quarta-feira, junho 29, 2022

Baseado numa história real

– Então deixa-me recapitular para ver se percebi! Tu vais participar numa competição de escrita, mas deixas tudo para o último dia? – disse ela preocupada.

– Exatamente. – respondeu ele com tranquilidade.

– Tu tens noção de que fazer as coisas à pressa e em cima do tempo pode correr muito mal? A isso chama-se procrastinação! O mais certo é qualquer dia falhares o prazo! – chamou-lhe a atenção.

– Relaxa. Tu stressas demais. Eu sou assim. Já sabes desta superstição. Tenho de mandar as coisas no último dia. Se possível, até no último minuto.

– Não tens medo de qualquer dia não entregares na data-limite?

– Se calhar até tenho, mas a minha imaginação só funciona assim, sob pressão. – Soltou um sorriso convencido – Até hoje nunca tive problemas.

– Estamos a falar de criar, escrever, fazer a revisão e enviar. Se juntarmos a isso tudo o teu trabalho, vida pessoal, passatempos, compromissos e para finalizar essa tua preguiça mundialmente famosa, muito me admira conseguires entregar as coisas a tempo e horas.

– Mas eu tenho essa superstição. Não posso fazer nada. Portanto, sou fiel a mim mesmo. Não vou mudar. Todos temos as nossas manias e eu não sou exceção. – teimou.

– Pois a minha superstição é fazer as coisas dentro do prazo e com atenção.

– Confia em mim. Vou enviar o conto dentro da data-limite.

O nosso suposto candidato a escritor em part-time respondeu assim à sua amiga. Estava plenamente confiante na sua habilidade de construir uma narrativa no último momento.

Por mera curiosidade abriu o Facebook e foi consultar as publicações guardadas. O prazo do desafio era até dia quatorze. “Ainda tenho tempo”, pensou confiante. Mesmo assim, olhou para o calendário do computador para confirmar a data atual. “Provavelmente devia estar para aí no dia cinco”. Julgou.

Olhou para o canto inferior direito do ecrã. Para sua surpresa já estava no dia quatorze! Engoliu em seco. Pegou no telemóvel para confirmar a data e de facto já estava mesmo no dia quatorze!

Nunca foi muito bom a saber a quantas anda, ainda por cima, nesta altura de calor e festas, perdeu completamente a noção dos dias.

– Foda-se! – exclamou! Já estava a meio da tarde. Se calhar não devia deixar assim tanto para a última. Afinal não tinha assim tanto tempo para trabalhar. Agora só havia duas soluções: desistir ou fazer jus à sua superstição de fazer as coisas mesmo em cima da hora.

Saiu e procurou um local entre a natureza. Sentou-se. Abriu o processador de texto do telemóvel e começou a escrevinhar ideias. Alguma coisa havia de fazer sentido no meio de tantas frases soltas.

Depois de uma horita debaixo duma árvore, à sombra, inspirado pela brisa fresca, lá conseguiu elaborar uma história. Contudo, ainda tinha até à meia-noite para enviar. Por isso guardou o ficheiro para fazer a revisão mais tarde. Tinha tempo suficiente.

Depois de jantar foi ver a Lua. Estava cheia, enorme e especialmente bonita naquela noite quente. Ideal para os românticos. Quando viu as horas, onze da noite, lembrou-se do desafio de escrita. – Bolas! – resmungou.

Lá correu para o computador. Fez umas quantas alterações e ficou satisfeito. Escreveu o e-mail, anexou o ficheiro e sentiu-se orgulhoso. Nesse momento reparou na data da mensagem enviada: “dia 15 às 00.01”!

Soltou o palavrão mais usado pelos portugueses. Tinha sido vítima do próprio tema do desafio: “Escrever um texto sobre uma superstição que se concretiza”.

Desta vez a superstição dele falhou por um minuto. Talvez para a próxima dê ouvidos à sua amiga.


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita 


quarta-feira, junho 15, 2022

A brutalidade (O Narrador XV)


Já acordaste? Vê lá se te despachas porque estão-te a chamar.

Sim, sou eu, o teu Narrador! Estou de volta para traduzir em palavas os teus sentimentos mais agrestes.

Queres saber porque te vim acordar? É preciso escrever sobre “a maior lição que a vida te deu”. Não olhes assim para mim. O tema pode ser difícil, ou melhor, demasiado abrangente. Mas tu és capaz! Afinal de contas, já aprendeste tantas.

O sono das ilusões pode ser profundo. Existem até pessoas incapazes de despertar para a realidade. Sabes que doi. É uma coisa cruel! Bruta! Violenta! Completamente diferente daquilo prometido na infância pelos adultos. Grandes mentirosos! Sim, eu sei, não devemos usar tantos adjectivos, no entanto, o Narrador sou eu e escrevo como me der na real gana. As coisas são como são e as palavras existem para serem ditas. Mesmo que a verdade seja pesada demais!

Vamos lá! Não queres que comece aqui a bater tachos e panelas para te dar ânimo! Upa! É preciso escrever, mesmo com a alma a doer! (Olha rimou. Lembra-me para depois escrever um poema.) Adiante.

Qual é a lição que vais escolher: que a juventude não dura sempre? Que não somos imortais? Que os sonhos não são fáceis de alcançar? Que o amor dói? (isso acontece a todos) Outra coisa…

Sobre a amizade! Acertei?

Não me critiques por excesso de ques no texto. Eu sou só uma espécie de alter ego criado pela tua mente para dar aos teus pensamentos a capacidade de serem expressos por palavras. Talvez tenha alguma autonomia na minha própria vontade, mas sou só o Narrador da tua vida. Nada mais. Contudo, assumi esta missão de forma genuína. Não é suposto que escreva de maneira chique, mas sim, que deite cá para fora aquilo que te atormenta.

Bem, já acordaste qualquer coisa, ou pelo menos parece. Já consegues abrir os olhos. Hora de trabalhar, ou melhor, escrever. Vamos voltar ao tema central deste texto. Como a amizade pode ser falsa!

Tanta moral que anda por aí a pregar o valor da amizade. “Todos juntos vencemos qualquer mal” e coisas assim do género. Tretas inventadas para dar corpo aos argumentos de desenhos animados e histórias da carochinha.

Portanto, resumindo, lá estavas tu, com o futuro todo pela frente. Sem medo. Com a força toda dos heróis. Parecia um palco e tu lá no centro, para ser a atração principal numa peça majestosa. O cenário estava pronto. Era lindo. Os amigos estavam lá na plateia para bater palmas pela tua glória. Não havia nada que pudesse falhar, mas falhou! 

Sem saberes como, desmoronou tudo em cima de ti. Foi num instante. Sem avisar. Quando deste conta estavas debaixo do peso do entulho. Já não havia palco, só ruínas!

Ok, foi só um contratempo. Estavas de rastos, sem forças, ainda assim, não te faltava a esperança. Era altura de apelar aos valores da entreajuda, os mesmos que julgavas indiscutíveis. Chamaste pelos amigos que certamente viriam em tua ajuda. Afinal, nada podia parar a força da amizade!

Esperaste. Estavam a demorar. Esperaste mais um pouco e nunca mais chegavam. Continuaste a esperar. De vez em quando surgia uma voz a dizer “já vou”. Sem nunca vir. E tu esperaste…

Ao longe podias vê-los e escutá-los, ocupados com a sua própria vida cheia de alegrias, onde não havia cenários desmoronados, muito menos o teu nome presente nas conversas. Desviavam o olhar da tua direção com desdém. Como quem sente nojo. Talvez porque a consciência lhes doesse, ou porque a verdade sobre a fragilidade humana era violenta e cruel. O azar calhou-te a ti e o que eles tinham a ver com isso? Nada! 

Por causa desta lição, concluíste: A amizade é uma mentira!

Agora sobravas tu. Aos poucos, na tua solidão, foste afastando o entulho. Lambeste as feridas e continuaste. Depois, com a bagagem cheia de cicatrizes, já eras outra pessoa. Não tinhas amigos e não te faziam falta. Os outros, quem nunca veio para te ajudar, ficaram lá no passado. Foram material didático para uma lição bem dura.

Foste encontrando outros. Não exactamente amigos, mas companheiros de viagem temporários. Cada um com o seu destino, contudo, respeitavam-te, bem como tu a eles. Seguiram juntos enquanto os trilhos se juntavam, depois, separavam-se com um sorriso e um agradecimento. Ocasionalmente, um “até já”. Sem obrigações nem espectativas. 

Olhas agora para ti, um ser eremita assumido, com um grande orgulho nisso e outra tanta dose de amargura. Ergueste-te sem ajuda de supostos amigos e fizeste da solidão a tua maior força e companheira. Tornaste-te quase uma criatura misantropa, não por vontade própria, mas por imposição das ilusões da sociedade.

Talvez estejas a ter uma postura injusta, nem todos são assim. Apesar de tudo ainda tens alguns amigos e de certa forma mantêm-se fiéis, mesmo a conhecer essa tua mágoa. Lá encontram um pouco de empatia para te compreender. No entanto, já é tarde demais para reparar o dano, porque "o mal feito pelo homem não pode mais ser desfeito". Dás na mesma medida que recebes. Sem nunca esperar grande coisa em troca.

Essa é uma das lições mais duras que a vida te deu: a amizade é relativa, oportunista e falível. Só podes confiar em ti. Tão simples e tão triste quanto isso.


Texto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita