar e aceitar a dureza. Mas são raros! Adiante.
E os “pobres coitados” dos “aleijados” (como lhes chamam as velhas) vão em frente. Mesmo indo devagar o longe está à espera. Já alguma vez viste um “aleijado” na rua? Tiveste pena ou ignoraste? Ou já te interrogaste sobre o que ele sente? Sim, porque eles também sentem e observam melhor que ninguém tudo que está à volta. Incluindo tu. Sim tu, que passas diante dele!
As pessoas andam de um lugar para o outro. Na presença de um enjeitado, há os que olham para o outro lado, na sua perfeita beleza e saúde, tentando ignorar o quão cruel pode ser a condição humana. Mais à frente esquecem, adiando o confronto com a própria carne. Sabem bem que um dia, se não for antes, as rugas e a demência vão reclamar o que é seu! Nessa altura, e só nesse momento, terão de se preocupar com a miséria do seu destino.
Há os curiosos. Ávidos por uma boa história dramática. Gente básica que procura entretenimento na desgraça alheia. São como abutres que se abeiram para conhecer os pormenores mais sórdidos da incapacidade do “coitado”. (Já referi que é assim que lhes chamam as velhas, mas não só.) Seja na televisão, no jornal, na vizinhança, ou na rua entre um desconhecido qualquer. Haja paciência para aturar essa gentinha ignorante, com o cérebro mirrado pelo preconceito, que deseja somente da vida uma boa história mórbida para contar aos seus iguais em conversas vazias.
Depois há os genuinamente simpáticos. “De bem com a vida” como dizem os brasileiros. Sorriem naturalmente, de forma aberta e contagiante. Pode-se ganhar o dia só por contemplar um sorriso desses! E isso vale tanto para pessoas dias “normais” como para os limitados fisicamente. Essa gente é mais preciosa do que toda a riqueza do mundo junta. Se conheceres alguém assim, rejubila pela sorte que tens. E faças o que fizeres nunca o afastes de ti.
Ainda há os que não se catalogam, indiferentes a tudo seguem as suas vidas mergulhados nos seus pensamentos. Gosto desses. Não fazem mal nem bem. Simplesmente existem. Não são especiais nem insignificantes. Há qualquer coisa de pacifico nisso, ser indiferente ao mundo sem desejar marcar o seu lugar na história, ainda assim fazer parte dela anonimamente no seu desinteresse.
São estes seres que passam e constituem nossa dita sociedade. Qualquer infortunado por uma fatalidade qualquer te dirá o mesmo. Acredita que são bons a observar, os “aleijados” deste mundo que o conhecem bem melhor que os sábios.
Sim, tens razão. Hoje estou a usar palavras demasiado duras (Será que sim?). Acredito que te pareçam assim aos teus ouvidos delicados. A propósito, hoje não estou a narrar a tua vida. Sabes porquê? Porque não és o centro do universo. A vida não precisa de ti para continuar. Os teus problemas não passam de uma tamanha insignificância se comparados com o resto do mundo. Até o próprio planeta é indiferente se comparado à vastidão do universo.
Agora compara-te a ti e aos teus problemazinhos com isto tudo!
Pois… É isso mesmo. Não é meu objectivo ser rude contigo. Apenas abrir-te os olhos. Levanta-te e enfrenta a vida. Só isso.

quarta-feira, outubro 14, 2015

Vincere aut somnus


O luar está calado
A noite vazia
Suspira apatia
Num silêncio gritado
Clama a fantasia
Pela caneta poesia
Que me faz ficar acordado
Na insónia da agonia
Da madrugada até ao dia
A lamentar-me do meu fado
Contra o mundo a rebeldia
Versos nascem sem alegria
Em rimas iradas fico cansado
Cada palavra cresce fria
Fadiga de toda a ousadia
Pelo sono vou sendo tomado
Raiva morre em letargia
Nesta guerra já não lutaria 
Adormeço finamente derrotado
Esqueço a fúria que se esvazia
A inquietação também dormia
Pois o sol nasce animado
Sonho a luz e a calmaria
Deixo o acordar calar a ira
Desperto enfim descansado

sexta-feira, outubro 09, 2015

A rebeldia (O Narrador VI)


Cresces e encontras um ideal. Fantástico! Está na altura de lutar para o defender. Vestires a pele da rebeldia e entrares numa quezília contra o mundo que é preciso mudar. Vives em guerra contra aqueles que te opõem. É bom, não é? Poderes afirmar com todo o orgulho que tens uma causa a defender. Dás a cara por ela, com sorte até a vida (de forma moderada vá)! São muitos contra ti. Não faz mal. Venham todos! Quantos mais melhor. Dessa forma tornas-te o rosto do heroísmo. Uma espécie de mártir dum motivo qualquer.
Se a maioria dos teus semelhantes está contra ti, há de haver um punhado deles que te olha com admiração e fidelidade incontestável. Convém que não sejam muitos, senão o teu brilho é ofuscado por eles, aqueles que te deviam respeitar como algo superior. É assim que deve ser quando tomas as rédeas de um objectivo. Estás no trono da rebelião!
O problema é que o tempo passa. Sabes, existem relógios e calendários para o contar. Horas, dias, meses, anos… E nada muda. O mundo continua mundo. A sociedade que era suposto mudares virou a cara à tua causa e continuou igual, alheia a protestos, discursos inflamados, ou actos enlouquecidos. Os teus confiáveis seguidores aos poucos foram-te trocando por outros caminhos, ora ouvindo outros capitães, ora absorvidos pela sociedade com quem tanto pelejaram… Traidores!
Ficas somente tu. Já ninguém ouve o que tens a dizer, as reclamações que te movem, a mudança que tanto anseias. (Será que ainda a anseias?) Vais tirando umas folgas da tua amada rebeldia para conviver com os outros humanos que na realidade até são iguais a ti. A seguir acabas por querer umas férias para poder usufruir da mundanice. Isto de lutar todos os dias contra tudo e todos afinal é duro.
Depois vem o cansaço… Ter de combater constantemente cansa… Cansa muito… E cedes. Entregas-te ao conforto do mundo que outrora tanto malfadaste. Sentiste (será que sim?) o peso da derrota por aquilo que tanto desprezaste. Secretamente o sentimento foi de alívio. O peso dum ideal ignorado é demasiado grande para as tuas costas cansadas de o suportar.
Não deves ter vergonha. Nem culpar, ou sentir remorsos. Não és caso único, pelo contrário. Abdicar de uma guerra inútil em prol da segurança da banalidade é prática comum. Basta admitir que perseguimos um erro. Ninguém te vai condenar por isso. O mais certo até é que nem se lembrem dessa tua revindicação.
Existem outros para lutar por causas perdidas. Ou causas nenhumas até. Um dia serão como tu, iguais a todos os outros. Deixa, no entanto, as vestes da rebeldia no armário. Nem que seja como recordação de que um dia tiveste força e foste imbatível, pois a vida tem a sua própria forma de nos impingir as suas causas. E mesmo que a memória te seja indiferente, há que ter em atenção de que um dia, talvez, tenhas de ser novamente assim: tu, numa quezília contra o mundo!
Por agora recosta-te no sofá. Há que relaxar em frente à televisão. Está dar um programa qualquer, sobre uma coisa qualquer, parece interessante! Não vale a pena pensares quando estas coisas pensam por ti. A seguir vai dar um filme. É dos bons. Com muita acção, pancadaria, argumento empolgante e sexo! Usufrui até te fartares. Depois dorme. Amanhã vai estar um dia quente, com sorte podes ir até à praia exibir a pele ao sol. Entretenimento para iludir o tédio existe em abundância!
Não te esqueças que também tens o amor! A paixão é um dos passatempos preferidos dos humanos (como tu). Aquilo funciona como um jogo de toca e foge ou de esconde-esconde. Existem trocas de olhares, provocações, mensagens atrevidas, timidez, e outras tantas artimanhas que tornam o acto de namoriscar interessante, até ao dia em que finalmente encontras um par que te complete. Devo dizer que é um momento de felicidade extrema! Claro que isto de amar não é uma ciência exacta e por vezes dá para o torto. Mas isso é outra história…
Também há o sexo. O pecaminoso prazer da carne que leva ao delírio a maior parte das pessoas, uns mais recatados, outros mais ousados, todos com as suas fantasias e perversões. Sem querer ser desmancha-prazeres, acho que tudo isto é uma forma da raça humana garantir que tem continuidade. Afinal a espécie tem de continuar. Não é verdade? Apesar de tudo também são animais como os outros, apesar de racionais. Mas isto tudo tu já sabes não vou insistir neste tema. Pelo menos por hoje…
Calma, talvez esteja a ser um pouco radical. Tens razão. Claro que não é minha intenção perturbar-te. Pelo menos no mau sentido, claro! Já sabes que quando começo a narrar a tua vida acabo por entrar por outros caminhos, ingressando por discursos sobre moralismo, políticas ou filosofias de trazer por casa. Já me conheces. Mesmo assim importa reflectir nestas minhas palavras. Claro que não tenho como objectivo repreender-te, nem tão pouco louvar-te. São apenas descrições daquilo que és e que tanto gosto de relatar.
Sim, acho que já falei demais neste meu discurso. Vou-me até à próxima!

P.S.
Não esqueças que já foste rebelde…

segunda-feira, outubro 05, 2015

Ainda bem que hoje me sinto sol


Hoje o dia nublou-me de cinzento
O acordar quer-me fazer dormir
Urge entorpecer todo meu sentir
Entre o assobio do vento violento

Oprimido pelo cansaço do momento
Obrigo-me a acreditar que sou real
Em mim nada encontro de especial
Até a poesia rumou ao esquecimento

A chuva dá melodia ao desalento
Nela não procuro qualquer conselho
Encara-me muda a figura no espelho
Pois o seu silêncio grita sofrimento

Calado fica o meu triste lamento
Ainda bem que hoje me sinto sol
Encontro em mim mesmo um farol
Por entre este sem rumo sonolento

Aos poucos cresce em mim alento
Porque a tormenta está lá fora
Longe da minha alma sonhadora
E o temporal vai serenar entretanto…

quinta-feira, outubro 01, 2015

Os raros


Gosto de ver gente estranha. Ainda que sejam feios, grotescos, porcos, malcriados ou imundos de sujidade. Para mim são fantásticos. São seres interessantes desde que não se encaixem nos padrões de normalidade com que somos criados. A fuga ao banal deve ser uma constante!
Há sempre algo de desinteressante nas pessoas normais com quem me cruzo na rua. Muda a roupa, muda o penteado, muda o sexo, muda o exterior, pouco importa! Lá dentro são iguais atrás do seu olhar rotineiro. Nada mais transparecem do que uma constante busca por uma existência básica.
Sempre que passam os esquisitos, os diferentes, os raros, desviam-me a atenção. Aprazem-me os furados impiedosamente com metais decorativos nos lugares mais bizarros da anatomia. Deleitam-me os pintados com tatuagens que violam a pele com imagens impregnadas de heresia. Contemplo os membros deformados de quem está limitado pela fragilidade do físico que sucumbiu à imperfeição. As cores garridas de quem não tem medo de sobressair na multidão.
Estes são os amantes da arte que ostentam no corpo o desassossego da sua individualidade!
Há na sua aparência uma bandeira à liberdade. Um apelo rebelde por evoluir, porque a vida tem de ser muito mais que isto. Não me admira que os outros se afastem, com medo, com desdém, ou com nojo. Fogem de todos que os lembram que pouco mais são do que macacos andantes rotulados de civilizados.