sábado, dezembro 30, 2023

Domingo solarengo de Outono



Hoje não chove 

O sol lá vai brilhando

Uma abelha passeia pelas flores

Não sabe que é domingo

Dia em que o Zé Povinho

Dá a volta dos pobres 


Não chove hoje

O sol lá vai raiando 

No outono com as suas cores

As folhas vão caindo

Castanhas e vinho 

Alimentam muitas fomes


Hoje não chove

O sol lá vai encantando

A natureza com os seus odores

Os pássaros vão cantando

As crianças vão brincando

Alheias a todas as dores


Não chove hoje

O sol lá vai aquecendo

O nascimento de novos amores

Os jovens vão sorrindo

Porque amar é lindo

E ainda estão longe os dissabores




segunda-feira, dezembro 25, 2023

Tempo de Natal


O Deus Menino nasceu pequenino, mesmo sendo maior do que o mundo. Encarnou na pobreza e foi deitado nas palhinhas. Dizem os padres ser uma mensagem de amor e humildade por parte do criador. Todos sabemos que a humanidade não compreendeu isto. 

Igual a qualquer outra criança foi gerado para crescer exposto ao ódio, fome, peste e guerra. A sua imagem devia ser adorada com amor e devoção. Em vez disso, é usada como decoração em cenários de riqueza, onde abundância só chega a alguns.

A criança divina, rei de todos os povos, foi coroada ainda bebé com uma coroa de espinhos.

De repente já é um homem. Vê luzes brilhantes e escuta canções alegres, parecem ocultar a dor de quem grita calado nos lugares longínquos. 

É proibido falar de sofrimento como se este fosse uma coisa real. Serve para alimentar as notícias, para quem tem fome de tragédia poder lamentar como se isso aliviasse a consciência. Dá-se uma esmola aqui e ali para afastar a culpa, não vá ela pesar na mesa farta da noite de consoada.

Desigualdade, injustiça e crueldade. Ganância e egoísmo, disfarçados de generosidade. Celebravam o seu nascimento com festas extravagantes e presentes caros, enquanto os invisíveis olham cá fora pela janela, ao frio, com a inveja própria de quem só lhe resta o sonho.

Nós sabemos e continuamos.

E o Deus Menino chora porque o Natal é tristeza.


terça-feira, dezembro 19, 2023

Conto de Natal em cinquenta palavras


Era véspera de Natal. Uma criança encontrou um porquinho perdido e trouxe-o consigo. Já em casa, pediu ajuda para cuidar dele. A família, indiferente a esta época, nunca preparava ceia. Ao verem o porquinho, reuniram-se. Aconchegaram-no, partilharam comida. Passaram a noite em união. O porquinho presenteou-os com o Espírito Natalício.

Conto elaborado para um desafio do Laboratório de Escrita

quinta-feira, dezembro 07, 2023

Anoitece mais cedo no outono


É engraçado, ou no mínimo curioso, como estas coisas funcionam. 

Com a chegada do outono e a insistência das primeiras chuvas, sentia falta de algo. Nada que fosse material, uma roupa quente pudesse aconchegar, ou uma comida mais forte pudesse satisfazer. Não. Nada disso. Era uma sensação inexplicável. Como se alguma coisa lá dentro mendigasse por atenção. 

A hora mudou, anoiteceu mais cedo. O tempo escuro convidou a sentar-se no sofá para um pouco de descanso antes do jantar. Navegou sem destino pela internet, até se deparar com uma imagem a representar todas as fases da lua. Compreendeu o significado. A sua espiritualidade estava a chamar. 

Pousou o portátil. Dirigiu-se ao quarto. Abriu a gaveta do meio, da mesa de cabeceira. Dentre os vários objetos pessoais, alcançou uma bolsinha de pano. Apesar de estar misturada com todas as outras coisas mundanas, pegou nela com reverência e acariciou-a. Tinha um fio que a fechava, libertou-o e de dentro tirou um baralho de tarot. 

Olhou demoradamente para a arte em cada carta. Para o comum mortal, tratava-se apenas um pedaço de papel com um desenho bonito. Podia ser só isso. E se fosse, mesmo assim era tanto. No entanto, nas suas mãos, eram coisas vivas. Mensagens por decifrar. Sabia que o oráculo precisava de atenção. Ou o melhor, o seu próprio espírito precisava de atenção.

Com um suspiro profundo, sentou-se na cama. A luz suave do candeeiro convidava à introspecção. Os dedos deslizavam com suavidade sobre a superfície lisa das cartas. Cada uma passava pelas suas mãos  devagar. Todos os pormenores das imagens desenhadas com grande cuidado, tinham um segredo. Pequenos detalhes que todos juntos formavam em simultâneo, um mistério e uma resposta. Arte e magia numa simbiose perfeita. 

Começou a embaralhar as cartas. Mesmo sendo um processo simples, demorou até se certificar de estarem todas bem misturadas. Finalmente, quando sentiu ser o momento certo, parou. Com os olhos fechados e a mente aberta, cortou o baralho a meio. Retirou a carta de cima da metade de baixo. Como estava virada não podia saber qual era. Ainda assim, sentia a energia dela. Vibrava, quase como se estivesse viva. 

Virou-a. Era a Roda da Fortuna. Carta número dez. Representa o movimento constante da vida, as mudanças inevitáveis, todos os ciclos da experiência humana. Não sentiu surpresa ao verificar o resultado. Das setenta e oito possíveis foi exactamente aquela a escolhida. A mesma que fala das fases pelas quais passamos de forma cíclica. 

Olhou para a carta com um sorriso nos lábios. Interpretou como uma mensagem de esperança. Parecia completamente adequada para o momento. Sentiu-se bem.

Olhou para todas as outras cartas também. Cada uma tinha o seu espaço. Refletiu sobre o significado delas. Eram um espelho da alma. Falavam sobre a sua jornada espiritual. Como se desprendeu de muitas coisas pesadas. Dos desafios enfrentados. A força conquistada para chegar até ali. Compreendeu e aceitou o convite para continuar a crescer. Agradeceu, depois, ao oráculo pela mensagem.

Juntou o baralho novamente e guardou-o na bolsinha de pano. Voltou a colocá-lo na gaveta, ainda com mais reverência. Naquele cantinho escondido, mas tão especial. Sentiu-se mais leve. A chuva lá fora parecia menos insistente e o outono menos melancólico.

Voltou para a sala, sentou-se no sofá e pegou no portátil novamente. Contudo, em vez de navegar sem rumo pela internet, decidiu escrever. Começou com frases soltas sobre a vida e os sentimentos. Depois, as palavras fluíam com facilidade, libertas na inspiração do éter. Nasciam poemas e prosas. Ideias e pensamentos. As páginas do processador de texto ficavam assim cheias pela criatividade outonal.

Quando terminou, sentiu uma satisfação aconchegante. Ouvia a chuva a cair. Sorriu. Respondeu ao apelo do seu espírito e sabia disso. Concluiu que o mundo interior também precisa de atenção.

Talvez por isso exista o outono. A noite vinha mais cedo porque é suposto o corpo abrandar. A chuva caia lá fora, pois o aconchego convidava a imaginação a sair. Era esse o pequeno grande mistério refugiado naquele momento. Tão simples e perfeito.