terça-feira, fevereiro 28, 2017

A lucidez


Por vezes acordo com uma lucidez absoluta.
Vejo claramente para além de mim e de todos os sonhos que me constroem. Consigo aperceber-me da verdade do mundo. Uma revelação com tanto de fascinante como de assombro.
Na solidão do Universo criou-se a vida para que haja companhia!
Mesmo assim os seres humanos entendem-se pela sua individualidade. Aquilo que pregam por simpatia não passa de uma mentira egoísta para alargar sua própria personalidade aos outros.
Estas palavras provam isso mesmo, pois não estou a ir além do meu próprio existir. Tenho limites rimados por poesia melancólica. Certamente existem pessoas ímpares algures nesta realidade, pautadas pela benevolência. Quem sabe, mesmo aqui ao lado em frente a mim. Como estou entregue ao meu eu, embriagado em desejos e sentimentos, não me apercebo e deixo-me seguir a minha vontade adulterada.
Contudo, acredito numa mensagem de esperança. Há que ter o mínimo de crença de que nem tudo é ilusão. Se a verdade traz desassossego, então que este seja o combustível para poder verdadeiramente amar!
Por vezes acordo com uma lucidez inquietante…

sábado, fevereiro 25, 2017

Em Fevereiro tem Carnaval


No Carnaval as gentes saem à rua porque é obrigatório ser alegre naqueles dias. Cantam, saltam e dançam. Mascaram os corpos para esconder a podridão que existe em si. Alguns, em simultâneo, aproveitam para fingir aquilo que gostariam de ser. Tudo neles é frustração, pois a vida escapa-lhes durante o resto do ano. Trazem as fantasias para dizerem que é brincadeira, quando na realidade abraçam aquela mentira a pretexto dos festejos e cospem na banalidade em que se tornaram. Tudo fica invadido de cores vivas para disfarçar o negro da sujidade, nas paredes, nas estradas, nos rostos, nas almas de quem tem data marcada para brincar ao ser feliz!
No Carnaval o sino toca a anunciar um funeral. Aquele, que jaz cadáver, está dispensado da folia. A mentira, para ele, já passou. Resta-lhe o conforto da terra fria. Os que o vão velar, esses, assumem a tristeza como um facto, a saudade como um fado e deixam os festejos do lado de fora das paredes chorosas. Devem remeter-se ao esconderijo da sua própria desgraça para que não sejam vistos em público. Tanto pesar parece mal perante quem celebra a ilusão. Cabe-lhes baixar o rosto em sinal de vergonha e calar qualquer lamento, esse direito não lhes assiste até que cheguem as cinzas da quaresma. Até lá que se mantenham no silêncio porque ninguém os quer saber!
No Carnaval ainda há quem definhe na solidão. Os escorraçados, os malucos, os famintos, os aleijados, os velhos que se desenham em rugas e atrofio, porque o seu corpo já não sabe dançar, nem o seu espírito tem vontade de cantar. Tudo que vive neles é a dor. À janela do seu sofrimento, lançam olhares danados aos foliões, que coloridos festejam a mentira. Lançam-lhes injúrias cobertas de ódio e maldição. Cospem naquela indecência com o maior dos desdéns. Atiram-lhes pedras inflamadas com raiva de quem está abandonado. Enchem-se de nojo perante a sua festança, porque uma máscara merece mais atenção do que aqueles se esquecem na berma da alegria.
No Carnaval também saem à rua os indiferentes. Passeiam-se entre a multidão sem nada que os cative verdadeiramente. Trajam-se com fantasias a rigor para que se misturem melhor entre os que dizem festejar. Quem sabe, se também eles, possam encontrar um pouco de alegria momentânea entre esse mundo em cor. A estes importa-lhes olhar para os demais a saltarem como macacos ensinados ao som da música arranhada. Há um certo fascínio em observar o comportamento dito humano, mesmo que signifique suportar um certo martírio em se confundir com os outros. Depois disso regressam a casa para despirem as mascaras e sentirem o prazer orgásmico do silêncio.
No Carnaval os bêbados arrastam-se pelas ruas em busca de mais um copo. Afinal os festejos providenciam a desculpa perfeita para que se possa beber sem apresentar qualquer satisfação. No resto dos dias, outros pretextos devem existir para ter uma garrafa por perto. Seja como for, a frustração não se engana sozinha e o álcool é um bom amigo daqueles que nada mais querem saber. Pela noite dentro preenchem o vazio na alma com a cor alaranjada da cerveja até que os seus sonhos sejam esquecidos. De manhã acordam deitados sobre o próprio vómito e dejectos, sujos com a própria porcaria e o vicio nas entranhas, forçados a lidar novamente com a crueldade da vida.

domingo, fevereiro 19, 2017

Magnus pisces


Recebeste o dom de Peixes, mistério da tua constelação
Estrelas dançam a tua rebeldia
Na noite o firmamento irradia
Sentes o chamamento de tudo que não tem explicação
Essência aparentemente vazia
Gnose que habita na tua apatia
Como um eremita que se refugia na própria solidão
Olhas o mundo na luz da fantasia
Acreditas que o amor é energia
Guardas, em teus devaneios, universos de emoção
Um sorriso trazes por companhia
As sombras escondes com alegria
Não deixas que te imponham regras afetas da razão
Sem ciência a explicar a ousadia
Vives para domar a melancolia
Toda a tristeza do mundo não te amarga o coração
Dizem-te bruxo na tua sabedoria
Conheces os mistérios da magia
Encantas porque dominas com mestria a imaginação
Falas sonhos através da poesia
Cantas na voz calada da telepatia
Segredas, a quem sonha também, que tudo em ti é paixão

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Dia de S. namorar


Namorar

Deus criou as estrelas para sonhar
Noite quente a engrandecer
Palavras até amanhecer
Segredos cantados no sussurrar

Namorar

Deus criou o espírito para cativar
Química do nosso viver
Simples deixar acontecer
Olhar de infinito onde mergulhar

Namorar

Deus criou o verso para nos rimar
Timidez para vencer
Felicidade a conhecer
Sorrisos que abrem no encontrar

Namorar

Deus criou a beleza para narrar
Silhuetas a percorrer
Bocas chamam a morder
Rostos jovens viajam no beijar

Namorar

Deus criou a carne para a tocar
Sentir a pele a efervescer
Em fogo degustar prazer
Pintar no corpo a arte de amar

Namorar

Deus criou o ventre para gerar
Semente além do dizer
Plantada no transcender
Nascemos de galáxias a dançar

Namorar

Deus criou o tempo para passar
Romance para escrever
Poesia nesse descrever
A paixão criou o momento para o parar







quarta-feira, fevereiro 08, 2017

Habitar outros pensares


Tenho um desdém absoluto por pessoas banais. Daquelas cujo único propósito na vida é esperar pela sexta-feira, sem pouco mais querer da existência. Contentam-se com as férias, o futebol, as novelas e outras tantas formas de entretenimento imposto. Dão-me asco!
Não suporto quem não é capaz de ter uma ponta de individualidade. Sem nada que os distinga verdadeiramente do resto da carneirada. Sempre que os encontro, arrumo-me para o lado para não sentir o cheiro a nada. Caso insistam na minha presença, enxoto-os a pontapé, como quem expulsa um enjeitado, gritando injurias no sentido mais bruto da ofensa.
Contudo, tenho de aceitar o facto que esta gente é essencial para completar o quadro da nossa sociedade. Pequenos pixéis, que sozinhos nada valem, mas em conjunto formam uma mancha enorme. Ao ponto que, pelo seu elevado número, constituem uma maioria que define a palavra normal. Nojo!
Ainda que, também eu, faça parte dessa imagem social e seja visto como mais um ‘quadradinho’ por quem se julga maior. Estes, lá porque são os primeiros dos carneiros, de mim nada sabem. Faço questão de me diferenciar, nos pequenos gestos, nas palavras proferidas, no meu próprio tempo, no caminho percorrido!
Assim segue o rebanho. Por vezes, protestam contra tudo. Mesmo contentes com a sua rotina e conforto, ao qual retornam depois de se queixarem a ouvidos que só escutam outras línguas. Lá ficam felizes porque a sua reclamação não foi ouvida e os seus hábitos ficaram iguais, tal como o futebol, as novelas, o dinheiro e o sagrado fim-de-semana. Se por acaso alguma coisa se altera, é tão ligeira que se compara com a insignificância.
Depois existem os outros. Os deslocados. Os 'semelhantes' que em nada se comparam a quem passa nesta romaria. Os eremitas, como eu, no esconderijo das suas particularidades, assistem a tudo como se tratasse de uma visão longínqua que pouco importa a quem habita outros pensares.
Tenho um desdém absoluto por pessoas banais, porque, no fundo, existe em mim o mais puro dos medos de me rever neles!

sexta-feira, fevereiro 03, 2017

Outras lembranças


O vampiro acordou.
Da noite apenas se lembrava de adormecer.
A luz entrava pelo quarto radiante. Levantou-se e foi até à janela. Sentiu o sol quente, o seu corpo quente, o seu sangue quente e suspirou.
Caminhou até ao espelho e observou a sua imagem. Demorou-se diante o seu próprio retrato. Tal como fazem os humanos, sentiu vaidade na sua figura.
Ouviu a azáfama lá fora. Era como se fosse um chamamento, por isso saiu à rua e viu-se rodeado por sorrisos de gente feliz que convivia alegremente.
Passeou-se entre as pessoas como quem se recorda com saudosismo da inocência de criança. Inebriou-se com o aroma daquele mundo colorido e deixou-se marear no entusiasmo.
De repente cruzou o seu olhar com outro rosto de traços femininos. Este dotado de uma beleza peculiar e de outra coisa não visível que não conseguia compreender.
Sentiu uma atracção imediata que o impeliu a aproximar-se. Contemplou a mulher. Era ainda mais resplandecente que todas as outras que passavam. Reconheceram-se de outras lembranças!
Uniram-se no toque. Do corpo dela emanava calor que o dominou como um veneno. Entregou-se àquele desejo. O abraço quente, o beijo quente, o amor quente…
O vampiro despertou.
Do dia apenas se lembrava de o sonhar.