Olhei para o espelho e encarei de frente o actor que me interpreta. Emprestou-me as feições e todo o corpo com o qual me exprimo. Mas eu não sou apenas uma imagem dele próprio. Conheço os seus segredos mais violentos.
O interior do ser humano pode ser um baú onde se esconde muita obscuridade. O pensamento consegue alojar desejos absolutamente grotescos. Ocultar os instintos mais perversos. Encobrir apetites violentos. Tudo silenciado pela voz duma virtude mentirosa.
A aparência serve de camuflagem para encobrir estas verdades sinistras. Uma imagem limpa, elegante, bem-apresentada. Completa-se o figurino com um discurso educado, rodeado por uma simpatia natural, para cativar os outros interlocutores.
Ele, espelhado no meu reflexo, sabe bem disso. As manhas usadas para cobrir as sombras. O perfume que mascara essa podridão. Algo mantido em silêncio pela boca, contudo, pronto a manifestar-se quando a oportunidade assim o permite.
Sorri-lhe maliciosamente pelo canto da boca. Não como juiz, mas como cúmplice. Ele sorriu-me de volta e juntos levamos o dedo indicador até aos lábios, murmurando um para o outro: “Shhhhh”…