segunda-feira, dezembro 29, 2014

História de amizade


O jovem sentiu um pêlo a sair do seu nariz. Era anormalmente longo. Apesar de o tentar meter para dentro, aquele fio rebelde insistia em ficar do lado de fora da narina, como se quisesse ver o mundo exterior.
Ainda pensou em corta-lo, mas achou que seria uma injustiça perante a curiosidade demonstrada por aquele pêlo bisbilhoteiro. Achou engraçado, por isso deixou-o ficar.
Fazia um círculo para fora como se fosse uma argola no nariz e se tratasse de um adorno natural. O jovem achava piada e deu-lhe o nome de ‘Zé Alberto’. Não tinha nenhum significado especial. Era apenas um nome que lhe surgiu de repente na cabeça. Nada mais que isso.
Nos dias em que o ‘Zé Alberto’ saia para fora, o jovem mantinha inúmeras conversas silenciosas com ele sobre coisa nenhuma. Foram criando assim uma peculiar amizade  e companheirismo.
Entretanto, o jovem começou a ter o hábito de puxar o pêlo, para ver se ficava mais comprido. Queria dar-lhe uma maior liberdade para explorar o exterior. No entanto, certo dia, mesmo sem fazer muita força, arrancou o ‘Zé Alberto’ sem querer!
O seu coração palpitou ao aperceber-se que ia perder o seu amigo de tantos momentos insignificantes. Ainda o prendeu entre os dedos, procurando guarda-lo numa caixa. Ou algo assim. Não queria ficar sem ele.
O encontrão de alguém na rua, fez com que soltasse o seu amigo. Tentou procurá-lo na calçada, em vão. O ‘Zé Alberto’ estava perdido…
O jovem ficou triste. Manteve, ainda assim, a esperança de um dia aquele pêlo curioso voltar a nascer e vir até cá fora, para nutrirem outra vez uns bons momentos de convivência.

sexta-feira, dezembro 26, 2014

Curta história de amor


«Não gosto de gajas estrangeiras.» Dizia ele com bastante certeza na voz.
«Só aprecio as portuguesas, com um bom ! Roliço e redondinho. Excelente para dar umas palmadas. Tás a ver?» Reafirmava ele, balançando a palma da mão aberta, quando lhe perguntavam sobre o seu gosto em mulheres. 
Ou, pelo menos, era isso que acreditava até ao dia em que a conheceu. Rosto envergonhado. Aquele cabelo sedoso e brilhante. Os óculos de hastes engraçadas. A camisa branca, cuidadosamente engomada, e a saia preta, pelo joelho, deixavam adivinhar os contornos perfeitos do seu corpo. Tinha o visual de bibliotecária mais impecável que vira até aquele dia. E ele gostava tanto.
Assim que olhou para ela bloqueou. O tempo começou a passar tão devagar, que até a câmara lenta parecia rápida comparada com aquilo. Queria cumprimenta-la, mas só pensava em dizer: Amo-te! Claro que da sua boca nada saiu. Apenas aquele olhar estúpido e estarrecido estampado na cara a olhá-la. A mulher mais bonita que tinha alguma vez visto!
Ela corou. 
Quando finalmente conseguiu falar disse: «És linda! Como te chamas?»
Felizmente a situação não exigia grandes formalidades e ele podia tratá-la de forma mais intima, "por tu". Ainda não a conhecia mas já a amava!
«Maria...» Disse ela, com certa timidez, num português arranhado. 
Grega! Uma semideusa com certeza! «Deus é um tipo irónico!» Pensou. Mas a paixão não quer saber de nacionalidades. Simplesmente acontece e não se importa com preconceitos. Não era portuguesa... Talvez fosse castigo. Não fazia mal. Amou-a na mesma. Afinal de contas, traseiros cheiinhos existiam em todas as nacionalidades. 
Apesar do trabalho que tinham de fazer, foi rápido convence-la para um café. Ela, atraída pela mesma química, aceitou de imediato e até hoje continuam a amar-se. Prolongam aquele momento inicial constantemente, repetindo os cafés tal como se fossem sempre o primeiro. Tal como um ritual de paixão eterna dedicado a Afrodite. Louvada seja!

segunda-feira, dezembro 22, 2014

A escrita


Os escritores são malucos! Talvez seja por isso que não edito um livro, para que não me considerem louco. Ou se calhar, o contrario: os escritores são vaidosos! E eu não queira editar um livro, para não me andar por aí a pavonear, cheio de orgulho nas páginas que escrevi.
A verdade é que faço e sinto coisas, apenas para ter criatividade e vir aqui escrever. Olhem bem para este blog. Às vezes interrogo-me de onde vêm as maluqueiras que escrevo nos textos que publico?
Existem algumas publicações, que sinceramente são básicas. Ah! A escrita até é bonita e tal. Bom de se ler. Mas são apenas palavras que me apeteceram escrever no momento, sem grande conteúdo. Nada mais do que isso…
No entanto, outras vezes, quando do meu íntimo surge uma criatividade quase imoral, dona de uma sabedoria inquietante, nascem textos que parecem vir de um intelecto divino. Como se um outro eu incorporasse em mim mesmo e tomasse conta das teclas do computador. É a sensação que tenho ao revisitar coisas antigas!
Agora que leio isto, aguça-se a minha dúvida e fica a questão no ar: É uma publicação de génio, daquelas básicas, ou outra coisa qualquer? Uma autocrítica, talvez seja a melhor resposta.
Seja como for, vou continuando a cultivar este cantinho escondido na net, feito de palavras que ilustram sentimentos, devaneios, sonhos, loucuras ou simplesmente umas linhas de prazer que me apetece partilhar.

segunda-feira, dezembro 15, 2014

Frases soltas


Gosto de te despir com poesia
Desnudar-te a alma de segredos

Amar com metáforas a pele nua do teu ser

Desenhar com palavras as curvas da tua silhueta 


Beijar-te calado num olhar enamorado

Arrepiar-te a pele num toque de desejo


Saborear o pecado do teu corpo 

Entrar em ti com uma ternura furiosa

Sentir o teu âmago entregue ao prazer

Cantar estrofes a cada gemido que soltas

Até que o poema nasça...

segunda-feira, dezembro 08, 2014

A mudança


– Quem fez as regras? – Perguntei por entre o incerto do meu sonho vívido.
A resposta tardou.
– Deus… – Ouvi alguém sussurrar a medo. Mas aquela voz não vinha de ninguém com a devida autoridade para responder.
– Os homens. – Respondeu mais alguém, também a medo, sem se querer mostrar. A tentar esconder-se naquela espécie de escuridão, que não passava mais do que um vazio, que consistia na ausência de um corpo.
Eram outras consciências, que tal como a minha, ali estavam, meio perdidas. Cientes de que se encontram unidas numa espécie de visão translucida.
Um, mais ousado, certamente erudito, começou a perder a timidez e iniciou uma palestra, ou uma espécie de reflexão, de que as regras foram surgindo com o passar do tempo, num misto de conclusões entre homens, religião, bom senso e a nossa própria natureza.
Os mais religiosos também intervieram, dizendo que apenas Deus as podia ter criado assim, primeiro que os homens, para que estes as respeitassem e vivessem em comunidade.
Mas as religiões são muitas. Abundam e discordam entre si. Tal como as normas ditadas pelos homens, divididas por convicções políticas, ambições ou simplesmente teimosia.
Iniciou-se uma discussão entre intelectos apenas, ignorando onde estavam, quem eram, ou porque se encontravam ali. Apenas confrontavam as suas ideias defendendo aquilo em que acreditavam com total ferocidade, deixando a sensação de que a única e verdadeira regra era a anarquia.
– Pois se as regras foram surgindo ao longo das eras, porque não as podemos mudar hoje? – Questionei, elevando a voz por entre o burburinho.
Um silêncio, carregado de dúvidas, surgiu-me como resposta.
– Porque é que não podemos mudar as regras e com elas construir algo novo? – Continuei. Como se colocasse uma semente de incerteza, completamente nova na mente dos demais, que se tentavam entreolhar por entre o desconhecido que nos envolvia.
– Porque é que não podemos mudar as regras? – Repeti a pergunta.
Aguardei a resposta. No entanto ela não me chegou. Em vez disso surgiu o despertar.
Acordei.
A minha mente pairou na dúvida: Não sei se era sonho ou lembrança…
Rapidamente aquela memória estranha foi-se desvanecendo. Mas não sem antes que eu pudesse anotar o essencial. A questão que coloquei:
– Porque é que não podemos mudar as regras e construir algo completamente novo?

quarta-feira, novembro 26, 2014

Algodão doce


As nuvens ficaram coloridas, abandonando a tonalidade negra e ameaçadora. Tornaram se como arco-íris feitos de algodão doce a pairar sobre a minha cabeça. Como se fossem turistas que passeiam tranquilamente pelos meus pensamentos mais profundos. 
É uma curiosa sensação. Como se o céu se transformasse numa paleta e a minha imaginação pintasse cenários abstractos na tela da minha poesia, em versos que fazem questão de não fazerem sentido. Apenas inquietarem-me com um desejo vadio.
As cores são bonitas, quase hipnóticas, mas o frio anuncia que noite vai chegar em breve. Uma certa melancolia vem aconchegar-me o ânimo solitário. Por isso, continuo meu caminho e deixo que as nuvens continuem o seu, à procura de outro destino onde vagar…

quinta-feira, novembro 20, 2014

Novembro


Tenho uma vontade enorme de querer ficar sozinho. Sem barulho à minha volta. Sem interferências. Apenas uma calma serena. Sem nada que me perturbe.
Excluir-me das regras, quase ridículas, que compõem os alicerces da nossa sociedade. Aliviar dessa pressão de normas pré-estabelecidas, que nada mais fazem, senão limitar a minha criatividade e ânsia de ser livre para descobrir o meu caminho.
Ou melhor. Tenho necessidade de ficar apenas eu e o criador, que se recria em mim, com todas as limitações humanas.
Existe uma paz majestosa nesse sossego meditativo. Um conhecimento esotérico que vai nascendo no âmago do meu íntimo. Uma candura  que me aconchega. Algo que me transporta para um lugar indizível, onde a matéria não importa.
Sim, eu preciso disso. De ficar esquecido, para mais tarde voltar renovado à minha humanidade…

sexta-feira, novembro 07, 2014

O povo


O gordo soltou um peido. Cheirava tão mal! Parecia que nas suas entranhas existia uma fábrica de podridão, tal era o fedor de imundice que impregnava o ar. Aqueles que o rodeavam, imediatamente se afastaram cheios de nojo, com os vómitos a saltarem-lhes do estômago. Ele abriu um sorriso de orelha a orelha. Estava contente. Pouco se importou com a indelicadeza, ou com o mau estar provocado aos outros. Literalmente cagou-se para eles. Ignorou-os, gozou-os, simplesmente maltratou-os para seu próprio prazer.
O gordo era assim. Não se incomodava com quem se abeirava dele. Primeiro estavam as suas necessidades, vontades, luxos e caprichos. Não fazia mal se alguém desmaiasse diante dele e fosse bater violentamente com a cara na lama. Tanto melhor! Era da maneira que lhe servia de tapete, para não sujar os sapatos caros, de marca, imaculadamente lustrados. As pessoas não serviam para nada mais do que isso. Para alimentar os seus gostos e a sua avareza.
O gordo nunca falha. Por isso mesmo não admite ser criticado. Se por infortúnio acontecer algum erro sob a égide da sua pessoa, a culpa não é dele. Certamente é de algum factor externo, ou, da incompetência de outro qualquer. Nunca dele! Ai de quem tiver a ousadia de lhe apontar o dedo. Esse, desce ao nível mais baixo da educação humana, na rudeza do ataque pessoal e das palavras duras do politicamente incorrecto. Inadmissível!
O gordo contava histórias que faziam rir, sonhar e acreditar, àqueles que não o conheciam, que, saltando das suas cadeiras, lhe batiam palmas com grande entusiasmo. E diziam: “Ora aqui está um tipo porreiro, engraçado, que não tem maldade para connosco”. Mal sabiam eles que estavam muito longe da verdade. E aquele que agora estavam a idolatrar, seria o mesmo que os iria espezinhar. O povo é assim!

terça-feira, novembro 04, 2014

O Paraíso


Queres pecar comigo?
Mas o que é o pecado afinal? O ignorar de umas quantas regras que supostamente nos iriam levar ao paraíso?
E se o paraíso for mesmo aqui, ao pecar contigo? Sentir o sabor da carne sem medo de punição. Sem remorsos. Apenas desejo de nos termos. Nos possuirmos em pleno para além de limites sem sentido.
O paraíso somos nós!

segunda-feira, outubro 27, 2014

O cadáver do enforcado


O corpo jazia dependurado. A corda, robusta, perfeita para a sua missão, segurava toda aquela figura necrosada. Uma ponta amarrava o ramo da árvore que, com a sua grossura, não cedia perante o peso de alguém sem vida. A outra ponta apertava, implacável, o pescoço do pobre homem. Certificava-se que o oxigénio não passava por lá. Assim foi, até que a vida se extinguiu. Agora apenas garantia que aquele cadáver se mantinha lá no alto, sem cair.
Os dias passaram desde a execução. A carne do sujeito, sem o bater do coração e o irrigar do sangue, foi apodrecendo lentamente.
O que era um rosto rosado, quente, a esbanjar vida, foi profanado por um grito mudo que não se conseguiu soltar da garganta comprimida. O debater dos membros apenas piorou a agonia. A morte tomava-o sem misericórdia.
Quando finalmente parou, a face encontrava-se pálida. Dum branco cadavérico. Desprovida do rubor de quem tem um espírito vivente. As bochechas, carnudas, foram perdendo o seu volume, como se fossem chupadas pelo interior. Agora, apenas restavam os contornos sinistros duma caveira, coberta por uma fina camada de pele que se degrada a cada minuto que passa.
Os olhos, foram depenicados pelos corvos que se deliciaram com o manjar. No seu lugar estão dois buracos negros que emanam o mais absoluto terror. O queixo continua caído, como se continuasse a soltar perpetuamente um apelo desesperado por misericórdia.
Enormes ratazanas e outros bichos ignóbeis passeavam-se pelos ramos, descendo até ao morto, por entre movimentos hábeis. Aos poucos, roíam-lhe as roupas e iam-se alimentando de pedaços de carne pútrida, contribuindo para a sua decomposição.
As bruxas, essas, vinham pela calada da noite até ao mórbido local, em busca das mandrágoras que por ali cresciam. Procuravam essas raízes para os seus feitiços odiosos. “Debaixo de um enforcado crescem as melhores”! Assim acreditavam elas. Pois, numa cómica ironia da vida (ou morte), os homens jazidos na forca, ejaculavam logo após o derradeiro estrebuchar. Fecundavam assim, com o seu sémen moribundo, as plantas, tornando-as num apetecível ingrediente para as artes do oculto.
As pessoas de bem afastavam-se dali. Se a visão aterradora daquele cenário não fosse o bastante para os demover de se aproximarem, o cheiro nauseabundo que dali emanava tratava disso. Por vezes, alguns mais corajosos, ou crianças inocentes, cediam à curiosidade e abeiravam-se daquele sítio maldito. Era certo fugirem logo a seguir para deixar sair os vómitos enojados das suas entranhas. Para não falar nos pesadelos que durante muitas noites os iriam visitar.
Hoje, se passarem por ali, apenas vão ver uma árvore muito antiga rodeada por uma bela vegetação. Uma paisagem digna da tela dum pintor famoso. A natureza é assim. Lá tem os seus meios de fazer esquecer os horrores de outros tempos. No entanto, se escutarem com atenção, vão ouvir os gritos de desespero de quem aí pereceu…

terça-feira, outubro 21, 2014

A Cidade ~ Conto a 8 mãos



Há algum tempo aderi à iniciativa Vamos escrever um conto? promovida pelo blog "Quando se abre um livro..."
O nosso conto foi escrito em conjunto por oito pessoas, sem grande experiência em que cada uma escrevia uma parte. Normalmente estas iniciativas não correm muito bem, mas neste caso acho que foi o oposto.
Coube-me a mim escrever o final, que pode ler a partir da página 11.
Gostei bastante do resultado. Sinceramente acho até que merecia uma continuação.
Deixo-vos com o início.
Podem ler, ou descarregar o conto completo aqu: https://www.dropbox.com/s/av5duopjrzpxjqn/CONTO%20FINAL%20A%20cidade.pdf?dl=0
Agradeço a vossa opinião!

Os raios de sol entravam pela janela do quarto, atravessando a cortina branca e fazendo antever outro esplêndido dia de final de primavera.
Eva desligou o despertador e decidiu aproveitar durante mais uns minutos o quente aconchego da sua cama. Era sexta-feira e o dia previa-se atarefado: de manhã teria de fazer as compras para a semana seguinte; para a tarde tinha agendadas duas sessões no Clube de Escrita, na biblioteca onde trabalhava; e à noite iria a um jantar com o grupo do voluntariado, antes de entrar ao serviço no bar-discoteca, onde trabalhava em part-time dois dias por semana.
Enquanto fitava o teto do quarto, não conseguiu impedir-se de recordar o que acontecera há onze meses atrás. Parecia ter decorrido uma eternidade desde a última noite que passara com ele antes da sua vida se desmoronar. As lembranças desses dias eram ainda dolorosas, tal como era insuportável a saudade que por vezes lhe regressava ao coração, apertando-o num nó cego, como se de uma corda se tratasse.
Em poucos dias, Eva passara de uma noiva feliz a uma solteira de coração destroçado. Caramba, Afonso engravidara a sua prima, a sua maldosa prima que só agia através de planos rebuscados e com o único objetivo de interferir na relação de ambos.
Depois do choque, da desilusão e do noivado desfeito, Eva enclausurara-se no seu quarto durante vários dias, sem querer ver ninguém. A pouco e pouco, à medida que os dias davam lugar a semanas, Eva retomou a sua vida, embora os seus sentimentos se assemelhassem a uma tempestade que teimava em não amenizar. Dois meses depois, cansada dos olhares de piedade e dos comentários intriguistas dos habitantes da sua aldeia, Eva abandonou a casa dos pais e mudou-se para a cidade, ficando no apartamento da sua amiga de infância, que estava vazio desde que esta fora estudar para Londres.
...
Continuação aqui

sexta-feira, outubro 17, 2014

O Despertar (O Narrador II)


Abriste os olhos. Está escuro. A tua mente está vazia. Lentamente os primeiros pensamentos vão chegando, com eles alguma confusão momentânea. Onde estás? Que dia é hoje? Que horas são? Tens demasiada preguiça para tentar obter respostas. Durante algum tempo deixas o teu corpo relaxado debaixo dos cobertores. Aquela ausência de memórias acompanhada de inercia sabe-te bem. Paira um silêncio no ar. Há nele tanto de aconchegante, como de perturbador. Por isso, torna-se intimidante tentar sair da cama.
No entanto, uma inquietude começa a crescer no teu íntimo e surge a questão: Afinal o que aconteceu?
Acordaste.
Foi somente isso. Algures na noite algo te roubou do sono. Levas a mão ao relógio e verificas o mostrador. O teu raciocínio começa então novamente a funcionar completamente. É um dia da semana e de compromissos. Despertaste uns quantos minutos (que mais pareceram horas) antes da hora de levantar. “Estranho”, pensas tu. Não houve nada que te fizesse acordar mais cedo. Nenhum barulho. Nenhuma agitação. Nenhuma ansiedade. Nada. Excepto talvez aquele silêncio inquietante.
Um arrepio percorre o teu corpo e aconchegas-te, enquanto aguardas que os ponteiros alcancem a meta.
A noite passou rápido, não te lembras de adormecer, nem de sonhar. Foi como se te desligassem um botão e o voltassem a ligar. Mas posso garantir que sonhaste. Eu estava lá e assisti. Sou o teu narrador, lembras-te? Perguntas se foi algo importante? Não. Apenas um emaranhado de fragmentos bizarros de memórias e fantasias que andam à deriva no teu inconsciente. Nada de interessante que mereça ser recordado.
Amanhece. Pequenos raios de luz entram pelas frinchas da janela fechada. Lá fora ouvem-se os primeiros ruídos, as pessoas começam a executar as suas rotinas. O momento tinha chegado.
A bexiga cheia e os gases intestinais acumulados durante o descanso, lembram-te que agora, finalmente, é a tua vez de sair da cama e que carregas o fardo de todo o ser humano. A fragilidade da carne. Também tens os teus hábitos matinais: casa de banho, higiene, vestir, tomar o pequeno-almoço e mais umas quantas trivialidades que efectuas todas as manhãs.
A roupa que vais vestir. A tua aparência. Perder algum tempo em frente ao espelho é essencial. É importante que causes boa impressão. Dizes para ti que não te importas com que os outros pensam, mas ambos sabemos que não é bem assim. Não é verdade? Convém que alguém repare em ti, te dê um pouco de atenção. Alem disso, nunca sabes se hoje é o dia em que algo especial vai acontecer. Tens sempre aquela esperançazinha. Porque não? Pode haver uma boa surpresa ao virar da esquina. Quem sabe?
Agora que te preparas para sair, aproveito para dizer um grande BOM DIA, alto e em bom som, cheio de entusiasmo e energia! Um Bom dia completamente sincero! Dito do fundo do coração, com grande alegria por estar contigo.
Já reparaste que a maior parte das pessoas cumprimenta os outros e também pergunta: “Está tudo bem”? Quando na realidade estão-se nas tintas para a resposta. Sabes bem que é assim, não tentes argumentar que estou a dizer um exagero. Tu também o fazes… É um facto de que, no fundo, não queremos saber dos outros. Também não há motivo para dramas. O mundo é assim. Não há muito que se possa fazer em contrário, por mais que tenhamos vontade disso.
Pois… Só agora é que notaste. Apesar de teres várias pessoas à tua volta; apesar de teres alguém mais próximo em algo que descreves como “amizade; apesar, até, de existir na tua vida uma relação amorosa, sentes o nevoeiro da solidão a encobrir-te. Esse sentimento nefasto que causa tanto medo. Ficar só assusta qualquer um. Portanto, vai-se enganando esse fado com a companhia dos outros. Nada de grave. Toda a gente faz isso. À excepção de uns quantos sortudos que vivem iluminados. Podes sentir inveja desses. Não é pecado…
Não fiques aí à porta da rua sem te mexeres. Já não estás na cama de mente vazia. O dia já corre com a sua azáfama e tens coisas marcadas. Vai lá. Faz-te à vida. Dou-te uma palmadinha nas costas de motivação. És capaz. Acredito em ti.
Entretanto, vou narrando a tua história. Entre pequenas e grandes feitos. Até breve...

quarta-feira, outubro 08, 2014

Romeu & Julieta


Que serias capaz de fazer, por amor?...
Dá que pensar! Pode-se fazer tanta coisa por amor. Tantas loucuras encorajadas pela certeza que este sentimento tão belo nos dá, de que tudo vale a pena para que dois seres enamorados fiquem juntos para sempre.
No entanto, a morte é inevitável, tornando findável o amor... "Até que a morte vos separe." Portanto, não se trata de viver ou morrer, mas sim, de uma separação de quem amamos. O que é algo muito mais doloroso.
E se o segredo do amor não estiver na vida, mas na morte?
Talvez seja por isso que já se tenha escrito tanto sobre amor e morte. Sejam poemas, tragédias, ou canções. Existe uma profunda ligação entre estas duas palavras. Amor e morte.
Quem não conhece a história de Romeu e Julieta?
Há quem defenda ser uma história triste, outros, uma história bela onde dois amantes se reúnem através da morte. Sou a favor da segunda opção.
Creio que foi Einstein que disse que “o tempo é uma ilusão, ainda que persistente”. O presente, o passado e o futuro já aconteceram. Tudo depende do ponto de vista. Se o génio com as suas teorias e fórmulas matemáticas estiver certo, a nossa existência é quase uma mentira. Vendo as coisas por esse prisma, ameniza-se a tragédia da morte. No entanto, por outro lado, apaga a beleza da vida.
Podem argumentar que o amor deve ser vivido em pleno, durante o tempo de vida, como humanos. Com uma certa inocência até. Não deixam de ter uma certa razão. Até porque, na condição de humanos, apenas conhecemos este mundo, com as suas regras. O que está para além dele assusta-nos e preferimos evitar o assunto.
Mas sendo assim, o amor seria algo frágil, como nós. Findável. Não acredito nisso. Para mim o amor é a força mais poderosa do mundo, capaz de vencer a própria morte. Interrogo-me qual seria a fórmula que Einstein iria elaborar para provar esta teoria?
O amor é mais forte que tudo!
Não sou matemático, nem físico, nem cientista, nem tao pouco filósofo, mas tenho esta convicção inabalável. A Fé total e absoluta na força imbatível do amor!
Vendo as coisas assim, talvez na morte resida a felicidade. Onde todos que se amam ficam juntos eternamente num mundo para além deste.
Depois desta reflexão, volto à questão inicial:
O que seria capaz de fazer, por amor?
Morrer.

quarta-feira, outubro 01, 2014

Luna Tenebrae


A noite chega devagar
Com ela traz o medo
Escondido em segredo
Não há por onde escapar

O frio faz arrepiar
O sol já não aquece
Depois que entardece
O dia ainda vai demorar

Está sinistro o luar
As bruxas dançam
Os feitiços que cantam
Pouco consegue iluminar

O terror vem-te visitar
Inquieta a tua mente
Numa insónia insistente
Em um constante acordar

Não te deixes assustar
Pela tua pura inocência
Nas trevas da consciência 
Pois o dia há-de voltar

Smashwords – Autores Portugueses

O Smashwords é um site onde podemos publicar gratuitamente os nossos livros, ou contos, no formato ebook, cobrando alguma coisa por eles, ou disponibilizando-os de graça. É uma excelente plataforma para autores amadores divulgarem o seu trabalho.
Podem aceder em www.smashwords.com.
Ando a explorar este site excelente e trago-vos três autores que gostei bastante e aconselho vivamente a descarregarem o trabalho deles:

Carina Portugal

Manuel Alves

Olinda P. Gil

Podem dizer que é preferível um livro normal ao formato digital. Concordo. No entanto quando temos excelente literatura portuguesa disponibilizada de forma gratuita, vale a pena experimentar. Ao fim de pouco tempo habituamo-nos. Podemos ler no tablet ou até no telemóvel. Existem várias aplicações que tornam a leitura mais confortável.
Acreditem que vale a pena dar uma vista de olhos, com certeza terão boas surpresas.
Quando encontrar mais autores interessantes vou divulgando aqui.

terça-feira, agosto 12, 2014

O narrador


Imagina-me!
Os traços do meu rosto, a minha pele, as minhas rugas, a minha idade… Visualiza na tua mente todos os contornos da minha aparência. Serei um velho repleto de sabedoria? Uma criança inocente a aprender os segredos da vida? Ou simplesmente o maluquinho da aldeia a quem ninguém liga com as suas palermices?
Vá lá, deixa que a tua imaginação me descreva. A minha altura, as minhas roupas, as minhas banalidades, o meu sexo! Homem ou mulher? Quem sou eu? Uma bruxa vil e malvada? Uma menina de coro numa demanda para fazer o bem? Ou simplesmente uma sonhadora?
Há tanto por onde escolher. Diz-me como me vês? Tanta gente no mundo, todos diferentes no físico, ideais, religião, posses e outros mil e um pormenores que tornam cada individuo diferente do outro. Serei uma pessoa rica a exibir os seus luxos? Um mendigo invisível numa rua movimentada? Ou simplesmente um qualquer ninguém?
Conta-me o que o teu instinto te diz. Serei humano? Não existe qualquer obrigatoriedade em sê-lo. O limite daquilo que sou é proporcional ao da tua criatividade. Portanto não tenhas medo de me conceber como muito bem te apetecer, sem qualquer tipo de barreiras. Serei um espectro a vaguear pelo mundo? Um animal que olha para as pessoas sem que estas se apercebam que também tenho entendimento? Ou simplesmente um acaso do destino sem qualquer tipo de lógica?
Quem sabe até se sou a tua própria consciência a tentar acordar-te do marasmo em que te aconchegaste. Assim, no quentinho, confortável, rotineiro… É tão bom, não é?
Sim! Estou a falar para ti!
Não tentes ignorar-me porque eu sei o que se passa dentro de ti: o teu coração, os teus sentimentos, as tuas lágrimas, as tuas paixões e conquistas.
“Como posso eu saber”? Perguntas tu.
A resposta é simples. Porque tu me mostraste. Disseste-mo através do choro que tentas esconder; do teu sorriso tímido arqueado pela paixão; na forma como o teu corpo fica irrequieto quando algo te atormenta; pelo brilhar dos teus olhos quando algo te emociona; mas principalmente, pela porta que me abriste directamente para os teus sonhos!
Ah! Como são belos! Devo dizê-lo com rasgado elogio. Adoro passear por eles sempre que adormeces. Faço-o como quem busca um tesouro, ou como quem o encontra. Pois, por vezes parece uma aventura perder-me nos teus sonhos, outras, faço-o por pura contemplação, tal como um monge em meditação profunda, ou um artista que aprecia uma obra de arte.
Mas não penses que o faço apenas enquanto dormes. Porque a melhor parte do sonho humano acontece quando se está acordado. Sabes bem disso, não sabes? É por esse motivo que me fascina o teu despertar!
Ainda duvidas sobre tudo que sei a teu respeito?

Pois bem, quem sou eu então? E o que pretendo de ti?
Questões seguidas de questões… Quanto à primeira deixo ao teu critério. Imagina-me! Pois a imaginação abre as portas do instinto. És livre de me idealizares como quiseres. Tanto me faz, desde que o faças!
Quanto à segunda, a resposta é simples: Quero inquietar-te… Roubar-te da tua vida banal. Dos teus risos vazios e choros inúteis; dos dias preenchidos com o enganar do tempo, à espera que ele passe na esperança cansada em dias melhores!
Quero que sintas o caos!
Desejo que sintas o sangue a ferver e saias para o mundo, não para fazeres o que os outros fazem, mas para seres tu, a irradiar esses sonhos que escondes dentro de ti, com tanta vergonha. Para os cumprir, como uma explosão avassaladora que arrasa toda a Terra!
Quero que sejas o caos!
Quanto a mim. Seja lá o que eu seja. (Reitero a ideia que deves ser tu a imaginar-me) Anseio apenas ser o narrador dessas aventuras. Um pedido simples, ainda que tenha o seu “je ne sais quoi” de excêntrico. Compreendo que penses assim. No entanto, todos temos as nossas pequenas extravagâncias e esta é a minha. Não me tomes por alguém louco, sei que não o farás, mas também não perguntes o porquê. Aceita apenas.
Por agora despeço-me, com a certeza de que em breve voltarei…

sexta-feira, agosto 08, 2014

O rei


Sentado no meu trono
Observo toda a gente
Ora atento, ora indiferente
Sempre impavidamente
Vou governando o meu reino

Sentado no meu trono
Vejo rostos distantes
Outros contentes
Alguns até dementes
Vou sentindo o abandono

Sentado no meu trono
Aprecio a solidão
Saboreio a contemplação
Dum momento sem paixão
Vou sendo levado pelo sono

Sentado no meu trono
Deixo o tempo passar
Sem nada a esperar
Apenas constatar
Sei que de nada sou dono

domingo, agosto 03, 2014

O orante


Gostava de criar uma oração que dissesse a Deus tudo que tenho verdadeiramente dentro do meu peito. Todos os desejos que habitam o meu coração. Todas as mágoas, ânsias, agradecimentos e louvores também!
Tenho alguns pedidos muito estranhos, outros simples, mundanos, como os de toda a gente. Mas não me posso esquecer de agradecer, ou realçar como é grandiosa, maravilhosa, indizível, a magnificência de Deus!
Gostava de saber rezar assim. Talvez seja demasiado inteligente para isso, ou demasiado burro. Às vezes acho (tenho a certeza) que a simplicidade e a inocência são o verdadeiro caminho para conhecer Deus. Ainda que não compreendamos o conceito de Deus. Pelo menos é essa a minha opinião. Mas quem sabe se não estou errado? Porque Deus tem uma ironia muito própria e gosta bem de confundir os sábios. Está escrito!
É certo que a inocência é o caminho. “Sejam como estes pequeninos”. Inocentes. Porém, eu não sou assim…
E eu tenho o vício de tentar compreender o conceito de Deus. Embora tudo que tenha sejam apenas teorias, nada mais. Podem ser até muito complexas, mas até chegarem ao conceito de Deus, precisam de uma longa viagem pela frente. Às vezes tenho a sensação de que é pecado tentar descobrir esse conceito. Provavelmente é uma anedota, para que Deus se ria de mim.
Não sei se Deus está jogar uma espécie de xadrez cósmico, onde sou apenas um peão neste universo tao bizarro e incompreensível. Ou se Deus me considera mesmo Seu filho. Ou se sou parte integrante Dele. Sei que Ele está ali, o que quer que Ele seja. Demasiado grande para que eu O consiga definir, porque eu sou demasiado pequeno.
Para nós, Deus tem muitos rostos, muitas religiões, muitas regras… Mas Ele é só um. Nós, humanos, é que gostamos de complicar e dividimos Deus como se Ele fosse divisível. Não! É só um. Demasiado grande. É com ele que eu gostava de falar. Expressar aquilo que vai em mim.
Tudo aquilo que sou!
Todos os átomos que me compõem!
Toda a inteligência e conhecimento que correm no meu intelecto!
Todo a sabedoria que vou adquirindo!
Na realidade, sou apenas mais um ser que está perdido e gostava de se encontrar…

quarta-feira, julho 30, 2014

Basium obliviosus


De repente o infinito terminou!
Juras de amor eterno perderam-se no tempo,
digeridas pelas entranhas do esquecimento,
eternas, apenas no seu momento.
Aquilo que era "para sempre" acabou...

Afinal o "eternamente" não demorou.
A realidade trouxe com ela o que é banal,
a vida temperada com pouco sal,
sabe a pouco aquilo que não é especial,
perdeu-se a magia do que começou...

Quem amou, entregou-se e acreditou.
Mas a entrega não foi longe,
estava mesmo ali o seu auge,
logo após o primeiro pecado herege.
Desejava o inferno mas não o encontrou...

O primeiro beijo uniu e dissipou.
Foi-se deixando esquecer,
o seu sabor de engrandecer,
a sua promessa de florescer,
tão grande, apenas separou...

sábado, julho 26, 2014

O povoado


Gosto de cruzamentos. De ficar parado neles a pensar para onde vou quando rumo sem sentido. Deixo o tempo passar devagar enquanto o automóvel aguarda a minha decisão. Esquerda, direita ou em frente?
Escolha difícil quando não conhecemos o destino e nem temos pressa.
Enquanto não decido deixo a minha mente divagar para lugares longínquos e os meus olhos vão correndo o horizonte.
Ao longe vejo um povoado. Não consigo identificar ao certo a distância, nem o tamanho. Diria que é uma vila pequena, ou média talvez. Podia ir ao Google Earth descobrir que vilarejo é aquele, mas não me apetece. Isso seria estragar um pouco a magia daquilo que estou a observar. Prefiro imaginar como será. 
Interrogo-me: quantos habitantes tem? Quem são eles e o que fazem? Os seus rostos, idades e histórias? Há tanto por onde perguntar acerca de desconhecidos. 
Creio que devem haver por lá três ou quatro pessoas interessantes. Gostava de me sentar com elas à mesa dum café ou esplanada a conversar.
Suponho que lá existam cafés com esplanadas também. Pessoas que se sentam em volta de uma mesa a discutir trivialidades da vida. Futebol, politica, cusquices… Ou então, filosofias mais elaboradas, o meu tema favorito, devo dizer. É um pouco o meu vício, gosto de filosofias elaboradas. Daquelas que surgem numa conversa e de lá não saem. Era isso que gostava de falar com esses três ou quatro. Saber aquilo que eles acham da vida num sentido metafórico.
Talvez um dia vá lá. Hoje não. Tomo nota do local mentalmente para uma hipotética viagem no futuro.
Por agora aproveito este momento a sós com a estrada vazia, com a escolha do cruzamento, comigo mesmo. Ninguém sabe ao certo o que sinto, ou o que quero sentir, ou o que deixo de sentir. Ou o que sou…
Acho que a minha maior diferença é gostar de observar. Passar despercebido sem que me despercebam. Deixar os meus pensamentos escondidos, como uma vida secreta, só para o meu conhecimento, ou de uns poucos que comigo privam de quando em quando.
No entanto a minha atenção continua naquele povoado e nas suas gentes. Podia lá ir. Mas no fundo sei o que ia encontrar. Mudavam os rostos, o cenário, mas as histórias continuavam semelhantes. Seria mais uma terra como as outras, como esta, como a minha, como a tua…

terça-feira, julho 22, 2014

Velle lacrimare


Fiquei com vontade de chorar
Sabia que o fim viria mas não acreditei
Até que aquela música triste começou a tocar
Como uma marcha fúnebre pelo que amei

Fica a memória daquele beijar
A pele macia que acariciei
A felicidade que me fez voar
O peito onde me entreguei

Inebriado por tanto acariciar
O mesmo corpo onde me deitei
No seu conforto me encontrar
Com todo amor que lhe dei

Eu sabia que a dor ia chegar
Fingi com todas as forças que encontrei
Que a felicidade era conseguir amar
Foi assim que me enganei

sábado, julho 19, 2014

A dignidade


O disparo da bala ecoou pela vizinhança. O som da viscosidade dos pedaços de cérebro, crânio, sangue e carne humana, a escorrer pela parede, deram seguimento à fatalidade.
O corpo caiu inerte, sem vida. Ou melhor, sem estímulos eléctricos que lhe dessem novamente movimento.
A arma, pesada, de grande calibre para ter a certeza que a intenção não falhava, acompanhou a queda. Manteve-se, eficaz, na mão do homem. Não havia qualquer beleza, ou dignidade no suicídio. Apenas uma cena grotesca e visceral que iria fazer vomitar o pobre coitado que a fosse encontrar. 
Ou então, talvez apenas alimentar a cusquice e a curiosidade mórbida de quem gosta de comentar este tipo de coisas. O povo é assim…
Mas a morte foi consumada com sucesso. 
No entanto, há que salientar o facto de não ter existido qualquer beleza e muito menos dignidade. Foi apenas morte, desejada.

quinta-feira, julho 17, 2014

O desejo


A noite surgiu
Boca ofereceu 
Beijo teu
Arrepio aconteceu
O desejo abriu

O suor brotou
Luz da lua
Carne tua
Pele nua
O desejo entrou

O gemer fluiu
Amar somente
Tu quente
Fogo ardente
O desejo explodiu

O mundo parou
Abraço intenso
Nosso paraíso
Eterno imenso
O desejo descansou

terça-feira, julho 15, 2014

A sentença


A noite foi surgindo de mansinho anunciando o momento. O caixão abriu e o vampiro acordou. O seu primeiro pensamento foi de desejo, tal como tinha sido o último antes do nascer do sol. A imagem de rosto angelical e traços femininos invadiu-lhe a mente e desejou. Não como um monstro anseia a sua presa, mas como um homem deseja uma mulher. Era assim desde que olhou para ela.
Queria apenas o seu sangue mas tudo que conseguiu sentir foi uma paixão infindável. Como se o seu coração bombeasse novamente calor e o seu cadáver fosse capaz de enfrentar o sol.
Amava…
Mas como pode ele sentir isso? Se já perdeu a sua humanidade há muito tempo. Demasiado para se lembrar de como é ser humano, quanto mais amar.
Então, porque é que ele a deseja?
Será capaz, de no mais fundo abismo negro do seu íntimo, sentir amor?
Sendo assim, será que existe redenção?
Não!
Foi Deus que o amaldiçoou com aquele castigo de amar sem o poder fazer. Que tortura insuportável era aquela. O desejo constante de beijar aqueles lábios quentes com a sua boca fria. Tocar aquele corpo rosado com as suas mãos desprovidas de vida. Para sua agonia apenas podia desejar!
Que saudades de quando era apenas um monstro. De matar! Destruir! Beber o sangue! Rasgar a carne com as suas presas! Desprovido de qualquer tipo de remorsos!
Sem dor. Sem medo. Sem castigo!
Ou pelo menos ele pensava assim. A sua punição não tardou a chegar e, para seu desespero, não podia ter um destino mais cruel. O mais terrível dos juízes sentenciou-o a uma condenação pior do que ao inferno.
Amar…

domingo, julho 13, 2014

Sorrisos que encobrem penúria


Sou um sacana gótico 

Tenho um certo fascínio pela melancolia
Acho que os abismos estão cheios de magia
Encontro neles um certo sentido poético 

Há coisas que só podem ser descritas com poesia
Escrita pela madrugada até o nascer do dia
Num transe bizarro onde mergulho como um fanático

Creio numa religião que faz do sono uma heresia
Ou numa ideologia grotesca que abomina a calmaria
Nela viajo por rimas entre o obscuro e o dramático 

Apraz-me caçar sorrisos que encobrem a penúria 
Ser um saqueador a navegar abismos sem alegria
Encontrar num coração triste um tesouro excêntrico

Riquezas escondidas em vontades tomadas pela inercia 
Porque toda a gente reconhece na vida a miséria 
E secretamente não resisto um final apoteótico 

quinta-feira, julho 10, 2014

Entre as várias esquinas


A velha saiu de casa num passo apressado. Um caminhar bem mais acelerado que a sua idade, com certeza bastante avançada, devia permitir.
Um lenço negro cobria-lhe a cabeça, usava-o talvez por tradição, ou talvez numa tentativa inútil de esconder as rugas carregadas que lhe adornavam o rosto (ou deformavam). Quem sabe qual seria o seu ideal de beleza? Certamente fora criada num tempo (já esquecido) em que a beldade importava pouco, em detrimento da robustez física. Assim parecia ser.
De resto, umas vestes negras, já gastas pelo tempo a julgar pelos remendos, cobriam-lhe as costas vergadas pelo peso dos anos. Pela aparência só poderíamos imaginar o seu corpo decrepito e deformado pela velhice.
Irrompeu pelas ruas da cidade decidida, sem medo. Como um espectro de outros tempos, avançava determinada entre rostos, prédios, veículos e o caos da modernidade. Parecia saber onde queria ir, ou quem sabe a demência dava-lhe essa ilusão.
Muitos eram os que a olhavam. Alguns faziam-no com repulsa perante aquela figura grotesca e sinistra que se desfasava da multidão.
Outros viravam os olhos para o outro lado. Alguém assim não tinha lugar na urbe, onde reina a perfeição, por isso ignoravam e seguiam o seu caminho, esquecendo as fracções de segundo em que se cruzaram com tal personagem.
Alguns, no entanto, dotados de gentileza (felizmente esta ainda existe), perguntavam à estranha senhora idosa se necessitava de ajuda. Mas ela, por orgulho, vergonha, ou outro desígnio qualquer, baixava a cabeça e não respondia. Continuava a sua caminhada cabisbaixa e silenciosa.
Um menino, quase adolescente, dava chutos numa bola, imaginando na sua cabeça que era um jogador de futebol famoso, aplaudido pelo mundo. O seu devaneio foi interrompido pelos passos apressados daquele vulto coberto de negro.
Lembrou-se que os seus pais contavam que antes de viverem na cidade, haviam crescido numa aldeia perdida nos montes, já esquecida no tempo. Diziam que os jovens fugiram todos da existência áspera do campo, em busca de conforto e para trás só ficaram os velhos que nada mais sabiam da vida, a não ser a rotina do deitar cedo e cedo erguer e para si não desejavam mais nada. Por isso ficaram, remetidos ao abandono. Comentavam que as rugas dessa gente eram mais fundas, ríspidas e assustadoras.
Com essa imagem na cabeça e curioso por alguém assim com uma aparência tão deslocada palmilhar aquelas ruas agitadas, decidiu segui-la. Reparou que no seu regaço segurava afincadamente uma trouxa de pano. “Que seria que levava lá dentro”? Inquiriu a criança que manteve sorrateiramente a perseguição à senhora que teimava em não abrandar.
Com uma agilidade quase sobrenatural para um ser humano (quanto mais uma idosa) e um ritmo alucinante, ela esgueirava-se entre a multidão com extrema facilidade, o que dificultava bastante a tarefa do menino. Mas ele não desistia e manteve-se no seu encalço. Por vezes tinha de saltar entre as pessoas para tentar avistar onde estava aquele lenço negro. Tarefa que se mostrava cada vez mais difícil.
Não tardou a que a perdesse de vista entre as várias esquinas. Ainda correu de um lado ara o outro para lhe tentar encontrar o rasto sem sucesso. Aquela estranha figura coberta de negro, tal como um fantasma, dissipou-se entre o mar de rostos que iam e vinham ao som da hora de ponta.
Resignado por não ter descoberto o destino daquela velhota de rosto encorrilhado, segurou a sua bola e regressou à sua fantasia de jogador de futebol. Mais tarde, ao jantar, iria contar aos pais aquela pequena aventura. Quem sabe se eles conheciam o segredo daquela velha senhora…

sábado, julho 05, 2014

Quantos idiomas existem no mundo?


Conheces a minha mente, gostas de entrar lá dentro e ver o que consegues encontrar. Sabes que existe algo em mim que se deixa cativar por ti. 
Talvez seja por isso que me deixas doido com o simples facto de seres tu, selvagem, libertina, imprevisível com as tuas extravagâncias.
Fazes-me prostrar de joelhos, diante ti. Eu, o mais livre dos homens. Fazes-me rir, fazes-me chorar. Fazes-me pensar em ti o tempo todo (ou demasiado tempo para o meu gosto).
Eu questiono-me o porquê de me ir embora, acabando sempre por voltar para ti, obcecado pelos teus olhos de feiticeira! A pensar nas nossas madrugadas e nos nossos nasceres do sol.
Porque é que me deixas doido? Sim eu sou doido! Mas não é altura para pensar nisso porque tenho outra coisa mente:

Je veux faire l'amour avec toi!

Digo em francês porque me parece uma boa língua para fazer amor.
Depois vou embora, não quero estar mais contigo.

Dito isto volto.
Quando parece que já não te desejo consegues arranjar uma maneira de rastejar de volta para dentro da minha mente. Sou raptado pela tua voz fresca como uma brisa de verão. Simplesmente não resisto e apesar das milhares de razões que tenho para partir, acabo sempre por regressar. O meu abandono é momentâneo. Apenas uma intenção rapidamente esquecida.
Talvez queira saber qual vai ser a teu próximo desvairo. Talvez esteja verdadeiramente hipnotizado por ti. Talvez esteja viciado no teu corpo e queira prova-lo novamente até que atinjas o êxtase. E como ficas bela quando te desfazes em prazer!
Preciso de ti e quero-te apesar deste dilema de ir e vir. Sim eu sou doido! Mas não é altura para pensar nisso porque tenho outra coisa mente:

Quiero follarte salvajemente contra la pared hasta hacerte llorar de plácer!

Digo em espanhol porque me parece uma boa língua para fornicar à bruta.
Depois vou embora, para certamente voltar.
Quantos idiomas existem no mundo? Aposto que os conseguimos foder a todos e até inventar mais uns quantos entre estes ciclos tresloucados de ir, vir e amar sem querer (ou querer muito)…

segunda-feira, junho 30, 2014

O hino


Adormeci
O cansaço embalou-me e o sono arrebatou-me para as suas profundezas.

Perdi
O tempo, sem que eu desse conta da sua passagem, deu um salto. Foi como se esse intervalo nunca tivesse existido.

Esqueci
Talvez tenha sonhado. Mas se assim foi não me recordo. O que é pena, pois mesmo na sua bizarra ilusão, os sonhos dar-me-iam algo para contar.

Acordei
Um som mais forte reavivou-me. Os ponteiros do relógio confirmaram que me havia deixado ir com a sonolência.

Despertei
A vida chamou-me de volta. As horas apagadas trouxeram-me algum repouso. Não o suficiente, suponho. A inquietude ainda corria nas minhas veias.

Voltei
Ignorei o conforto do corpo adormecido e escutei, algures, as vozes que me chamavam. Levantei-me ao encontro delas para me lembrar de quem sou.

A vida pede-me que entoe o seu hino.
E fui.

sábado, junho 28, 2014

Para quem ama as emoções


Para por um momento.
Vem conversar um pouco comigo.
Já reparaste na beleza que nos rodeia? Sim, eu sei que parece um cliché, mas observa com atenção.
Está cair a noite, o céu está limpo, não tarda aparecem as estrelas! Olha, lá está a primeira. Vê como o seu brilho é forte. Não tem medo de se afirmar como a mais cintilante de todas.
O sol já se escondeu por completo e trouxe consigo a fresquidão. Sabe bem depois de um dia quente. Um manto negro já foi estendido sobre as nossas cabeças para servir de palco ao espectáculo do firmamento.
Mais estrelas estão a chegar, tímidas, mas lá vão rompendo a escuridão para nos maravilhar. Para não falar na lua. Contempla como se impõe-se grandiosa, tal como uma rainha lá no alto a sorrir para nós.
Foda-se! É lindo!
Diz lá se tudo isto não te faz sonhar?
A rotina do dia-a-dia faz-nos cair no marasmo. Na apatia. Esquecemo-nos de contemplar este cosmos admirável que nos rodeia. Tentamos enganarmo-nos com um pouco de amor aqui, um pouco de aventura ali, um pouco de prazer acolá… Mas a verdade é que nos deixamos ir com a sonolência imposta pelo cansaço que a sociedade determina. Às vezes acho que querem castrar a beleza e a arte que acompanha a natureza.
Recuso-me a fazer isso! Não deixo!
Quero escrever poemas que emocionam, pintar quadros cheios de vida, criar músicas que façam dançar e chorar com o vibrar dos sentimentos.
Sabes, os cientistas dizem, com as suas equações matemáticas, que tudo já está predestinado. Vou-te contar um segredo: Não acredito em nada disso. Quero que esses estudiosos metam essas teorias pela goela abaixo e se calem!
Deixem sonhar quem ama as emoções.
Prefiro viver livre de amarras, de conceitos pré-definidos de como devem ser as coisas. Como deve de ser a nossa existência.
Não! Eu quero o mundo com tudo que ele tem para dar. Não quero apenas meras amostras de felicidade. Quero tudo como deve de ser!
Escuta um conselho, devíamos parar mais vezes, como seres finitos que somos e apreciar toda esta grandiosidade, porque temos à nossa disposição o próprio universo a se revelar para nós e só nos importamos com o efémero…

sexta-feira, junho 13, 2014

Onde moram os poetas


No mundo poético eu sou fumador, aqui não existem doenças que apodrecem os pulmões e entopem o coração. E se existirem são belas, ou melancólicas, tanto faz. Tudo é poesia! Nas suas palavras apenas existe encanto…
No mundo poético eu puxo o fumo do cigarro, travo e durante segundos infinitos deixo o meu pensamento vadio, algures… Finalmente, ao expelir, modelo formas de beleza abstracta, tal como um escultor de desejos…
No mundo poético eu sou um rei, um boémio, um pecador, (quiçá um santo redimido),um obsceno! Ou simplesmente ninguém, quem sabe? Talvez seja apenas eu a dizer tolices, ou talvez a inquietação que habita em mim…
No mundo poético eu sou criador de universos. Aqui não há limites para o que se possa criar. O único limite é ultrapassar os limites! Aqui, eu sou rival de todas as divindades da criação, ou pelo menos tenho essa ilusão. Ou tudo é ilusão! Quem sabe?
No mundo poético eu sou um vampiro que chupa o sangue de virgens inocentes. Em imagens românticas procuro o amor verdadeiro, atrás de esquinas sombrias entre palavras ousadas e reticencias caladas de sentimentos Inefáveis…
No mundo poético perco-me a escrevinhar fantasias inebriadas. Minhas, dos outros, ou de ninguém. Sigo sem ter um sentido. Vou enganado por achar que estou no controlo quando, na realidade, sou apenas um instrumento de uma consciência maior. A poesia é que manda…

quarta-feira, junho 11, 2014

Pequena prece


Que o ruído lá fora se cale
E a minha mente deixe o silêncio acontecer
Que as cores sombrias sejam expelidas
E um Arco Íris seja inspirado para dentro do meu ser
Que os sentimentos tumultuosos se acalmem
E uma energia serena flua com abundância em mim
Que a minha vontade fique livre de amarras
E a vida floresça colorida no meu íntimo
Que o sofrimento não me prenda ao que é banal
E o meu corpo se restaure com uma alegria prodigiosa
Que o caos se dissipe em Universo
E a sua música mágica me faça sonhar
Que o mundano e o grotesco se purifiquem
E a Paz da Serenidade me faça cantar
Que a sujidade entranhada com o tempo seja esfregada
Limpa, se torne imaculada e esquecida
Para que eu possa ouvir claramente a voz do Pai Cósmico
Sem interferências
Sem chamamentos
Sem tentações
Apenas eu e o Infinito
Apenas um
Mais nada

terça-feira, junho 03, 2014

Pedaços de sucata


Tenho demasiado barulho na minha mente. Incontáveis fragmentos de poluição mundana vagueiam pelo imenso cosmos da minha imaginação inquieta.
Um emanharado de memórias, fantasias, sonhos, projectos, ideais, loucuras, ou simples devaneios que vêm à tona no mar da minha consciência. Inquietam-me com a sua presença e não me deixam serenar. Parecem ruídos que estragam de forma irritante a melodia mágica que tento escutar. Uma música encantada que provém da própria essência do universo.
São como pedaços de sucata que teimam em estorvar o meu caminho, cada um por si a tentar chamar a minha atenção. Vou-me perdendo entre eles, a olhar para pequenos desinteresses e banalidades que pouco acrescentam à minha existência!
Quero mais! Sei que existem mundos novos a descobrir dentro de nós.
Tenho ganas de me encontrar! Mergulhar ao fundo da meditação. Viajar à génese da própria existência humana. Unir-me à inocência do primeiro homem, cuja herança trago gravada na minha aparência. Esvaziar a minha mente para que o meu pensamento fique puro e então deixar-me invadir por novas realidades. Encontrar um vislumbre da verdade cósmica que tanto anseio e beber, ainda que seja apenas um simples gole, da fonte do conhecimento.