quinta-feira, agosto 19, 2021

Interlúdio colorido

Sentou-se à sombra dos castanheiros, sentiu a brisa fresca que corria, inspirou e apreciou o cheiro da natureza. Soube-lhe bem. 

Apercebeu-se que sentia cansaço, com a azáfama nem tinha dado conta. "É estranho quando uma pessoa não se apercebe que está cansada, seja pelo trabalho, pela companhia, ou ainda até pelo próprio pensamento." Refletiu. Por isso encostou-se ao tronco robusto da árvore e descansou. 

Olhou em volta e contemplou a beleza colorida que estava em seu redor. Por ser Verão os girassóis estavam abertos. Eram imensos, altos como as árvores de fruto que se espalhavam pela quinta. Nunca tinha reparado que eram tantos, nem que podiam ser tão altos, ou que havia tanta variedade de fruta naquele lugar que parecia pequeno para quem olhava na rua. 

Relaxou como já não fazia há muito tempo, tanto que já não se lembrava de alguma vez o ter feito. Não olhou para o relógio. Não era preciso. Aliás seria até pecaminoso contar o tempo daquela pausa. Também por lá estavam alguns cães e gatos que dormiam tranquilamente sem preocupações. Afinal de contas os bichos não tinham as mesmas obrigações dos humanos. Não precisavam de medir o tempo e provavelmente por isso pareciam tão tranquilos.

É estranho como de repente tudo que lhe atormentava o pensamento desapareceu como se fosse insignificante. A tranquilidade era soberana. Sem vozes irritantes. Apenas o barulho das folhas que dançavam com a brisa. Aqui e ali os pássaros chilreavam e ao longe ouvia-se um pequeno moinho que girava. "Que sossego maravilhoso!"

Interrogou-se porque não parava assim mais vezes. Tão perto e ao mesmo tempo tão longe dos outros e de tudo. Só o momento e a natureza. Mais nada parecia importar. Os dias são longos em Agosto e isso é tão bom. A vila desacelera do lado de fora das sebes, parecendo querer acompanhar o ritmo da natureza.

As cores invadiram-lhe a alma. O céu azul, o verde nas folhas que dançam, o amarelo dos girassóis, o arco-íris da perfeição num dia de sol a irradiar uma pequena quinta. 

A calma afasta a pressa. A Paz deixa de ser apenas uma palavra e ganha um significado palpável na oração calada de quem contempla a sua própria pequenez. 


segunda-feira, agosto 09, 2021

Angústia erógena

Existe um erotismo estranho na fragilidade. Cativa-me o desmoronar da perfeição humana, quando as mentiras que suportam aquilo que tomamos por adquirido são reveladas. 

Há uma certa liberdade quando verificamos que a realidade não passa de um instrumento de submissão. Uma entrega voluntária de corpo e alma a dominação que a sociedade impõe. 

Sofremos os castigos e mendigamos por mais. Somos escravos da nossa própria ideia. A verdade é um véu que se levanta para mostrar outro véu e ainda mais outro. Se queremos lá chegar temos de levantar todas as camadas de supostas verdades. E mesmo assim, nunca temos a certeza onde está realmente a verdade que procuramos. 

Contudo, apresenta-se com pudor a alma nua decorada pelas cicatrizes que o viver impõe, outrora caladas, curadas pelo silêncio da boca proibida de mencionar tais queixumes. 

Magoa e chora-se na solidão de quatro paredes. Faz-se poesia nas palavras não ditas, nas dores não purgadas, no sofrimento proibido. Numa forma quase macabra, acho isso bonito. O choro; as dores; as cicatrizes que ficam para lembrar uma história. 

Dói querer ser gente, mas não faz mal. É suposto ser assim e é só assim que deve ser, mesmo a doer. 

O sofrimento é um silêncio constante que grita cá dentro onde o mundo não ouve. Lamentar é uma humilhação mesmo quando o flagelo é insuportável. 

Atrás da tua pele existe uma angústia erógena. Esconde-se como um chamamento que só os malditos conseguem ouvir. Depois, há o perfume da ilusão desfeita que emana do teu ser incompleto. Tudo é violento nesta atração pela carne imperfeita. E ainda bem! 

Sabes que os amores mais memoráveis acontecem por causa de desventuras. Começam na sombra, moldados pelo barro do proibido. Oculta-se o bom-senso para as confissões que nunca se fazem aos padres da santa inquisição. Eles acendem as fogueiras e o desejo dança nelas. 

A dor vem com a companhia da solidão. A cura chega na ânsia de beijar o que é negado. Mas ninguém pode negar por completo aquilo que inquieta. Lábios de vidro estilhaçados pelo beijo cortante que apazigua o sofrimento. Ama-se o que está despedaçado porque só assim a beleza pode ser infinita. 

A perdição parece eterna. Pois que assim seja. A paixão está escondida na fragilidade secreta onde mora o desejo!


terça-feira, agosto 03, 2021

Desculpa a desarrumação

Paixões platónicas!? Procura algures aí nas divisões perdidas do meu pensamento. Vai abrindo as gavetas da memória que deve andar por aí alguma perdida. 

Sim, sim, ainda deve ter algumas com uma pequena chama a arder. E se não estiver acesa sopra um pouco que ela deve animar. 

Entra, a casa é tua. Desculpa a desarrumação, mas tenho coisas mais importantes para fazer do que limpar a confusão na minha mente. 

Podes espreitar à vontade onde quiseres. Tenho a certeza que deve andar por aí perdida alguma coisa de interessante. Sabes que não dou muita importância ao que já passou. Por isso deixo por aí espalhado em lugares esquecidos. 

Se procurares com atenção, deves encontrar histórias que fogem bastante à noção de normalidade. Algumas até devem ser bastantes excitantes para os olhos de quem vem de fora. Mas cuidado! Não vá tropeçares por aí em algum segredo mais estranho. Sim, também tenho uns quantos e a alguns nem lhes dou importância. 

Não tenho tempo para organizar a minha mente. Eu lá me vou encontrando no meio da desordem. Sabes que gosto de ser assim. Sempre que é preciso sou capaz de montar um novo eu com os pensamentos que por aí andam à deriva. 

Não, não! Não preciso que me ajudes arrumar. Só a ideia de organização deixa-me incomodado. 

Andam por aí sim, uns quantos montes de entulho, que são mesmo só sujidade. Desses não te aproximes, não têm nada que valha a pena a não ser mesmo lixo. 

Mas sim, continua a procurar pelas minhas paixões. Pode ser que encontres algo que valha a pena recordar e quem sabe reviver. 

Estas coisas espalhadas pelo esquecimento são estranhas. Por vezes reemergem com uma vitalidade quase abusiva. Não achas? Embora, quando aparecem novamente para entrar na nossa vida, já não são verdadeiramente as mesmas coisas. Claro que têm uma história que já conhecemos, um prelúdio para a sua nova entrada em cena. Contudo, as coisas mudam, em mim e nessas personagens que antigamente faziam parte de mim. Por isso serão sempre novidade. 

Então já encontraste alguma coisa de interessante? 

Não. Então deixa-te estar, que eu vou fazer outra coisa. Quando encontrares avisa-me. Também eu tenho curiosidade naquilo que está perdido na memória e já nem sei.