sábado, maio 29, 2021

Autópsia da paixão

Se eu pudesse abrir-te o peito, rasgando o esterno com a violência de quem ama, podia tocar-te no coração para ter na minha mão aquilo que tu sentes. Ou então, alcançava-te o cérebro em busca daqueles jardins com cheiro a primavera que trazes nas tuas palavras. Procurava entre as células cinzentas todos os mistérios com que me cativas, para viver nesse país desconhecido que é o teu nome. 

Seria como um cirurgião a retalhar dentro das entranhas alheias, só para poder tocar no teu âmago. Contudo, bisturis e coisas que cortam não abrem caminho até ao sentir. Os órgãos humanos servem apenas o propósito de dar mecânica ao corpo. Alguém, um dia, sabe-se lá porquê, lembrou-se de dizer que é de lá que vêm os sentimentos. 

Agora que reparo com atenção neste pensamento acho-lhe uma certa piada. Destruir a carne viva para poder encontrar o indizível. Se tal acontecesse seria apenas uma cena macabra para dar audiência aos noticiários. Algo digno de loucura. O oposto do que devia ser. Uma autópsia da paixão! 

Porém, a tua nudez não chega para me levar a esses sítios onde quero habitar. Os beijos só saboreiam uma amostra do paraíso. As mãos viajam apenas pela fronteira da pele. O sexo é somente uma espécie de transporte que faz de nós turistas um no outro. A anatomia desenhou-se para encarcerar, ou iludir, tudo o que a alma tem de inalcançável. 

Contudo, os teus olhos mostram a fronteira entre mim e ti. Está tão próxima que parece fácil de atravessar, ainda assim tão impossível que até dói. Não há fusão, nem nenhuma lei da física, ou mesmo do éter, que nos torne unos. 

Sobram aqueles momentos que parecem durar para sempre. Mas isso é só poesia. Palavras que enchem os cadernos de fantasia e alimentam quem sonha. São como substâncias narcóticas que pedem cada vez mais o seu consumo. É muito pouco para quem deseja em demasia. 

A verdade é que a memória não dura assim tanto e o mundo gosta de afastar todas as juras de infinito.  


quinta-feira, maio 20, 2021

Ode aos que odeiam

Podia dizer-te que o ódio vem dos outros. Mas isso era mentira. O ódio é uma coisa que nasce no âmago do teu corpo. Uma hormona qualquer produzida pelo próprio diabo que vai subindo até ao cérebro, consumindo os recursos que deviam ser gastos para evoluir. 

O ódio toma conta do corpo com a força do próprio inferno. Corre pelas veias, violento, sem responder a argumentos de dissuasão. Assustada, a tua consciência foge para um esconderijo esquecido numa zona longínqua da mente. 

A sabedoria cala-se, já que os seus conselhos são inúteis. A lógica desaparece. Tudo o que resta são instintos grosseiros. Resquícios do animal que o ser humano já foi antes de (supostamente) evoluir. Um bicho sem conhecimento dos sentimentos nobres que elevam a alma. 

O ódio faz surgir uma nova versão tua. Alguém que desconheces. Não se trata de uma transformação de personalidade. Pelo contrário! É sim, a autodestruição daquilo que conhecemos como sendo a nossa pessoa. 

A Paz, se algum dia a sentiste, desapareceu na memória como um sonho distante. E se, por algum acaso, essa dita Paz vier à tona do pensamento num dia de nostalgia, vai servir apenas de combustível para inflamar ainda mais a tua raiva. 

Vai chegar um tempo em que tentas recordar como é a alegria. É difícil. Vai ser apenas uma palavra num dicionário inútil da tua língua materna. Ou de outra língua qualquer que deseje transcrever esse sentimento bizarro no sentir de gente revoltada. 

Depois, saberás que te perdeste algures no caminho. Viraste numa esquina errada. Não encontraste a companhia certa. Aconteceu não sei o quê. Vais querer saber de ti, mas não vais encontrar respostas sobre o teu paradeiro. 

O ódio moldou-te a consciência à sua imagem. Vais sentir nojo. Muito nojo. Dos outros. Daquela coisa que fez nascer em ti essa semente raivosa. E de ti! Principalmente de ti! Porque te deixaste levar pela ausência de Amor. Porque és menos do que um dia desejaste. Tudo por culpa desse ódio maldito que não te deixa crescer. 

Mas isso é hoje. “Amanhã é outro dia”, como diz o povo. Não percas a esperança. Purifica-te. Limpa essa sujidade do pensamento. Ergue a cabeça com orgulho. Sentes ódio; contudo não és ódio. Algo melhor está por vir. Outro tu está por nascer.


sábado, maio 15, 2021

Sem desistir

Sinto-me tão  triste
Que dói pensar em ser
Pesa o fardo do viver
Mas a alma não desiste
Continua mesmo a doer
Vence mesmo a perder
A alma magoada resiste
Quando tudo é sofrer
O desejo é esquecer
A alma em fúria insiste
Teimosa no seu querer
Aconteça o que acontecer
A alma afirma que existe
Sabe o caminho a percorrer
Confiante no seu saber
A alma cresce mesmo triste




quarta-feira, maio 05, 2021

Tal como os tolos

Há um certo cansaço na alma. Não sei de onde vem. Tenho teorias que não servem para nada, para tentar explicar esta fadiga existencial. Diz-me tu, com a tua ignorância sobre a minha pessoa, de onde vem este tormento? 

Parece que todos sabem mais sobre mim do que eu mesmo. Por outro lado, eu também pareço saber mais dos outros do que de mim mesmo. Isto eu posso explicar. Acredito que é algo que está embutido nesta coisa de ser português: escárnio, maldizer e opinar sobre tudo e mais alguma coisa. Falamos dos acontecimentos alheios porque a nossa própria vida é uma narrativa aborrecida. 

Ouvir os sábios dá-me tédio. Ouvir os ignorantes dá-me nojo. Ouvir seja quem for, sobre o que quer que seja, não me satisfaz. Quero saber mais, sobre todas as coisas, mas não encontro professores à altura. Onde estão vocês com tanto para ensinar? 

A escola é uma prisão. Os livros com a matéria explicada são enfadonhos. A escrita no quadro não elucida a vontade de saber. Entretanto esqueço-me deste cansaço que me acompanha. Ou será preguiça? 

Procrastinação! 

Viste? Escrevi uma palavra 'cara'. Faz-me sentir um erudito. Um daqueles doutores quaisquer que aparecem na televisão a comentar os assuntos com que a sociedade se entretém. Falam num tom de voz sereno, para causar boa impressão. Dão aquela ilusão de autoridade com que argumentam a sua posição, sobre o que quer que seja, ao serem questionados. Já viste essa gente a falar assim na televisão? 

Por vezes vejo. Não compreendo ao certo do que falam, embora gostasse de ser dali. Daquela terra onde eles vivem. Um sítio falado. Onde também vivem os outros. Nesse lugar onde eu pareço ser apenas uma miragem. 

No entanto, os outros são tão chatos! 

É estranho, sabes? Não os suporto, contudo tenho um desejo misterioso de ser como eles. Básico! 

Mas, o que importo eu em comparação com tudo o resto? Tenho esta mania insuportável de desejar a Utopia! Para mal dos meus pecados, essa suposta perfeição, só existe nas palavras que transcrevem o pensamento daqueles que ousam fantasiar com o impossível. 

Mas afinal, qual é o mal de desejar o impossível? 

Não dá para morar nas palavras, nas imagens, ou em qualquer arte que dê vida ao imaginário. Mesmo assim eu estou lá! Sentado num trono feito sem matéria. Rodeado dos maiores prazeres que não existem. A descansar, porque fiquei exausto a fazer qualquer coisa de que não me lembro. Tal como os tolos, sou feliz assim. Será que sou? 

Diz-me algo que me alivie a inquietude. Deixa-me uma mensagem com indicações para um porto seguro onde não existam naufrágios. A alegoria ficou bonita mas eu nem sequer navego, só imagino. 

De qualquer forma não sei o caminho. Nem sei ao certo aonde estou. Só assim me tenho guiado. Sem destino concreto. Talvez agora esteja parado para aliviar este cansaço. Numa pausa breve. Quanto ao resto não sei.