sábado, setembro 24, 2022

Apetites violentos

Olhei para o espelho e encarei de frente o actor que me interpreta. Emprestou-me as feições e todo o corpo com o qual me exprimo. Mas eu não sou apenas uma imagem dele próprio. Conheço os seus segredos mais violentos. 

O interior do ser humano pode ser um baú onde se esconde muita obscuridade. O pensamento consegue alojar desejos absolutamente grotescos. Ocultar os instintos mais perversos. Encobrir apetites violentos. Tudo silenciado pela voz duma virtude mentirosa.

A aparência serve de camuflagem para encobrir estas verdades sinistras. Uma imagem limpa, elegante, bem-apresentada. Completa-se o figurino com um discurso educado, rodeado por uma simpatia natural, para cativar os outros interlocutores. 

Ele, espelhado no meu reflexo, sabe bem disso. As manhas usadas para cobrir as sombras. O perfume que mascara essa podridão. Algo mantido em silêncio pela boca, contudo, pronto a manifestar-se quando a oportunidade assim o permite.

Sorri-lhe maliciosamente pelo canto da boca. Não como juiz, mas como cúmplice. Ele sorriu-me de volta e juntos levamos o dedo indicador até aos lábios, murmurando um para o outro: “Shhhhh”…


sábado, setembro 17, 2022

Queda invertida

A personagem caiu ao céu. Bateu com as costas numa nuvem fofinha e partiu a espinha. Ninguém avisou sobre essas quedas, as quais podiam acontecer na direcção do azul do céu, ou como nuvens com aspecto de algodão doce podiam aleijar tanto. Muito menos alertaram sobre a existência de dores que nunca iriam sarar.

A personagem ficou perdida. Sem esperança, a olhar para a mentira à qual os outros chamavam de vida. Todos ensinavam às crianças porque não se deve mentir, mas a pior mentira é uma ilusão tida como verdade. Foi assim conheceu a palavra saudade. Aquela, de coisas nunca acontecidas.

A personagem soltou-se de volta para o chão. Desta vez não doeu tanto porque o chão é suposto ser duro. Aguentou a queda sem grandes lamurias. Como um verme, foi-se arrastando pela terra imunda. Implorou carinho a quem o pregava, sem nunca o receber. Ficou então a conhecer a palavra desprezo, juntamente com a hipocrisia.

A personagem escreveu o seu nome na lama para se lembrar que também tinha vida. Descobriu assim o poder das letras. Reparou, ao ler as palavras desenhadas na imundice, quando estas são usadas em conjunto, podem dar corpo à dor. Nas terminações formou rimas. E transformou, assim, em poesia toda a sua raiva.

A personagem rabiscou, então, sobre a queda invertida. De como partiu o alicerce da esperança, desde a coluna até à alma. Nunca conseguiu ser aquilo planeado por outros para si. Só uma sombra translucida, quebrada e deformada, sem nada a oferecer a quem carece de fantasia. Ainda assim, sentia um certo orgulho no seu falhanço.

A personagem quis então ser outra coisa. E foi. Livre da opressão de quem lhe indicava caminhos rumo ao vazio. Descobriu tanta coisa na vida para lá daquilo que julgava conhecer. Em cada novo pedaço de conhecimento, aumentou a sabedoria, só para descobrir de como era ainda enorme o tamanho da sua ignorância.

A personagem, depois, continuou. A viagem adivinhava-se longa, contudo, o destino era compensador. Olhou para trás, num breve vislumbre daqueles que ensinavam ilusões. Teve pena daquelas figuras ignorantes. Cativos no seu próprio mundinho preconceituoso. Sem a mínima noção de fantasia, ou pior, dos cenários existentes para lá do horizonte.