sábado, agosto 31, 2019

Clint Eastwood


Escrevo-te porque sei que de vez em quando gostas de reler os teus textos passados e recordar o motivo de os teres escrito. As próprias situações que deram origem aos trechos, cada uma tem a sua história e a sua justificação. Por isso, sei que um dia mais tarde vais voltar aqui e vais pensar em quem era eu. Versão passada de ti mesmo. Porque acredito que nessa altura tu já tenhas mudado bastante e sejas outra pessoa. Não direi que sejas muito diferente, mas mudaste o suficiente para afirmar que não és igual a mim.
Há uma certa estranheza ao conversar comigo mesmo. Não sei a data em que vais ler isto e sinceramente não me importa. Basta-me o hoje para saber quem sou. Sobre ti, não sei se ainda manténs aquele visual de cowboy num “western spaghetti”. Não és exactamente o Clint Eastwood embora o teu look desleixado seja interessante. Estou curioso. Um gajo nunca sabe para onde pendem as modas.
Depois há a tua espiritualidade. Essa sim, espero sinceramente que não a percas, porque é das características mais importantes que tens e, aquilo o que te faz destacar verdadeiramente sobre todos os outros. Sei que por vezes a rotina, o trabalho, os encargos e as banalidades da vida te fazem desviar desse caminho. Por esse motivo, de vez em quando, precisas de te lembrar quem és. Alguém com uma visão transcendente muito mais avançada do que um ser humano comum. Neste momento, tiveste uma revelação sobre a energia que faz mexer o universo. No entanto, sobre isso, não comentes com ninguém. A menos que tenham seguido um caminho similar ao teu e estejam mais ou menos no mesmo estágio de evolução em que estás. Sabes bem que essas coisas são facilmente mal interpretadas e por consequência mal utilizadas. Portanto, reserva para ti aquilo que descobriste na busca pela gnose.
Quanto ao resto, espero que tenhas conseguido aprender a socializar melhor. Para perder um pouco a fama de arrogante, pois muitos não compreendem a tua personalidade reservada. Quer queiramos quer não, somos seres sociais e o vício da solidão não te faz muito bem. Nesta altura estou a tentar e tenho conseguido alguns resultados. Desejo que encontres novos amigos nesse processo. Amigos fazem falta lembras-te disso?
Quanto à política, espero que tenhas mantido os teus ideais de justiça e que tenhas dado luta, colocando o teu saber a favor das causas corretas que tens defendido até agora. Não sei como estará a situação no teu momento futuro. Espero que tenha melhorado. Sem discursos mentirosos, nem operações de cosmética para mascarar podridão dessa gente. (Um gajo tem de acreditar numa mudança para melhor…)
Os poderosos do mundo ainda são estúpidos? Já deram cabo do planeta? Já arranjaram desculpas para criar uma guerra? Toda essa ideia assusta-me profundamente, sabes disso. E a pior parte é que aparentemente, um ser humano comum, não pode fazer nada contra…
No fundo, espero que tudo melhore. “Lembra-te sempre do amanhã que vai ser melhor”. Que o teu caminho continue, cheio de aprendizagens, poesia e fantasia. Sei que vais achar piada ao título que dei, uma espécie de piada pessoal. Seja como for, é bem capaz que outros, ao ler estas palavras, se identifiquem. Até porque, nós não somos únicos :)
Porta-te bem e ouve muito rock!

terça-feira, agosto 27, 2019

A compreensão (O Narrador XII)


Sabes quem és? Tens a certeza que sabes mesmo quem és? Ou fazes confusão com aquilo que gostavas de ser? Pois, agora que falo nisso a dúvida faz-te hesitar na resposta. É difícil ter honestidade quando, no fundo, sabes que o teu ser é feito de pedaços remendados com linhas, colas e fitas. Claro que muitas vezes é fácil uma pessoa se enganar a si mesma para alimentar a ilusão de uma existência mais leve. Mas é falso! Tudo falso!
Volto a perguntar quem és? Uma mentira, ou uma verdade dolorosa? Sabes que não te deixo dar uma resposta errada, nem tão pouco argumentar contra. Quanto mais me negas mais razão me dás. Tenho soberania em ti. Sabes que vim não sei de onde, parido por uma ideia incógnita dentro daquilo que entendes por pensamento. Talvez seja até a própria personificação de loucura, ou dor, embora sempre com verdade.
O melhor mesmo, para que me possas dar uma resposta sincera, é voltar aos sonhos de criança. Ainda te lembras deles? Antes que o mundo tenha dilacerado a inocência. Quando tudo era regido pela fantasia. Era bom brincar, não era? Quem querias ser tu nessa altura, lembras-te? A memória está deturpada pelas vivências adultas e amargas, no entanto essa recordação nunca se perde, por mais enterrada que esteja. Surge num repente quando folheias os velhos cadernos da escola, ou assistes a um desenho animado antigo. Ora reflecte um pouco.
É triste abandonar a criança que foste, mas esta não desaparece, pelo menos por completo. Um pouco da sua essência ainda vai acompanhando as tuas desventuras, como um espectador amargurado pela trama. Podes perguntar-lhe, que vais ter uma resposta sem medo por entre um rosto envergonhado. A desilusão é grande ou andas apenas por caminhos mais penosos?
Às vezes o Universo dá-nos aquilo que queremos, embora noutra linguagem diferente da que nos foi ensinada, que não sabemos interpretar. É estranho, mas a aventura que um dia desejamos está a acontecer, noutras palavras que não as nossas, noutros cenários que não são aqueles que imaginamos. Um pouco de silêncio mostra essa verdade. Um pouco de pausa ajuda na revelação. Um pouco de ausência ajuda a voltar à origem.
Se não te lembras de ti em tenra idade, basta observares uma criança qualquer: Que sabem elas da vida? Ainda assim divertem-se a brincar ao que eles julgam ser o amanhã, ludibriados pelas expectativas dos adultos, os mesmos que não viveram as deles. Tu também foste assim, a construir castelos na areia da praia com a ilusão de que ao cresceres tudo vai ser como no Verão, simples despreocupado.
Claro que o crescer é amargo e dizem-nos as regras estabelecidas que viver é muito mais árduo. Mesmo assim, temos de aceitar o facto que a criança que fomos desapareceu? É aqui que me surge uma dúvida repentina: E se for esse mesmo o objectivo? Erradicar por completo a criança que um dia nos sonhou? Afinal de contas se não nos incentivarem a sonhar, qual seria o sentido de ser adulto?
Estou a fazer perguntas a mais e a desviar-me do ponto inicial: Quem és? Não precisas de responder. A tua condição humana faz isso por ti. A sociedade que te acolhe nos seus ideais vazios diz-me tudo o que preciso saber. Não encares isto como um incentivo de revolta, ou um motivo para verter umas quantas lágrimas. Apenas um constatar da verdade. Do passar dos dias entre a inercia das obrigações e o entretenimento que vão colocando à tua disposição. É assim para todos e pouco há a fazer. O que pode um ser humano sozinho fazer contra sua própria génese? Nada! A própria ideia em si é quase um convite à insanidade e para isso já basta a inquietação constante que habita em ti.
Há uma desmotivação intensa cada vez que acordas sem o conforto do manto da ilusão. A manhã não ofereceu descanso, com esta realidade presente a enregelar o ânimo. A melancolia é um sentimento constante a acompanhar a solidão do existir. No fundo, estar só, é a única verdade confiável.
Os outros têm os seus corpos e as suas fantasias. Vivem como dormem. Agradecem cada migalha de prazer sem nunca questionar se o mundo podia ser diferente. Certamente também têm os seus momentos de lucidez, onde a tristeza é profunda e só a mentira anima o vazio. Tal como tu, não os revelam ao mundo. É proibido não ser feliz e a pena a cumprir é mais dolorosa do que a mágoa de existir. Não olhes para eles. Não são referência e pouco ou nada têm para te ensinar.
Há aqueles que compreendem. Sim, eles existem: Os sábios! Podes reconhece-los no silêncio em que observam os demais. Se lhes conseguires colher uma troca de palavras, não te esqueças de aprender. Nem tão pouco de ensinar, porque todos nós sabemos algo que sirva para preencher o enigma do inefável. Todos os saberes são poucos na pequenez humana. O caminho para a auto compreensão está nestes pequenos passos de partilha.
Se por um mau acaso nunca encontrares nenhum desses sábios, basta olhares no espelho. A figura que te observa vai ter uma resposta sincera à questão que mais assusta: Afinal quem és tu?

terça-feira, agosto 20, 2019

Sentimentos controversos


De que vale falar no anoitecer se, há muito tempo, anoiteceu em mim.
Não foi apenas uma noite, mas várias. Algumas tenebrosas; outras vazias; solitárias; apaixonadas; raivosas; violentas ou serenas. A escuridão tem vários sentidos conforme a sina de quem nela se embrenha.
Cada noite que cai tem a sua história e declamo cada uma como uma fábula insatisfeita, porque nenhuma me completou, e nenhuma foi verdadeiramente imortal, como a poesia tem de ser.
A brutalidade de quem ama!
No corpo, na voz, no prazer e no silêncio de outro alguém em comunhão com o meu desassossego. A paixão é infinita na sua brevidade, por isso, nada mais é do que a ilusão no sentir naquele momento.
O sentido de quem odeia!
Planos de vingança dão um propósito na vida de quem é injustiçado. Se a dor destrói, a dor também recria. No seu ventre insensível, gera os monstros mais desumanos, educados com os mesmos instintos que os (me) esmagaram.
A mansidão de quem acalma!
Por vezes o céu nocturno está estrelado, ou a lua está iluminada para que se acredite em magia. Quando assim é, vem como uma mão maternal, aconchegante e compreensiva, tal como um descanso sem julgamentos.
O recolhimento de quem medita o seu dia!
Porque há que lembrar a jornada e de quando em quando, questionar cá dentro: “Quem somos”? A resposta surge quando o mundo está calado. Existe uma pacificação que tem de ser feita com o impulso interior, para que o fardo do amanhã tenha menos peso.
Assim são os meus anoiteceres, cheios de cenários longínquos, jornadas grandiosas e sentimentos controversos. Assim sou eu, como as minhas noites, pequenos contos na insónia das palavras. Tanta coisa e nada em simultâneo. Sementes que me fazem e refazem nas Primaveras do existir.
Embora, quiçá, devido ao hábito, conheça apenas estes horizontes noctívagos, como um vampiro melancólico. Fadado a viver na madrugada nua. Não devo culpar ninguém, até porque o destino (se existir) é como tem de ser. Ou melhor, o que aconteceu agora é passado e há que seguir em frente.
Como tudo muda, talvez deva agora dar atenção ao nascer do sol...

terça-feira, agosto 13, 2019

Deus, Paixão e Infinito


Gosto de acreditar que a criação do Universo se deva a uma paixão. Aquele por quem tomamos como a derradeira entidade divina, gerou um pensamento enamorado e, desse momento de felicidade absoluta, originou-se tudo aquilo que conhecemos por real.
E nós, feitos à Sua imagem e semelhança, nos sentimentos e desejos, herdamos igual capacidade de paixão e, com ela, a mesma capacidade de criação. Quando a chama da atracção se exalta, nasce um Universo próprio no nosso íntimo. Com as nossas regras, cores e magnificência.
Somos como Senhores dessa versão do existir, naquilo que chamamos sonhar. Ainda que, numa tentativa ridícula de comparação, aconteça numa dimensão mais pequena quando equiparado com tudo o resto. Não importa, não é por isso que deixa de ser igualmente magnifico.
Todos já amamos e, desse modo, também já recebemos em troca a amargura do sofrimento. Infelizmente há sempre uma dualidade na alma quando o sentir é profundo e por cada felicidade alcançada há sempre o outro extremo a espreitar. Seja como for, valeu a pena toda a génese só para que conheçamos o sabor da paixão.
Gosto desta ideia romântica de que Deus criou o infinito porque se apaixonou. Talvez como um adolescente que, coberto de ingenuidade, dá o seu primeiro beijo. Quando lábios jovens se encontram tudo se transforma em beleza e nada mais existe a não ser a fantasia.
Aquela ilusão poética que habita em mim acredita nessa quimera. Afinal de contas, algum propósito deve existir na criação e essa ideia conforta-me para lá de todos os dogmas: Ele, abismado pela grandiosidade do sentimento, concebeu-nos de forma a que, também nós, pudéssemos partilhar de igual forma o êxtase de amar!