segunda-feira, agosto 31, 2020

Olhem para mim: sou uma princesa!

Nunca me senti uma princesa. Claro que a minha masculinidade não ajuda, embora tenha a certeza de que existe uma versão masculina de princesa num conto de fadas. 

Já fui (ou ainda sou) um guerreiro; bruto; glorioso; pirata; monte de merda; asqueroso; estúpido; inteligente ou iluminado, creio que não faltam adjectivos para descrever todas as minhas acções. Se calhar até fui um príncipe encantado num conto de fadas qualquer e nem me apercebi. 

Contudo gostava de um dia sentir o que as princesas do imaginário sentem ao serem amadas na beleza da fragilidade. Por ausência de estímulos de candura, não consigo imaginar tal cenário. É pena. Frustrante até, já que nem nas palavras apoiadas na imaginação consigo conceber tais sensações. 

Não tenho culpa te ter sido privado da inocência. Foram tantos aqueles que me ma roubaram que já lhes perdi a conta. Tenho alguns guardados na mágoa que ao crescer se fez violência. A memória não serve só para guardar rancor, nem tão pouco as mãos para fazer justiça, embora a boca tenha sede de vingança. 

Será que as princesas têm alguma coisa disto no seu pensamento? Acredito que não, ou pelo menos é assim que as descrevem. Com uma total ausência de maldade ou raiva. E eu tenho inveja delas. Muita inveja!

Não se deviam iludir as crianças com contos que não passam de armadilhas para tornar a existência ainda mais penosa. Dói ainda mais quando essa ilusão ainda teima em persistir na idade adulta. Chamam-lhe esperança. Dão-lhe um estatuto de sentimento maior e dizem que é o último a morrer. Esquecem-se no entanto de referir que a esperança não passa de um analgésico para as agonias do dia-a-dia.

Era bom adormecer para acordar uns tempos mais tarde com um beijo de uma desconhecida a quem passaria a amar incondicionalmente, para sempre, numa felicidade constante. Só que, convém estar ciente de que se me deitar a dormir permanentemente, o corpo vai-se encher de chagas pútridas e as necessidades fisiológicas vão se acumular até tornar o ambiente nauseabundo. Isto para não falar na falta de nutrição que vai deixar a figura humana esquelética eliminando todos os traços de beleza.

Nos contos de fadas, escondem sempre a miséria da condição humana. Ninguém quer saber dos feios, dos aleijados, dos magoados, ou dos excluídos. Esses, não merecem histórias, só o ignorar dos olhares que passam. Esses, são os que sonham, mesmo sabendo que sonhar dói e ninguém se importa!


segunda-feira, agosto 24, 2020

Onde as tentações se prostituem

Eu sou um observador de mim mesmo. Vejo-me com curiosidade quase científica. Neste processo divido-me em dois. Posso classificar um, como sendo sábio, caridoso e compreensivo; o outro, um bicho humano, com todos os instintos e sentidos a que essa condição obriga. Igual a vocês, na nobreza ou decadência. 

Olho por mim como um pai bondoso cuida do filho. Por vezes orgulho-me daquela pessoa de carne e osso que sou. Sinto uma satisfação momentânea pelas pequenas conquistas que, chegam quase a ser um roçar na felicidade. Outras vezes repreendo-me severamente. Não tolero a ignorância propositada que por vezes abraço sem motivo algum. 

Presto atenção os meus pensamentos. Não deixo que tomem um rumo que me leve ao afastamento da gnose. Tarefa árdua quando a minha vontade teima em se ancorar aos pequenos pedaços de coisa nenhuma que a sociedade me atira, como uma esmola a um mendigo. Desprezo quando assim é. Enoja-me a pequenez com que me tentam iludir.

Fiz um caminho até aqui, duro. Marcou-me com calos e cicatrizes no corpo e na alma. Houve amor mas esqueci-o rapidamente entre as muitas vielas onde as tentações se prostituem. Essas histórias estão escritas por aí, escondidas entre os textos que me fazem. Não lhes dou importância em demasia. Somente um acréscimo que pouco ocupa na memória.

Destacam-se os momentos em que segui sozinho, perdido, sem qualquer tipo de orientação. Mesmo implorando aos céus na esperança que algum deus clemente me escutasse. Nunca obtive êxito nas minhas preces. Nesses desgostos amargos e consecutivos, cheguei à conclusão que não devia procurar nos outros aquilo que devia encontrar em mim.

Fecundei a minha imaginação, as minhas forças, os meus impulsos e a minha sabedoria, numa orgia anárquica escrita com o sangue da fantasia. Todas as minhas arestas me pariram em simultâneo. Surgi eu, o observador! Nasci-me para me tornar a minha própria Divindade, sem templos, sem adoradores, sem milagres, nem tão pouco glória. Não me dei credo nem dogmas.

Talvez me conheças nestas linhas que se vão escrevendo entre a fúria e a tranquilidade. Mas não me mostro muito. Vou cumprindo uma espécie de missão de guia, para esse outro eu que anda desencontrado aqui neste mundo de gente sem rumo. Somos como uma simbiose entre o oculto e a aparência. Não vou dar mais explicações para aquilo que não se quer explicado. O mistério deseja a sua parte de mim e eu devotado a conhecer as suas entranhas. 

Contudo isso são outras façanhas de um meu eu desconhecido até de mim mesmo. Viro também a minha atenção para vocês. Os corpos habitados por alma que comigo se cruzam. Tendes também os vossos segredos e inutilidades que me vão cativando. Mas isso fica para depois, quando não tiver muito a dizer sobre as minhas próprias considerações...

segunda-feira, agosto 10, 2020

Palavras soltas ao caos

O meu eu eu eu
Poema ema gema
Gema e gemo
Gememos todos (onde isto vai parar)
Por causa dos tordos
Voando nos céus.
Por causa dos cacos
Voando pelo caos
As palavras gemem
Transmutam-se
Penetram a alma aberta
Palavras sem nexo
Inventadas
Desnudadas
Entram, saem, ficam
Explodem
Gemos por traduzir
Eu como remendos
Nós como remendos
Cicatrizes em uníssono
A solidão morre no gemo
A solidão vive no gemo
O gemo esquece a solidão
O gemo vive e eu não sei
Eu eu eu
Procuro o poema a vir-se
Não sei o que digo
Digo sem querer dizer
Agora estou a morrer
Agora estou a viver
Agora sou-me a gemer!


Nota: poema escrito a partir das primeiras seis linhas cuja autora não quis dar continuação mas eu achei que deviam ter um término.