sábado, outubro 29, 2016

Sem grandes motivos...


Existe ódio escondido dentro de mim. À espera. Sei que ele não se vê nem se acredita, mesmo assim ele está lá oculto. Vagueia dissimulado na ternura do meu olhar, na alegria do meu ser, no entusiasmo da minha voz... Está cravado, sem piedade, num canto qualquer da minha alma inexplorada.
Adormecido...
Quem sabe se um dia vai acordar? Talvez atiçado pelo medo, ou por uma qualquer crueldade da existência. Ou, quem sabe ainda, sem motivo algum.
Por vezes interrogo-me se essa fúria indomável não tem personalidade própria? Não precisa explicações para ser, nem de ciência para acontecer. Simplesmente é!
Engrandece-se sem justificação a meio de um poema que se propunha feliz. Surge imprevisível como a lâmina de uma navalha, perfeitamente afiada, a rasgar a carne. Nasce do nada a romper a noite num ataque violento à nossa certeza.
Quem odeia não precisa de grandes motivos. Apenas de um instinto selvagem a recusar toda a justiça, como se as regras impostas fossem veneno para todos que desejam mais. Talvez até sejam, porque debaixo da capa da vida que nos cobre está uma história proibida de desejos malditos...

quinta-feira, outubro 27, 2016

Grandiosa insignificância


Existe algo de tão maravilhoso, quanto de misterioso, no pôr-do-sol de um dia quente. A quietude toma conta do mundo. A luz que se vai desvanecendo devagar. Os tons avermelhados que se apoderam do céu. A total e absoluta tranquilidade que cobre, como um manto, o desenho confuso da vila.
Enquanto a noite cai, os pensamentos mundanos desaparecem, a mente navega apenas no transcendente desconhecido. O silêncio de banalidades é tão profundo e grandioso que eu, meditativo, me deixo levar pela incompreensão do universo.
As luzes da povoação começam a acender. Algures um cão ladra. Aqui e ali, um ou outro carro passa. São as pessoas, apressadas, que seguem para as suas casas, para os seus confortos, para seus afazeres, para a hora do jantar. Eu prefiro ficar aqui, ao mesmo tempo que o sol se afunda no horizonte, deixando apenas réstias da sua incandescencia no céu que vai escurecendo.
Não tarda a aparecer a primeira estrela, como um cumprimento cósmico a esta minha contemplação espiritual. Não sei se para Deus isto conta como oração, dada a paz que sinto em mim.
É um momento perfeito, enquanto, na minha insignificância, desenho o infinito na pequenez de um poema...

sábado, outubro 15, 2016

Colorindo


As cores são tão estranhas!
Estou acostumado a viver rodeado de escuros e cinzentos, de tal forma que todas as outras tonalidades parecem-me um universo por explorar.
Olho com um fascínio quase infantil para as variações do arco-íris quando se elevam por entre o céu enublado. Não me admiro que os povos antigos achassem que aquela festa colorida fosse uma ponte para o mundo dos deuses.
Aqui é tão sombrio!
Quem me dera adormecer no cor-de-laranja. Viajar em cor-de-rosa por estradas azul-bebé. Perder-me em florestas esmeralda salpicadas de lima, escarlate e turquesa. Beber de fontes timbradas com todas as cores que se possa imaginar e mais ainda!
Como luz a deslumbrar, beijar em todos os vermelhos; visitar peles de todas as tintas; cruzar olhares de todos os oceanos; conhecer almas de todas as galáxias!
Como um louco na sua arte, amar com todos pincéis e dançar em todas as telas com linhas iluminadas por toda e qualquer cor! Invejo quem se transcende numa pintura multicolorida criando um festim de imaginação nas faces tristes de quem as contempla!
Ainda assim não abandono a melancolia. Mesmo que a tente colorir de quando em quando, vive em mim esta profunda sina de quem não consegue pintar de outra forma a poesia de viver. Sobram-me as cores dos outros, que, no seu entusiasmo as partilham altruístas. Com um sorriso verdadeiro, a esses agradeço por mostrarem a alegria a quem sonha deste lado do impossível...

quarta-feira, outubro 12, 2016

Tanto em coisa nenhuma


Amo-te como quem ama coisa nenhuma e tudo em simultâneo.
Quero-te por inteiro e para sempre como nos contos de fadas. Fascina-me esse imenso todo que se esconde no teu ser. Tesouros, vitórias, sonhos e medos que me cantas na tua entrega. Mesmo assim aborreces-me e procuro também os mistérios que pairam nas almas dos outros porque não me contento apenas com uma eternidade.
Desejo cada ponto sensível do teu corpo como quem anseia a loucura. Deleito-me ao provar o teu gemer, navegar no teu suor, ser todo o teu gozo. No entanto a tua carne é muito pouco para o meu infinito e o meu âmago pede mais satisfação. Apraz-me degustar o sabor de todas as silhuetas perdidas e abertas, porque só um prazer não me basta.
Amo-te com a violência de quem tem a revelação do segredo da felicidade! Completas-me com toda a paz que uma vida inquieta sempre espera encontrar. És tudo! Porém, somente isso! Um mero existir imponente, sem nada de mais para mim, que ambiciono o inalcançável. És breve na tua imensidão. Ínfima estrela na tua grandiosidade. Unicamente um parágrafo de intensidade suprema no desassossego da minha história...

sábado, outubro 08, 2016

Beleza eterna


Por momentos enamorei-me por uma estátua. Uma mulher desnuda esculpida na pedra fria.
Era tão mágica na sua imobilidade. Desprovida das falhas da carne e da pele, assim permanecia, coberta de encanto, sem o pecado da imperfeição. Era eterna na sua juventude. Sobressaiam as suas linhas esbeltas traçadas com mestria. Toda a sua silhueta era beleza, como só quem se alimenta de arte compreende.
Por breves instantes deixei-me fantasiar pela sua história que nunca aconteceu. Dei-lhe um nome, um sabor, uma idade, um viver humano onde pôde sentir como sente quem ama. Imaginei-lhe um sorriso a rasgar o desenho dos seus lábios quietos, bem como um olhar meigo a colorir o branco do mármore. 
Presenteei-a com o desejo e com um toque quente no seu rosto indiferente. Ofereci-lhe tudo isso para vestir o seu silêncio e o seu movimento suspenso. Quem sabe se Deus lhe deu algum tipo de alma para que de mim se pudesse lembrar?
Invejei o escultor que a tinha concebido. Declarei-o maldito por ser capaz de criar tanta perfeição. Mas ele pouco importava. Imaginei todos os outros que por ela se encantaram e fui tomado de ciúmes. Senti desgosto por aquele corpo inerte não ser como o meu.
Dei então conta que o meu devaneio já ia longo. Despedi-me daquela forma estagnada, já tinha servido o seu propósito de me fazer sonhar, e acordei. Estava na altura de seguir o meu caminho.

domingo, outubro 02, 2016

Da terra de ninguém


Saí à rua apenas com a intenção de reparar nas pessoas que palmilham a cidade. Os seus rostos; os seus corpos; as suas vestes; as histórias que estão contadas nas suas expressões; as emoções que transparecem ou que escondem. Podemos aprender muito sobre alguém estando atentos aos pormenores da sua aparência. Cada detalhe vai narrando uma vida.
Vejo os que passam. Há-los para todos os gostos: os atarefados na sua correria; os que vão devagar para serem vistos; aqueles que na sua submissão param a cumprimentar os importantes; os distraídos que olham para tudo e para nada ao mesmo tempo que vagueiam nos seus pensamentos; os que caminham lentamente a tentar prolongar a existência…
Eu fico por aqui no meio entregue a minha realidade perdida. Observo cada ser humano com a sua particularidade: os bonitos; os feios; os indiferentes; os vulgares; e os outros demais…
Peço por favor ao destino! Quase que rezo a um deus qualquer para que me cruze com alguém parido do ventre da diferença. Que não se encaixe em estatísticas nem use o grilhão de um rótulo. Será que este é o mundo certo para este tipo de gente?
Corta-me a solidão com violência as entranhas do meu ser. A sorte cospe-me em cima cada vez que julgo encaixar-me num canto da sociedade. Escasso é o tempo que consigo viver a mentira de dizer que sou dali ou daqui. Sou de lado nenhum, da terra de ninguém, aquela que não consigo encontrar nem há quem me indique direcções!