quinta-feira, dezembro 31, 2015

As paragens


Existe um certo prazer poético em observar os barcos que pintam a sua passagem na linha do horizonte, a cruzar o azul do mar na sua aparente lentidão ao olhar. Navios enormes, carregados de contentores, por sua vez cheios de mercadoria, coisas que se vendem e se compram nas nossas prateleiras.
Fazem com que me interrogue: Quem vai lá? Quem são essas pessoas que cruzam os oceanos nessas embarcações cheias de tralha? De onde vêm? Que lugares os acolheram? Para onde vão? Que paragens os esperam? Questões que acompanham essa viagem vagarosa (ainda que cheia de pressa).
Será que estes marinheiros sabem valorizar a sua jornada entre os vários cais do mundo? Ou concentram-se somente no peso do labor que os acompanha no dia-a-dia? Trabalho duro não foi feito para poetas. Suponho que as histórias destes personagens desconhecidos fiquem apenas na sua memória. Talvez um dia sejam partilhadas numa conversa qualquer…
Há uma certa inveja em mim pelos barcos que passam. Quem dera poder viajar como eles, entre o aqui e o ali, sem nunca ter pouso certo. Navegar as águas como um pássaro que voa os céus migrando de conto em conto, sendo personagem em várias peças, interpretando em múltiplos palcos a inquietude que existe em mim.

quinta-feira, dezembro 24, 2015

A lagartixa


O pai natal esgueirou-se pela chaminé abaixo. Ao contrário do que dizem não é um homem gordo. Pelo oposto. A sua anatomia mais se assemelha a uma qualquer espécie de lagartixa esguia, cujo tronco alongado e estreito leva agarrado a si dois pares de membros igualmente ressequidos. A idade, essa, sem dúvida tão avançada que o próprio tempo já se encarregou de a fazer esquecer, é a única verdade acerca do velho das barbas.
O corpo mirrado, de aspecto tão bizarro faz esquecer que um dia carregou a pele da humanidade. Quem sabe se as rugas, animadas pela eternidade, o foram tomando até ao expoente da magreza. Ou melhor. Fizeram evoluir (ou regredir) a sua figura a um ser rastejante e ignóbil que em comum com a ideia que temos da sua aparência não tem nada.
Não tem necessidade de roupas. A sua epiderme enrijecida é o suficiente para garantir o seu conforto. Deixa as vestes e adornos vermelhos para as pessoas. Essas que cuidem dos enfeites e da ilusão das suas feições bem-dispostas.
A sua verdadeira imagem, repugnante, serve somente para assustar as criancinhas, que iludidas com o pançudo das barbas se deleitam com as prendas oferecidas em seu nome. Ainda assim, a pobre criatura vai descendo a chaminé. Rastejando até abaixo para se certificar que todos estão felizes no natal. Assim é!
Os outros. Os infelizes, não importam. Tal como ele. Resta-lhes o esquecimento. A solidão. Ou talvez a sorte traga uma migalha que surge aqui e ali, pela mão de uma qualquer alma caridosa. Assim escrevem-se as boas-festas.
Mais uma casa com abundância. Ainda bem. O pai-natal fica feliz. Com o seu corpo de lagartixa volta a trepar a chaminé. Outras famílias se reúnem e a noite ainda agora começou…

quinta-feira, novembro 12, 2015

Velle


Acho que na vida há falta de realidade
Por vezes procuro demasiado a alegria
Quando me devia contentar com apatia
Já que provei a amargura da verdade
Ainda assim vou proclamando a fantasia
Sou culpado de sonhar em demasia
Há no devaneio um doce trago a liberdade
Onde me inebrio com o sabor da poesia
Sem inquisição a acusar-me de heresia
No meu espírito ordena a minha autoridade
Em meu ser grita somente a rebeldia
Sem essa castração chamada cobardia
Sigo em frente na angústia da sociedade
Desgostos não derrubam a minha euforia
Fazem crescer em mim ânimo e ousadia
A tristeza não adormece a minha vontade

sexta-feira, outubro 30, 2015

A melancolia


Hoje sinto-me sombrio, tal como o dia que se deixa anoitecer cedo, submisso ao outono que veio tomar o seu lugar no ciclo da existência.
A música que oiço canta a melancolia em acordes sinistros e poesia amargurada. Lá fora as nuvens escurecem a alegria. Com tirania ameaçam com chuva e vento qualquer vislumbre de felicidade.
As minhas vestes são negras, solidarias com o meu desânimo. Uma mágoa sem nome pinta-me o rosto, realçado pelo cansaço no olhar que, suplicante, chama pelo sono. A ausência de um sorriso na minha face torna-se gritante, tal como a tristeza silenciosa que se apossou de mim.
É tudo tão solitário que a minha própria vontade foi quebrada pela inexistência de determinação. Nem raiva sinto em mim para poder abraçar a revolta e insultar, com violência, o mundo com os seus dissabores.
A minha figura nada mais é do que uma sombra sem emoções que se mistura no cenário outonal. Como se dele fizesse parte, como se fosse seu igual no meu desalento.
Sou um ser recolhido pelo pesar do meu fado, sem contentamento que me anime. Somente sei que algures no meu íntimo deve existir uma semente de esperança que, tal como a natureza, aguarda a primavera.

sexta-feira, outubro 23, 2015

A entrega


Dou por mim a esperar-te. Vem pela madrugada, quando a urbe está em silêncio na obrigação do seu dormir. Sabes que estou aqui, neste oásis do pensar, a aguardar a tua chegada.
Viver é duro pelo fado que a mágoa te impingiu. Fazes das lágrimas as tiras do chicote que te vai flagelando. Resta-te o sonho que, por entre a inquietude, teima em persistir. Quero que me mostres esse teu sonhar para que contemple a sua beleza.
O dia foi sufocante. Os tiranos que te amordaçaram, de ti nada sabem. Reduziram-te ao papel de serviçal, pele que vestes com martírio até que chegue o escuro da noite, com o seu conforto, para te serenar.
Traz-te para mim, ensonada. Certifica-te que te desnudas do mundo e das suas obrigações. Sabes que aquilo que desejo em ti é a tua alma, com todos os seus esconderijos e segredos.
Vem como uma ninfa encantada. Sem receio de seduzir, pois quero despir o teu ser calmamente. Aos poucos ir beijando cada recanto do teu pensamento. Descobrir a erogenia de cada ideia.
Acariciar a tua alma como se tivesse corpo. Percorrer cada curva da tua essência com um toque de luxuria. Deixar o teu querer agitado, como se do teu sexo humedecido se tratasse. Arder num misto de medo e anseio.
Sabes que viajo nas palavras com a magia que só quem sonha compreende. Gosto que a prosa seja erótica, como quem faz amor com a poesia. Iluminar de prazer o âmago do próprio existir entre o infinito e a consciência.
Mantenho-te por isso acordada, subjugando o sono que te quer entorpecer. Atravessar as cortinas da aparência com que te disfarças. És a tua própria opressora e entre suspiros e delírios vou-te derrotando.
Entrega-te à minha avidez sem receio de heresias ou condenações. Há em mim salvação. O sol há-de nascer, mas entretanto há madrugada e nos nossos devaneios os teus pecados serão perdoados…

terça-feira, outubro 20, 2015

A miséria dos outros (O Narrador VII)


Dizes tu que o teu mundo desmoronou! Achas que já nada faz sentido nessa tua vidinha patética. Pois bem, desta vez digo-te algo extremo. Se achas que os teus problemas são pesados tenta fazer isto:
Parte a espinha se queres saber a verdade sobre a vida. Separa os nervos da medula espinal e paralisa o teu corpo para te tornares em algo peculiar. Desfaz a coluna vertebral, ou se preferires esmaga um membro. Mais acima, mais abaixo, tanto faz, desde que fiques aleijado, entrevado, ou deformado.
Já viste o mundo pelos olhos de um paralítico? Encostado a um canto, a olhar pela janela, ou a circundar as ruas sentado numa cadeira de rodas que deambula com dificuldade. Evitar buracos, degraus e outros altos e baixos pelo caminho áspero e impiedoso. O pavimento não se importa com a miséria dos outros, ainda assim é preciso seguir em frente. Por isso continua-se.
Haja obstáculos! Foi Deus que os colocou no caminho para tornar as pessoas mais fortes! Pelo menos é o que dizem as frases que se vão espalhando pela internet… Quem diz isso, ou nunca teve um fardo pesado para carregar, ou tenta com todas as suas forças acreditar nisso para aliviar o peso, ou então acredita mesmo nessas palavras. Sim é possível acreditar e aceitar a dureza. Mas são raros! Adiante.
E os “pobres coitados” dos “aleijados” (como lhes chamam as velhas) vão em frente. Mesmo indo devagar o longe está à espera. Já alguma vez viste um “aleijado” na rua? Tiveste pena ou ignoraste? Ou já te interrogaste sobre o que ele sente? Sim, porque eles também sentem e observam melhor que ninguém tudo que está à volta. Incluindo tu. Sim tu, que passas diante dele!
As pessoas andam de um lugar para o outro. Na presença de um enjeitado, há os que olham para o outro lado, na sua perfeita beleza e saúde, tentando ignorar o quão cruel pode ser a condição humana. Mais à frente esquecem, adiando o confronto com a própria carne. Sabem bem que um dia, se não for antes, as rugas e a demência vão reclamar o que é seu! Nessa altura, e só nesse momento, terão de se preocupar com a miséria do seu destino.
Há os curiosos. Ávidos por uma boa história dramática. Gente básica que procura entretenimento na desgraça alheia. São como abutres que se abeiram para conhecer os pormenores mais sórdidos da incapacidade do “coitado”. (Já referi que é assim que lhes chamam as velhas, mas não só.) Seja na televisão, no jornal, na vizinhança, ou na rua entre um desconhecido qualquer. Haja paciência para aturar essa gentinha ignorante, com o cérebro mirrado pelo preconceito, que deseja somente da vida uma boa história mórbida para contar aos seus iguais em conversas vazias.
Depois há os genuinamente simpáticos. “De bem com a vida” como dizem os brasileiros. Sorriem naturalmente, de forma aberta e contagiante. Pode-se ganhar o dia só por contemplar um sorriso desses! E isso vale tanto para pessoas dias “normais” como para os limitados fisicamente. Essa gente é mais preciosa do que toda a riqueza do mundo junta. Se conheceres alguém assim, rejubila pela sorte que tens. E faças o que fizeres nunca o afastes de ti.
Ainda há os que não se catalogam, indiferentes a tudo seguem as suas vidas mergulhados nos seus pensamentos. Gosto desses. Não fazem mal nem bem. Simplesmente existem. Não são especiais nem insignificantes. Há qualquer coisa de pacifico nisso, ser indiferente ao mundo sem desejar marcar o seu lugar na história, ainda assim fazer parte dela anonimamente no seu desinteresse.
São estes seres que passam e constituem nossa dita sociedade. Qualquer infortunado por uma fatalidade qualquer te dirá o mesmo. Acredita que são bons a observar, os “aleijados” deste mundo que o conhecem bem melhor que os sábios.
Sim, tens razão. Hoje estou a usar palavras demasiado duras (Será que sim?). Acredito que te pareçam assim aos teus ouvidos delicados. A propósito, hoje não estou a narrar a tua vida. Sabes porquê? Porque não és o centro do universo. A vida não precisa de ti para continuar. Os teus problemas não passam de uma tamanha insignificância se comparados com o resto do mundo. Até o próprio planeta é indiferente se comparado à vastidão do universo.
Agora compara-te a ti e aos teus problemazinhos com isto tudo!
Pois… É isso mesmo. Não é meu objectivo ser rude contigo. Apenas abrir-te os olhos. Levanta-te e enfrenta a vida. Só isso.

quarta-feira, outubro 14, 2015

Vincere aut somnus


O luar está calado
A noite vazia
Suspira apatia
Num silêncio gritado
Clama a fantasia
Pela caneta poesia
Que me faz ficar acordado
Na insónia da agonia
Da madrugada até ao dia
A lamentar-me do meu fado
Contra o mundo a rebeldia
Versos nascem sem alegria
Em rimas iradas fico cansado
Cada palavra cresce fria
Fadiga de toda a ousadia
Pelo sono vou sendo tomado
Raiva morre em letargia
Nesta guerra já não lutaria 
Adormeço finamente derrotado
Esqueço a fúria que se esvazia
A inquietação também dormia
Pois o sol nasce animado
Sonho a luz e a calmaria
Deixo o acordar calar a ira
Desperto enfim descansado

sexta-feira, outubro 09, 2015

A rebeldia (O Narrador VI)


Cresces e encontras um ideal. Fantástico! Está na altura de lutar para o defender. Vestires a pele da rebeldia e entrares numa quezília contra o mundo que é preciso mudar. Vives em guerra contra aqueles que te opõem. É bom, não é? Poderes afirmar com todo o orgulho que tens uma causa a defender. Dás a cara por ela, com sorte até a vida (de forma moderada vá)! São muitos contra ti. Não faz mal. Venham todos! Quantos mais melhor. Dessa forma tornas-te o rosto do heroísmo. Uma espécie de mártir dum motivo qualquer.
Se a maioria dos teus semelhantes está contra ti, há de haver um punhado deles que te olha com admiração e fidelidade incontestável. Convém que não sejam muitos, senão o teu brilho é ofuscado por eles, aqueles que te deviam respeitar como algo superior. É assim que deve ser quando tomas as rédeas de um objectivo. Estás no trono da rebelião!
O problema é que o tempo passa. Sabes, existem relógios e calendários para o contar. Horas, dias, meses, anos… E nada muda. O mundo continua mundo. A sociedade que era suposto mudares virou a cara à tua causa e continuou igual, alheia a protestos, discursos inflamados, ou actos enlouquecidos. Os teus confiáveis seguidores aos poucos foram-te trocando por outros caminhos, ora ouvindo outros capitães, ora absorvidos pela sociedade com quem tanto pelejaram… Traidores!
Ficas somente tu. Já ninguém ouve o que tens a dizer, as reclamações que te movem, a mudança que tanto anseias. (Será que ainda a anseias?) Vais tirando umas folgas da tua amada rebeldia para conviver com os outros humanos que na realidade até são iguais a ti. A seguir acabas por querer umas férias para poder usufruir da mundanice. Isto de lutar todos os dias contra tudo e todos afinal é duro.
Depois vem o cansaço… Ter de combater constantemente cansa… Cansa muito… E cedes. Entregas-te ao conforto do mundo que outrora tanto malfadaste. Sentiste (será que sim?) o peso da derrota por aquilo que tanto desprezaste. Secretamente o sentimento foi de alívio. O peso dum ideal ignorado é demasiado grande para as tuas costas cansadas de o suportar.
Não deves ter vergonha. Nem culpar, ou sentir remorsos. Não és caso único, pelo contrário. Abdicar de uma guerra inútil em prol da segurança da banalidade é prática comum. Basta admitir que perseguimos um erro. Ninguém te vai condenar por isso. O mais certo até é que nem se lembrem dessa tua revindicação.
Existem outros para lutar por causas perdidas. Ou causas nenhumas até. Um dia serão como tu, iguais a todos os outros. Deixa, no entanto, as vestes da rebeldia no armário. Nem que seja como recordação de que um dia tiveste força e foste imbatível, pois a vida tem a sua própria forma de nos impingir as suas causas. E mesmo que a memória te seja indiferente, há que ter em atenção de que um dia, talvez, tenhas de ser novamente assim: tu, numa quezília contra o mundo!
Por agora recosta-te no sofá. Há que relaxar em frente à televisão. Está dar um programa qualquer, sobre uma coisa qualquer, parece interessante! Não vale a pena pensares quando estas coisas pensam por ti. A seguir vai dar um filme. É dos bons. Com muita acção, pancadaria, argumento empolgante e sexo! Usufrui até te fartares. Depois dorme. Amanhã vai estar um dia quente, com sorte podes ir até à praia exibir a pele ao sol. Entretenimento para iludir o tédio existe em abundância!
Não te esqueças que também tens o amor! A paixão é um dos passatempos preferidos dos humanos (como tu). Aquilo funciona como um jogo de toca e foge ou de esconde-esconde. Existem trocas de olhares, provocações, mensagens atrevidas, timidez, e outras tantas artimanhas que tornam o acto de namoriscar interessante, até ao dia em que finalmente encontras um par que te complete. Devo dizer que é um momento de felicidade extrema! Claro que isto de amar não é uma ciência exacta e por vezes dá para o torto. Mas isso é outra história…
Também há o sexo. O pecaminoso prazer da carne que leva ao delírio a maior parte das pessoas, uns mais recatados, outros mais ousados, todos com as suas fantasias e perversões. Sem querer ser desmancha-prazeres, acho que tudo isto é uma forma da raça humana garantir que tem continuidade. Afinal a espécie tem de continuar. Não é verdade? Apesar de tudo também são animais como os outros, apesar de racionais. Mas isto tudo tu já sabes não vou insistir neste tema. Pelo menos por hoje…
Calma, talvez esteja a ser um pouco radical. Tens razão. Claro que não é minha intenção perturbar-te. Pelo menos no mau sentido, claro! Já sabes que quando começo a narrar a tua vida acabo por entrar por outros caminhos, ingressando por discursos sobre moralismo, políticas ou filosofias de trazer por casa. Já me conheces. Mesmo assim importa reflectir nestas minhas palavras. Claro que não tenho como objectivo repreender-te, nem tão pouco louvar-te. São apenas descrições daquilo que és e que tanto gosto de relatar.
Sim, acho que já falei demais neste meu discurso. Vou-me até à próxima!

P.S.
Não esqueças que já foste rebelde…

segunda-feira, outubro 05, 2015

Ainda bem que hoje me sinto sol


Hoje o dia nublou-me de cinzento
O acordar quer-me fazer dormir
Urge entorpecer todo meu sentir
Entre o assobio do vento violento

Oprimido pelo cansaço do momento
Obrigo-me a acreditar que sou real
Em mim nada encontro de especial
Até a poesia rumou ao esquecimento

A chuva dá melodia ao desalento
Nela não procuro qualquer conselho
Encara-me muda a figura no espelho
Pois o seu silêncio grita sofrimento

Calado fica o meu triste lamento
Ainda bem que hoje me sinto sol
Encontro em mim mesmo um farol
Por entre este sem rumo sonolento

Aos poucos cresce em mim alento
Porque a tormenta está lá fora
Longe da minha alma sonhadora
E o temporal vai serenar entretanto…

quinta-feira, outubro 01, 2015

Os raros


Gosto de ver gente estranha. Ainda que sejam feios, grotescos, porcos, malcriados ou imundos de sujidade. Para mim são fantásticos. São seres interessantes desde que não se encaixem nos padrões de normalidade com que somos criados. A fuga ao banal deve ser uma constante!
Há sempre algo de desinteressante nas pessoas normais com quem me cruzo na rua. Muda a roupa, muda o penteado, muda o sexo, muda o exterior, pouco importa! Lá dentro são iguais atrás do seu olhar rotineiro. Nada mais transparecem do que uma constante busca por uma existência básica.
Sempre que passam os esquisitos, os diferentes, os raros, desviam-me a atenção. Aprazem-me os furados impiedosamente com metais decorativos nos lugares mais bizarros da anatomia. Deleitam-me os pintados com tatuagens que violam a pele com imagens impregnadas de heresia. Contemplo os membros deformados de quem está limitado pela fragilidade do físico que sucumbiu à imperfeição. As cores garridas de quem não tem medo de sobressair na multidão.
Estes são os amantes da arte que ostentam no corpo o desassossego da sua individualidade!
Há na sua aparência uma bandeira à liberdade. Um apelo rebelde por evoluir, porque a vida tem de ser muito mais que isto. Não me admira que os outros se afastem, com medo, com desdém, ou com nojo. Fogem de todos que os lembram que pouco mais são do que macacos andantes rotulados de civilizados.

terça-feira, setembro 22, 2015

A lei


«Proibido sonhar!»
Essa lei não foi decretada por nenhuma autoridade governamental, mas sim pela dura realidade da vida. 
«Estás autorizado a sobreviver!»
Essa sim é a verdadeira lei. Essa é a regra básica da sobrevivência, tanto para o animal como para mim.
Os meus instintos poéticos e fantasiosos para nada servem, senão atormentar-me. Um escape ao que me rodeia sem que me ofereça uma fuga real ao martírio da existência. Os meus devaneios são como estupefacientes que me arrastam para o seu vício sem que exista neles qualquer tipo de salvação.  
Cá fora tudo é cruel, bem sei. Até a própria dor, que exige ser sentida, fica mais leve de suportar, e por vezes até bela, quando adornada por uma rima qualquer.
Talvez exista amor como pregam alguns. Queria acreditar nisso. A sério que sim! Contudo é mais fácil escapar para onde os sonhos me enamoram. Amar é sem dúvida mais perfeito quando tocado pela arte!
Entretanto prefiro esquecer que a amargura me espera e entregar-me ao mundo encantado da fantasia. Mesmo que me perca na sua doce mentira. Longe. 
A voz do mundo que me chama, severo, para me castigar, que espere por mim quando decidir descer da árvore da ilusão…

terça-feira, setembro 15, 2015

Quatro patas


Um cão passou na minha rua. Não tinha trela nem se avistava alguém que pudesse ser seu dono. Ia decidido, caminhando até com alguma pressa. Chamei-o com um assobio e uma promessa de festas. Ele olhou para mim de esguelha, como quem cumprimenta por favor e seguiu o seu caminho sem me dar importância. Não me ligou! Mais à frente parou para cheirar umas flores. Pensei até que fosse alçar a perna, mas enganei-me, não se demorou. Foi breve e retomou a sua marcha, pronto e determinado. Com toda a certeza sabia exactamente para onde ia. Onde é que se já viu isso? Um cão sem dono que sabe para onde vai!
Movido por uma certa curiosidade senti-me tentado a ir atrás dele. Seguir o bicho para conhecer o seu destino. Acabei, no entanto, por abandonar a ideia. Também não me questiono para onde vão as pessoas. Seguem a sua vida, tal como eu e tu. Nada tenho a ver com isso. O cão tem o mesmo direito de palmilhar o seu caminho mesmo em quatro patas, sem coleira nem trela e muito menos dono para lhe impor um rumo.
Por vezes há em mim um desinteresse tão grande acerca das coisas banais e mundanas que faz com que eu não aprecie os pequenos momentos, até mesmo em coisas surpreendentes, como aquele cão que sabe para onde vai, caminhando decidido como um humano qualquer...

quarta-feira, setembro 09, 2015

Viagem interior


A névoa vai caindo devagar cobrindo o mundo pouco a pouco, juntamente com a noite que chega. Entristece-te ó homem alegre, pois o Verão está a terminar. Prepara o teu manto de melancolia para te cobrir assim que o calor partir.
Consegues perceber muito sobre ti mesmo ao assistir ao pôr-do-sol mesmo antes que o Outono chegue. Algo que termina calmamente, como recordações que se arrumam, para dar lugar a algo que começa. Assim são os teus pensamentos: alegria, tristeza, projectos, derrotas, vitórias… Tanta coisa que visita a tua mente, neste momento pacífico, enquanto a noite cai.
É um momento solitário. Se tiveres alguém que te faça companhia tanto melhor, ainda assim, não deixa de ser um momento de introspeção, mesmo sendo partilhado. É bom ter outra pessoa ao lado, seja amizade, seja amor, tanto faz, desde que seja verdadeiro. Dois seres a admirar a mesma beleza e a realizar uma viagem interior.
Se houver mágoa, as lágrimas caem. Se houver alegria, o sorriso abre. Se houver sonhos o olhar brilha em direcção ao futuro. É para aí que deve seguir o caminho, enriquecido por tudo que o passado nos ofereceu.
Entretanto aproveita os restantes dias quentes. Não há motivo para tristezas abruptas. Reúne tudo aquilo que te faz feliz e larga ódios que atormentam. Liberta-te das amarras de tudo que é banal e vive. Afinal de contas o inverno passará, passa sempre, até que regresse a primavera.
Sê feliz :)

sexta-feira, setembro 04, 2015

Debaixo da cama


Não consigo adormecer. O silêncio e a noite escura serenaram o mundo. As pálpebras cansadas querem dormir e levam-me para o conforto dos lençóis. Mesmo assim, um medo irreal, quase infantil, tomou conta de mim e não deixa que me entregue ao sono.
Creio que debaixo da cama está um monstro. Um ser grotesco com aspecto de réptil. A cabeça é como a de um crocodilo que espera atentamente a caça da sua presa. Os braços são compridos e finos, quase elásticos, prontos a segurar a minha mão caso queira acender a luz da cabeceira. Pelo menos assim o julgo ser, pois entre a penumbra do quarto e o terror que se apossou de mim, quebrou-se-me a coragem de encarar a criatura. O pavor crescente faz com que me retroceda quieto escondido na segurança dos cobertores. Mantenho-me calado, sem emitir qualquer ruído que possa despertar a aberração.
Nestes minutos longos de insónia sombria, imagens bizarras passeiam pela minha mente como personagens sinistras de contos assombrados. As sombras que se destingem no escuro deformam toda a arquitectura do meu quarto. Fazem-me questionar se são espectros de aparência hedionda que me observam, tendo para mim intenções de pura perversidade!
A lógica diz-me que é tudo mentira, são apenas fragmentos irreais que povoam a minha imaginação. No entanto o medo cresce em mim como um vendaval, deitando abaixo qualquer muralha de sanidade que possa existir, sobrepondo-se à razão que me diz ser impossível que algo esteja ali, debaixo da minha cama, pronto a devorar-me. Os dentes começam a bater descontrolados e as lágrimas querem sair, obedecendo ao caos em que se transformou o meu sistema nervoso. A demência sabe como vencer a audácia…
– Por favor quero dormir! – Peço a qualquer anjo que esteja à escuta. Nada nem ninguém me vem salvar da minha própria irracionalidade. Sou apenas eu, o medo, o escuro, o terror e a loucura! Tudo embrulhado na demência da minha fantasia. Isto não pode ser real, tenho de escapar desta ilusão. Haja coragem...
Reúno todas as forças e num momento épico de bravura estico o braço velozmente para acender o candeeiro. A luz mostra a verdade. Não há lá nada. Apenas o meu quarto, o silêncio e a noite. Não existe nenhum monstro que me quer devorar. Só o meu corpo cansado e a minha mente que continua assustada como a criança que há em mim...

terça-feira, setembro 01, 2015

Nota de ausência


Lembras-te de como éramos felizes nos pequenos momentos? Parecíamos crianças prontas a descobrir com fascínio coisas novas todos os dias. Esse tempo parece tão longínquo e tão presente em simultâneo. Transformou-se em saudades e eu não sou fadista para as cantar...
O que aconteceu afinal? Entregaste-te ao mundo e às suas regras austeras. Trocaste as coisas simples pela azáfama das coisas grandes. Aos poucos foste esquecendo que o importante é ser feliz e partiste para as terras distantes dos teus afazeres.
Vejo o teu corpo mas não estás ali. Falo para ti e quem me responde é o atendedor automático do teu ser perdido numa mundanice qualquer que te absorve a atenção. Onde estás? Longe. Demasiado longe para chegar até ti, por isso fico cá.
Sei que «és tudo o que eu quero», tudo que preciso para ser feliz. Aliás, somos tudo que precisamos para sermos felizes! Longe do mundo, aqui, do lado de cá do sonho.
«Volta para mim», suplico-te como quem implora pela vida. Respondes apenas que já vens. Um regresso continuadamente adiado, como se a espera não importasse. Esqueces que o tempo não perdoa e não demora para que seja tarde demais. Fica a recordação e essa não importa quando se parte à aventura.
Entretanto vou perdendo a esperança que regresses. Escuto o chamamento do mundo na sua diversidade e sinto desejo de partir para as terras distantes de novas façanhas. E a vida vai acontecendo com as suas voltas e reviravoltas contando pequenas histórias…

sábado, agosto 01, 2015

Um Mundo Diferente ~ X Anos de Blog



Quando olhei para as datas, verifiquei que o meu blog estava quase a completar dez anos de existência.Uma data redonda que me pareceu que devia ser comemorada. Mais do que um espaço de escrita, o meu blog, é um local de crescimento e de história pessoal. Muita coisa de mim está ali traduzida em palavras.
Quando comecei, decidi usar o nick“Transcendente”, um nome que me deram numa brincadeira. Não sei porque continuo a usá-lo. Nostalgia talvez, ou se calhar uma enorme teima em criar e manter uma persona na internet. Uma espécie de alter-ego para fugir à rotina.
Ao completar dez anos, voltei atrás às primeiras publicações e dei por mim a fazer uma verdadeira viagem no tempo. Existem inúmeros textos que já não me lembrava ter escrito. Alguns de muita fraca qualidade, hoje não os escreveria. Outros de pura genialidade, quase que parece que não fui eu que escrevi. Mas todos os momentos de criatividade saíram da minha mente e desaguaram em palavras.
No entanto todos os textos têm algo em comum: Surgiram inspirados por pessoas, situações, ou fantasias que nasceram das entranhas da minha criatividade. Ao reler do início pude reavivar a memória que o tempo se encarregou de arrumar num canto esquecido da minha mente.
Rostos que se cruzaram comigo e partilharam um pouco da sua vida, seguindo depois os nossos caminhos que se foram afastando até estarem demasiado longe. Acontecimentos que vivi ou presenciei, pois nem sempre fui eu o protagonista, apenas mero observador e sobre eles opinei ou tentei transformar em poesia. A minha imaginação a voar, livre, maravilhada, solta pelo infinito a descobrir segredos ocultos e a acumular conhecimento…
A cada publicação lida relembrei o momento e o porquê de a ter criado. Algumas tão pessoais que só eu as posso interpretar, embora quem leia também interprete segundo a sua própria vivência e se identifique. Também os sentimentos que me acompanhavam: Alegria; Amor; Dor; Decadência; Desejo; Erotismo; Esperança; Fantasia; Inquietação; Introspecção; Liberdade; Loucura; Magia; Melancolia; Paixão; Paz de espírito; Poder; Raiva; Religião; Serenidade; Solidão (boa e má); Sonhos; Ódio…
A todos etiquetei e partilhei neste cantinho, um mundo diferente, pelo menos para mim. Escrevi, publiquei e esqueci… Segui em frente em busca de novas aventuras. E ainda bem. Sinal que tenho a vida preenchida e não estou preso ao meu passado.Mas não nego que fico feliz por poder usar esta máquina do tempo quando assim o desejar.
Neste aniversário decidi comemorar de forma diferente. Uma década de existência não ocorre todos os dias, por isso, mesmo não gostando de coletâneas de textos, decidi fazer uma. Recorri ao Smashwords, sitio onde podemos publicar de forma gratuita um ebook e recolhi os melhores textos escritos ao longo destes dez anos e compilei-os nesta obra.
É certo que não tenho muitos seguidores e visitas mas isso nunca me motivou. Quem aparece por lá e bem-vindo, mesmo que sejam dois ou três. Dessa maneira também posso manter o estatuto de blog caseiro e alternativo e isso agrada-me.
De início pensei que poderia escolher dez textos por cada ano. Depressa desisti da ideia pois a escolha era complicada e injusta. Escolhi os que gosto mais, sem grandes critérios.
É visível a mudança de estilo ao longo deste tempo. Desde os “poemas” que não rimam, aos textos tresloucados, passando pelos mini contos, muita coisa mudou em mim sem que eu desse conta. Ainda bem!
A vantagem dos ebooks é que podem ser lidos num tablet ou até no telemóvel, desde que abra o respetivo ficheiro. Para quem está habituado a livros físicos pode parecer estranho ler num ecrã, embora se faça uma habituação relativamente rápida pois o aparelho adapta o tamanho da letra à nossa necessidade tornando a leitura mais confortável. Sendo uma coletânea não aconselho a ler tudo seguido pois torna-se enfadonho. O melhor é intercalar com outro livro.
Convido, assim, todos aqueles que descarregarem este ebook a participarem desta viagem de uma década feita de publicações neste canto perdido na net. Espero que gostem :)
Claro que também podem ir a ummundodiferente.blogspot.com e lerem tudo do início, mas dá mais trabalho.

António Silva (Transcendente)
1/08/2015

Podem descarregar o ebook aqui: https://www.smashwords.com/books/view/565116

segunda-feira, julho 27, 2015

A sedução


A solidão falou comigo como se tivesse um corpo físico. Ou melhor, como se fosse uma espécie de divindade a tentar manipular um humano numa odisseia qualquer.
Tentou seduzir-me com palavras ternas acerca das maravilhas do vazio. De como seria fantástico não ter qualquer emoção de mágoa, ou de carinho; não nutrir qualquer amizade em prol dos meus segredos.
Contou-me de dias rotineiros ausentes de qualquer preocupação onde tudo era igual, desprovido de raiva ou de amor. Cantou-me hinos fascinantes acerca dos encantos de passar despercebido, tal como um fantasma, pelos demais com as suas façanhas inúteis.
Nisto surgiu a loucura, acompanhada da tristeza. De mim, também queriam o seu quinhão, bem generoso por sinal. Este trio foi-me contando, cada um por si, as vantagens da sua adoração, tal como vendedores de inutilidades. Na realidade soavam como comerciantes de escravos a tentar comprar a minha existência com futilidades.
Tentei-me em ouvi-los. Porque não? Afinal de contas todos faziam sentido em algum momento da vida. Mas… E eu? Onde ficavam os meus desejos? Não podia simplesmente enterra-los como cadáveres esquecidos, principalmente quando se tratavam de tesouros a quem dediquei tanto de mim.
Senti a revelação. Malditos sentimentos a tentar conquistar-me quando são eles os meus subjugados. Não me posso entregar por uma simples atracção em que me refugiei aqui e ali, como em amantes espalhadas pelo campo. Sei que a dor existe, sim! A dormência de não a sentir tenta-me não minto. Somente isso, nada mais. Se o preço a pagar for a inexistência não vou seguir esse caminho.
Vou antes escrever as tormentas na minha história e seguir em frente. Continuar a desbravar mundos nunca antes poetizados, porque, certamente mais adiante haverá conquistas!

quarta-feira, julho 22, 2015

A dança


Sonhei.
Foi como uma poesia que ganha vida,
Nesse existir, longe do ser, em que te encontrei.
Para lá da própria consciência conhecida.
Quem sabe deste universo de onde eu, sonhador, escapei.
Vieste nesse sonho sonolenta e calada,
A dançar devagar ao som do cosmos. Foi onde te olhei!
Chamaste-me e fui, qual sereia encantada.
Não estavas longe nem perto, por isso deixei,
Sem ter medo dessa melodia iluminada.
A música estava viva no silêncio, escutei.
Esqueci que lá fora havia madrugada,
Por isso, também dancei,
Enquanto dormia (ou acordava)...


Nota: Não percebo muito de poesia, a não ser que o poema rima. Por isso gostava que alguém que perceba do assunto opine sobre este. Se as rimas estão bem, qual o tipo de rimas, etc. Claro que podia ir ao google, mas prefiro interagir com outro ser humano :)

segunda-feira, julho 20, 2015

O pássaro


Existe qualquer coisa de mágico no acordar, depois de uma noite descansada, somente ao som do chilrear de um pássaro. Eu sei que esta imagem poética pode parecer um cliché, mas de facto é verdade e talvez por isso seja apelidada como algo trivial. Pouco importa. Embora não seja nada de extraordinário é algo que me deixa sereno.
O despertar inicial, ainda sem memórias a assombrar a mente, banhado com um silêncio tranquilo apenas interrompido pela sinfonia matinal de um pássaro, que alheio às lutas humanas trata da sua própria senda, cantarolando na sua língua da natureza. Para ele em nada importa que exista um ser dito racional a contemplar a sua canção de forma quase hipnótica. Simplesmente continua na sua simplicidade e isso agrada-me.
Tão simples, tão sossegado, tão fresco. Assim é este momento contemplativo. Tento tardar ao máximo que o mundo regresse à minha consciência. Esse tem tempo. É inevitável que volte. Isso eu sei. Porém, até lá, que fique calado. É somente este instante que importa, em que o meu “eu” mundano está sonolento e esquecido, para dar lugar à serenidade, que afinal pode existir num simples acordar ao som do chilrear de um pássaro.

terça-feira, julho 14, 2015

Os outros (O Narrador V)


A conversa está ser interessante?
Não olhes para mim dessa forma, já devias saber que não existe pior solidão do que aquela que sentimos quando estamos rodeados de pessoas. Tinhas perfeita noção disso quando vieste para aqui. Mesmo assim preferiste acreditar que podia ser diferente. Nada contra. Tentar não custa.
Olha só para esta gente à tua volta com as suas conversas mundanas. Banalidades inúteis que nada mais fazem do que irritar. Mesmo assim aí estas tu a tentar simular um sorriso, a tentar participar nos temas discutidos, a fazer um esforço tremendo para te misturares com eles. Achas mesmo que fazes parte deste grupinho? Estás com eles, não és parte deles. Sabes bem disso. Lá por serem muitos, dizerem umas coisas engraçadas e até simpatizarem contigo, não te fazem verdadeiramente companhia. Não são teus amigos, pelo menos no verdadeiro sentido da palavra. São bons conhecidos na melhor das hipóteses. Este é o mundinho deles, não o teu. Não quer dizer que tenham alguma coisa de mal, nada disso. Até é bom conhecer gente assim para certas ocasiões. Pessoas banais são necessárias também. Simplesmente há que ter em atenção que não pertences aqui. Se procuras felicidade não a vais encontrar com eles, pelo contrário, apenas frustração. Não esqueças que estás apenas a fazer o que é suposto um ser humano fazer: socializar. O que para alguém como tu pode ser uma tortura!
Bem sei que a tua mente paira noutro sítio qualquer, vagueando entre lugares distantes e fantasmas do passado. Fazes da tua existência uma viagem abstrata que nada tem a ver com a realidade que te rodeia. É duro. Fazes-te passar por quem não és para que não cheguem a ti, àquela tua verdadeira essência feita de inquietude. Já te partiram o coração e doeu. Doeu muito. Ainda hoje te dói. Por isso é melhor ficar do lado de cá, longe dos demais para que não volte a acontecer.
Chegaste a essa conclusão porque as pessoas magoam. Confiar nos outros é como jogar à roleta russa com as nossas emoções, nunca se sabe quando é que a arma vai disparar. A única certeza é de que a bala te vai atingir em cheio. Portanto, o melhor mesmo é não confiar. Toda a gente trai, mesmo sem querer. Tu não és excepção! Por isso mesmo criaste essa personagem com que vestes o teu verdadeiro “eu”, que ninguém conhece. (Salvo eu que sou o teu narrador. Agradeço esse privilégio apesar de também desconfiares de mim. Pouco me importa.)
Claro que deixando de confiar nos outros começamos a ficar secos, desajustados da realidade consumidora de banalidades. Por isso, viramo-nos para nós, para o sonho interior e começamos a sentir aquela inquietação no coração que tu tão bem conheces. Deixamos de estar sintonizados com este mundo feito de relações sociais, mas porque estamos presos nele começamos a viver com amargura. Claro que não te vou explicar isso novamente, estou só a lembrar.
Olha para os outros com atenção. Achas que és caso único? Repara em cada pessoa individualmente. Olha para os pequenos pormenores de cada um. Pois… É isso mesmo. Alguns são como tu. Farsantes a tentarem ser quem não são para simplesmente se integrarem com o resto do mundo. São como actores numa representação perpétua de uma peça de teatro onde são obrigados a participar. Vivem frustrados, cheios de mágoas no seu interior. Exactamente como tu!
Ainda assim vê como eles sorriem. Parece que se encaixam perfeitamente no seu lugar. Sabes porquê? Isso mesmo. Abdicaram de ter personalidade própria. Ideais, vontades, sonhos e metas apenas deles. Decidiram apagar-se a eles mesmos para conseguirem sobreviver no doce marasmo dum dia a dia coberto de rotinas monstruosas tal como todos os outros com medo do julgamento que possa acontecer. Preferiram castrar o seu intelecto em prol do simples destino de ser banal. Serve de refúgio um entretenimento ocasional e os programas de talentos de domingo à noite, onde a mente se convence do fado inevitável que a segunda-feira traz. Tudo não passa de uma mentira. Uma brutal e violenta mentira!
Sabes bem que todos que têm uma mente irrequieta não a conseguem prender por completo. Fica sempre ali uma voz incomodativa constantemente a palrar sobre como estás a desperdiçar a tua existência com futilidades. Sobra o isolamento do quarto onde ainda reside um pequeno santuário da sua fantasia, infelizmente não serve para mais nada a não ser chorar pela decepção que se acumula!
Que se passa? Sentes os olhos pesados e o coração apertado? Creio que não é motivo para isso. Apenas te estou a relembrar que a vida é demasiado interessante para ser desperdiçada com gente que desperdiça a sua própria existência com inutilidades. Ainda estás a tempo de acordar. Aliás, todos nessa situação ainda estão tempo de viver…
Parece que me entusiasmei demais. Falar é fácil eu sei. Mas sabes que às vezes pareço um daqueles pastores americanos a pregar moralismos e deixo-me levar. Seja como for, seja qual for a tua escolha, eu estarei aqui para narrar a tua vida.

terça-feira, julho 07, 2015

O espaço vazio


– A estrada é longa…
– Ainda bem.
– Vais partir?
– Sim.
– Sabes para onde vais?
– Não.
– Tens medo?
– Muito.
– Então porque vais?
– Porque quero ser feliz.
– Vais voltar?
– Talvez.
– Como vais?
– Ao som de uma música.
– Que levas na bagagem?
– Espaço vazio.
– Que esperas trazer?
– Coisas que me preencham.
– Vais ter saudades?
– Depende de quem encontrar pelo caminho.
– Quando começas a viagem?
– Já a iniciei há muito tempo.
– Como assim?
– Desde o momento em, que por curiosidade, fiz a primeira pergunta.
– Não achas isso estranho?
– Acho isso interessante...

quarta-feira, julho 01, 2015

O pecado


Acima de tudo, importa constatar que por trás das minhas palavras sou um gajo normal, com hábitos normais, preocupações normais, desejos normais… Há em mim uma banalidade quase incomodativa que me torna completamente desinteressante.
Não existe em mim nada de extraordinário nem de heróico. Nada de verdadeiramente fascinante que justifique a minha fantasia. Sou somente um recluso numa prisão feita de coisas mundanas.
É quase criminoso o acto de demonstrar as minhas ideias, filosofias e pequenos contos, através destes textos, que não são nada mais do que parágrafos que parecem bonitos. Bem sei que é para isso que inventaram a escrita. Para escapar à realidade. Pelo menos na minha opinião.
Não tenho a menor dúvida que haja quem discorde comigo. Sinceramente não quero saber. Se existe esta forma de escape então vou usá-la para proveito próprio. É justo que passeie pelas letras a minha imaginação.
Quanto à realidade, peço desculpa pela minha inquietude. O simples acto de existir não me satisfaz. Para isso tenho de pagar o preço do desassossego, tentando redimir-me deste meu pecado de sonhar…

terça-feira, junho 30, 2015

Como fazem nas novelas


Sonho-te!
Se é que posso descrever aquilo que faço como sonhar. Provavelmente é apenas um devaneio a roçar a inutilidade. Pouco importa. Cativa-me a tua fragilidade e o teu choro pois não é isso que te faz débil. Pelo contrário. É como um combustível para a tua força (e tens muita!)
Gosto da maneira como te ris de uma piada foleira (e também das inteligentes, claro. Daquelas bem temperadas com sarcasmo.) Há qualquer coisa de despreocupado nesse aspecto que me agrada bastante. Já sabes que sou meio hippie.
Quando vagueias no meu pensamento dessa forma, não vejo isso como um desejo. É mais, uma espécie de lembrança que me faz sorrir. Basicamente é isso. Creio que o segredo está no sorriso. Quando ele aparece algo fica bem. É como um pequeno fragmento de felicidade que nos visita. Não achas?
É assim que te sonho. Em parcelas momentâneas de imagens agradáveis. É da maneira que aproveito e fujo ao mundo. Sendo na tua direcção é sempre aliciante.
E porque não querer-te? Não há mal nenhum, nem regras que o impeçam. Quem sabe um dia destes, em que a nossa indiferença se aproxime num olhar, como fazem nas novelas. E depois acontecemos…

quinta-feira, junho 25, 2015

O apego


Abençoada alienação, esta que eu sinto. Chegou despercebida e tomou conta de mim como um cansaço que se vai acumulando ao longo de uma jornada dura.
Bem-dito desinteresse este, que faz com que não me importe com aqueles me rodeiam. Seja quem for, no trabalho, na rua, na boémia, nos caminhos da vida, nas coincidências da existência.
Surgiu carinhosa, como um toque maternal que me afasta de qualquer apego e de qualquer mágoa. Uma mão quente que afaga e protege o seu filho dos perigos que o rodeiam.
Sinto-me bem nesta solidão feita de companhia. Sou como um eremita que vive isolado do resto do mundo no meio da multidão, feliz por ser invisível e não precisar de responder por sensações humanas.
Como tudo isto é deliciosamente estranho. Ser, sem sentir a falta da paixão. Observar sem ter vontade de participar. Estar ali sem estar. Deixar o desejo para quem o que quiser ter. Pobre seja quem não tem o dom da apatia.
No meio disto tudo, creio que minto quando digo que não sinto desejo. Gostava de ser como a canalha entusiasmada em brincadeiras épicas de tão pequenas que são. Enaltecendo somente a imaginação ainda livre do fardo do conhecimento. No entanto, agora, temo que isso seja impossível, pois já fui corrompido por ideais, regras, lógicas e vontades próprias.
Haja, ainda assim, entretenimento banal para servir de distracção nas horas sem vontade.

terça-feira, junho 23, 2015

Os piolhos do macaco


A certa altura, vais acordar a meio da noite. Em cima de ti vai estar um macaco. Não será muito grande, nem tão pouco muito pesado. Simplesmente estará ali sentado sobre a tua barriga. Naquela confusão inicial do despertar, vais questionar o que é que aquele ser está ali a fazer. Obviamente que o bicho não te responde. Na realidade parece até ignorar-te, desviando a sua atenção para os piolhos que cata do seu pêlo escuro.
Subitamente, avivado pelo cheiro imundo daquela personagem, quando tomas consciência da bizarra situação, tentas levantar os braços para sacudir o animal, mas nada acontece! Os teus membros ficam parados sem te obedecer. Não te consegues mexer! Então o pavor vai começar a tomar conta de ti. Vais querer gritar por ajuda sem o conseguires. Quanto mais tentas soltar a voz mais o silêncio se vai tornar agonizante.
Mesmo sem conseguires falar tens uma certeza na tua mente, aquele símio grotesco consegue ouvir os teus pensamentos. Na gritaria silenciosa em que se transformou o teu cérebro, imploras para que a criatura te dê algum tipo de explicação sobre o que está a acontecer. Obviamente não terás resposta. Somente o medo, esse, vai continuar a crescer dentro de ti.
“De que inferno veio esta criatura?” Perguntas! Nesse momento esqueces que não tens fé e em desespero passas a crer em Deus, a quem recorres por ajuda. Vais começar então uma prece onde imploras por auxílio, enquanto te desculpas pelos pecados que praticaste. Assim é o desespero daqueles que se arrependem por conveniência. Mas nada acontece… O mundo como o conheces transformou-se em terror absoluto.
O macaco, esse, vai continuar a catar os piolhos do seu pêlo, indiferente ao resto. Vai deixar que a alucinação continue e a loucura reclame o que é seu…

segunda-feira, junho 15, 2015

Enquanto a noite cai (texto reescrito)


Aqui neste mausoléu, repouso o meu corpo frio, enquanto a noite cai, maternal, acarinhando-me com ternura.
A solidão e o sangue dos vivos já não me satisfazem. Parece que o mundo lá fora está vazio de esperança. As pessoas têm corações quentes mas sonhos ocos e apáticos. Estão vivos, embora mortos na sua falta de iniciativa pelo marasmo em que existem. Ainda assim vão-me arrastando com eles, para a luz do dia despojado de emoções.
Recordo tempos românticos neste sangue que bebo. Sonho com um futuro radiante tal como uma utopia por nascer. Porque afinal eu ainda sei sonhar, mesmo que me tentem roubar a fantasia ou calar a poesia.
Mas por enquanto repouso o meu corpo frio neste mausoléu esquecido no tempo e tento encontrar esperança neste sangue vazio que bebo…


Nota:
O texto original foi publicado em 09-12-2006. Gosto particularmente dele, por isso fiquei triste quando o vi copiado e publicado em vários blogs sem referência ao autor. Aconteceu com alguns outros, embora não me importe muito com esses. A net é propícia a estas coisas não existe nada que possa fazer. Fica, ainda assim, o reparo.
Hoje, ao relê-lo decidi reescrevê-lo, Talvez por nostalgia, talvez por melancolia. 

sexta-feira, junho 05, 2015

O aprender


Era uma vez uma estrela, como todas as estrelas, que brilha no céu. Era uma estrela verdadeira, ao contrário daquelas que os homens inventam.
Era uma vez um rapazinho sonhador, como todos os sonhadores, que gostava de olhar para o céu nocturno. Um dia reparou naquele pequeno ponto de luz que cintilava mais alegremente do que todos os outros. Achou-o bonito e acenou-lhe como se pudesse ser visto por aquele pequeno ponto luminoso. Tornou-se assim amigo da nossa estrela distante. Sempre que podia vinha espreitar a sua amiguinha gesticulando-lhe um olá.
Quando foi para a escola ensinaram-lhe o que era uma estrela e como bom sonhador que era, prometeu ser astronauta quando fosse grande para um dia ir visitar a sua amiga cintilante num foguetão espacial. Quem é a criança que não deseja ser astronauta?
Infelizmente não lhe ensinaram sobre o tempo e quando cresceu esqueceu-se que um dia tinha feito amizade com uma estrela. Os seus sonhos de menino foram sendo esquecidos para darem lugar aos desejos de homem. Conheceu o amor e viveu aventuras. E agora que era crescido, deixou de olhar para o firmamento como fazem os homens.
Infelizmente também não lhe ensinaram sobre a mágoa e por ter amado partiu o coração como acontece a quem ama. Nesse dia também conheceu as lágrimas dos adultos e chorou como fazem os homens, porque os homens também choram ao contrário do que lhe disseram.
Nessa altura quis ser novamente uma criança sonhadora, onde todos os dias eram de descoberta. Na sua insónia voltou a olhar o céu nocturno e lembrou-se da sua velha amiga cintilante. A estrela continuava no mesmo lugar a piscar entre as demais. Não resistiu em acenar-lhe e nesse momento voltou a sonhar com viajar o infinito para muito longe.
Então uma ideia passou-lhe pela cabeça: E se a estrela também o estivesse a observar a ele? Claro que, por causa do que lhe ensinaram na escola, ele sabia que isso era impossível. Mas para uma criança sonhadora não existem impossíveis e naquele momento teve a certeza de que aquela estrela cintilante enviava a sua luz para o animar, como se o abraçasse do outro lado do cosmos.
E ficou feliz.

segunda-feira, maio 25, 2015

A humanidade


Alguém viu por aí a minha humanidade?
Talvez a tenha perdido da primeira vez que desejei ter uma aventura. Quando, na minha inocência de criança, quis ultrapassar os limites que me foram impostos.
A sério. Eu juro que já fui humano!
Talvez tenha esquecido isso quando pela primeira vez conheci o desejo, seguido da doçura do amor, terminando na amargura do coração partido pela crueldade dos sentimentos.
Gostava de recuperar a minha humanidade.
Talvez a lógica a tenha roubado entre a sua frieza quando, com sucesso, provei a vingança. Cresceu algo robótico no meu íntimo racionalizando o pensamento nesse computador bioquímico que é o cérebro.
Que uma princesa me beije e me refaça como humano!
Talvez aconteça esse milagre, já que me é penosa a carne onde me prenderam. Queria provar, ainda que breve, o gosto da divindade com que me iludem nas histórias de encantar ou nos romances de ficção.
No fundo acho que nunca perdi a minha humanidade…
Talvez todos aqueles que se dizem gente bebam desta mesma fonte da dúvida, onde existe o êxtase da felicidade e a violência da tristeza. Opostos juntos no mesmo acontecer que nos torna humanos…

segunda-feira, maio 18, 2015

O sonho proibido


Já alguma vez tiveste um daqueles sonhos super interessantes e acordaste a meio?
É uma coisa tão lixada! Tentamos voltar a dormir para ver se retornamos ao que estávamos a sonhar, mas Morfeu, implacável ou irónico, fecha-nos a porta dos seus domínios. Sem adormecer o sonho não regressa, pelo contrário, vai-se dissipando. Quando damos conta já não nos lembramos no que se estava a passar na nossa cabeça ainda há poucos momentos durante o sono. É frustrante!
Aconteceu-me uma cena dessas esta noite!
Não! Já disse que não me recordo sobre o que era, senão não estaria a falar disso. Digo-te apenas uma coisa: o que quer que fosse era importante.
Mas afinal tens os ouvidos tapados ou quê? Repito mais uma vez que não sei sobre o que era. Apagou-se da memória…
O que quer que tratasse o meu sonho era grandioso numa escala impossível de descrever. Talvez fosse uma revelação divina sobre sabedoria oculta… Às tantas esqueci por castigo. Porque nenhum humano deve conhecer o que me foi revelado naquele sonho proibido. Sei lá! Digo-te apenas que o anseio recordar com todas as forças.
Não consigo deixar de pensar nisso. Deixa-me inquieto. Passo o dia desassossegado a questionar-me sobre o que se tratava. Parece uma coisa obsessiva. Simplesmente não consigo livrar-me deste desespero por lembrar algo que talvez não passe de uma ilusão. Ainda assim desejo esta quimera, nem que isso me leve à tormenta da loucura. Se é que essa semente já não foi plantada em mim…
Mas conta-me lá. Sim tu! Nunca tiveste um sonho destes?

terça-feira, maio 12, 2015

A modernidade


A viagem é curta embora para mim pareça longa. Não de uma forma entediante, pelo contrário. Perco-me entre as paisagens por onde vou passando. Deixo que a minha mente vagueie por esses locais. Questiono-me sobre as historias que elas escondem e sobre a beleza que contêm.
Reparo nas casas, não consigo evitar imaginar como serão os seus habitantes; gente humilde, almas trabalhadoras que se contentam com um viver simples, manchados aqui e acolá por pessoas que abraçam a arrogância de se acharem de melhor casta. Há-los em todo o lado. Esquecem que nascemos todos do mesmo pecado original.
Imagino atrás das portas as vidas das famílias. As alegrias e tristezas; as vitórias e derrotas; os amores e os dramas; nascimentos e solidão. Pequenos universos que se resumem aqueles lares e àqueles que os compõem. Só por si não têm importância para a história da comunidade, sem ninguém que os relate e muito menos que se importe. Vidas que acontecem. Somente isso.
Contemplo os cenários naturais. Verifico de forma quase rezada que por estes lados ainda é tudo tão puro, como se dedicasse uma oração à Mãe Natureza pedindo desculpa pela modernidade do automóvel. Sigo devagar para que a minha marcha não manche em demasia toda a calma que envolve estas terras.
Interrogo-me se já outros, tal como eu, tiveram os mesmos pensamentos de tranquilidade ao percorrer estes caminhos serenos. Provavelmente sim. Gente moderna tem sempre esta necessidade oculta por um pouco de sossego. Habituamo-nos ao barulho, às luzes, à pressão, no entanto continuamos a ser bichos na nossa essência. Animais sem grande ferocidade que apenas desejam viver em paz.

quarta-feira, maio 06, 2015

O fado


Existem saudades
Que já o são antes de o ser
Paridas gritadas com sofrer

Rasgando ventres
Vêm em nossa alma nascer
Crescem como fogo a arder

Crianças carentes
Que descalças vão a correr
Mendigar o pão para comer

Escrevem estrofes
Poemas loucos para antever
Amores ainda por acontecer

Rimas inquietantes 
Nas folhas brancas do viver
Com a caneta do enfurecer

Emoções ausentes
Nos caminhos por percorrer
Parado o tempo sem correr

Marcas presentes
Raivas inquietas fazem doer
A ânsia do nosso adormecer

Apenas saudades
Entranhadas no nosso viver
Cantando fado no nosso ser

quinta-feira, abril 30, 2015

Sem regaço nem aconchego


Penosa sina descontente
Destino amargo de escravidão
Caminho perpétuo à solidão
Certeza firme em rumo errante

O espírito paira distante

Escondido em meu impreciso
Breve esperança de paraíso
Somente imaginar é o bastante

Doce prazer angustiante

Constante busca pela verdade
Roubar pedaços felicidade
E do pensamento ser amante

É doloroso ser diferente

Viver sempre em desassossego 
Sem regaço nem aconchego
Sentir inquietude eternamente

segunda-feira, abril 27, 2015

Na taberna‏


– O mito da criação está errado. – Disse o velhote dando um gole no vinho.
– Porque dizes isso? – Perguntou, curioso do porquê daquele tema de conversa.
– Repara. Porque haveria Deus de colocar uma maçã numa árvore e dizer a um casal de humanos para não mexer. Isso é praticamente um convite a lá ir. O Criador tinha obrigação de saber que somos seres curiosos, afinal de contas foi ele que nos criou, não é verdade? – Questionou-o de forma retórica.
– Tens razão, faz algum sentido. Então e a cobra? – Contra-argumentou.
– Isso é só uma desculpa esfarrapada. Se não fosse a cobra era outro bicho qualquer. Mais cedo ou mais tarde Eva havia de trincar aquela maçã. Fruto proibido é o mais apetecido. Deus sabia desde o início que isso ia acontecer. Os padres não me convencem do contrário. – Gesticulava entusiasmado enquanto expunha os seus argumentos.
– Tem lógica sim senhor. Nesse caso, na tua opinião, o que achas que aconteceu?
– Nós somos o diabo! – Arregalou os olhos de tal maneira que pareciam querer sair das orbitas – Todos nós somos encarnações do mafarrico. Olha o que te digo.
– Credo homem! Abrenuncio! – Pousou a cerveja rapidamente e bateu três vezes na mesa com o punho fechado.
– Analisa bem a situação. – Aproximou-se mais do outro como se lhe fosse contar um segredo bem guardado. – Deus expulsou o Diabo do paraíso porque ele se achava a Sua criação mais perfeita. Além disso considerava-se rival do próprio Deus e claro que Ele não gostou, por isso enxotou-o para a Terra. Isto, um padre não pode negar.
O ouvinte anuiu. Levou novamente a cerveja à boca como pretexto para se afastar do hálito pútrido do velho, aguardando que continuasse a expor as suas conclusões.
– Achar que somos deuses, isso sim é um comportamento humano. Os políticos acham-se melhores que o povo; os ricos melhores que os pobres; os chefes melhores que os empregados; os lindos melhores que os feios; o vizinho melhor que o outro; a lista continua, estás a ver a ideia. – Parou por momentos enquanto fez uma careta estranha, evidenciando ainda mais as inúmeras rugas profundas que lhe esculpiam o rosto. – E os burros acham-se melhores que os espertos. Este é o meu exemplo favorito!
Dito isto soltou uma gargalhada sonora. Acenou ao taberneiro para pedir mais vinho. – E todos nos achamos deuses… – Concluiu.
O seu parceiro reparou que desde o início daquela conversa, que ainda não levava meia hora, o velho tinha bebido uma garrafa inteira de um tinto bem puxado, sem que se tivesse apercebido.
Estando de visita aquela cidade resolveu seguir o conselho de amigos e passar pela parte velha onde o progresso parece nunca ter chegado. Disseram-lhe que naquele canto escondido existia uma taberna tradicional, no sentido mais acentuado da palavra.
Era verdadeiramente assim. O cheiro a álcool, tabaco e petiscos estava entranhado naquelas paredes já sem cor, tal era o desgaste que tinham. Se tivesse de adivinhar diria que aquele sítio burlesco nunca tinha sofrido uma remodelação, tivesse os anos que tivesse. A higiene também estava esquecida, da mesma forma que as autoridades se esqueceram de fiscalizar o local. Olhou para o chão atentamente, convencido de que a qualquer momento iria surgir uma ratazana para comer os pequenos pedaços de carne e pão que se encontravam caídos debaixo das mesas.
Ainda assim o local estava cheio. Misturavam-se turistas estrangeiros, homens bêbados com aspecto de mendigos, fulanos bem vestidos de aparência mafiosa rodeados por mulheres evidentemente prostitutas e simples transeuntes que paravam para beber o seu copo e ter dois dedos de conversa. Muitos fumavam livremente como se a lei nunca tivesse passado por ali.
O pequeno cubículo que acolhia a taberna parecia ridiculamente pequeno para tanta gente. Mesmo assim cabiam todos sem apertos. Era possivelmente o local menos recomendável onde tinha posto os pés, contudo não hesitou em entrar.
Falaram-lhe num homem tão velho, que parecia que tinha sido esquecido pela própria morte. Passava os seus dias sentado numa mesa junto ao balcão, mirava com os olhos brilhantes todos que entravam como se esperasse companhia. Recomendaram-lhe, se o visse, que se sentasse ao pé dele e lhe passasse uma garrafa de vinho (ou duas como era o caso). Assim o fez.
Mesmo que a lógica lhe recomendasse para sair dali o mais depressa possível, sentou-se ao pé do dito velhote, que ao olhar para ele pareceu esboçar um sorriso alegre por entre a boca completamente desdentada e o emaranhado de rugas que era o seu rosto. Aquela cara era tão bizarra que parecia uma pintura grotesca saída da mente de um artista tomado pela loucura. Pedaços de cabelo branco saltavam rebeldes na sua cabeça. Era impossível tentar adivinhar a idade do pobre homem, sendo a única resposta possível: muitos anos de vida. Mesmo muitos…
O taberneiro, um homem alto, gordo, bastante peludo, na casa dos quarenta que já começava a ser tomado pela calvície, como que a adivinhar (ou conhecedor da rotina) pegou de imediato numa garrafa de vinho tinto e trouxe-a para a mesa. Nesse momento reparou com mais atenção naquele outro personagem pitoresco. Transpirava com alguma abundância, segurava um palito comprido entre os dentes e vestia uma camisola sem mangas, claramente um número abaixo do seu, o que ajudava a evidenciar a barriga peluda. Quando regressou para trás do balcão retomou a limpeza do que aparentava ser sempre o mesmo copo com um pano encardido. Dado o grande número de clientes parecia quase impossível como um só homem os podia servir a todos, embora fosse isso que acontecia pois ninguém reclamava o serviço.
Para ele próprio pediu uma cerveja de garrafa, bem fechadinha, que abriu com as próprias mãos, ainda assim desconfiado em relação ao conteúdo. Já o velhote, entre alguns tremores, de imediato encheu o copo. – Muito obrigado meu amigo. – Disse, expondo a sua gratidão, visivelmente agradado.
– Não tens que agradecer. – Respondeu o visitante sem formalidades. Sentiu-se impelido a tratar aquela figura por “tu”. Da outra parte não houve objecções.
Tinha começado assim aquela conversa incomum sobre a criação.
O velho calou-se enquanto esperava que o taberneiro lhe trouxesse a segunda garrafa, como se só a bebericar um bom tinto pudesse contar a sua visão dos factos. O que provavelmente era verdade. Quando ela chegou voltou a encher o copo, desta vez livre de tremores e logo de seguida deu um gole, lento e saboreado.
– Como te estava a dizer. – Retomou a palavra. – Todos nós somos a encarnação do diabo. Uns mais que outros é claro. Mas cada um de nós é um pedaço de satanás, ora a fazer o que a sua natureza maligna quer, ora em busca infrutífera da redenção. Isto, meu amigo, é a verdade sobre a criação: Todos somos o diabo a ser castigado vidas sem conta aqui na Terra! – Repetiu a frase palavra a palavra com ar sério.
O ouvinte não respondeu. Havia alguma verdade nas palavras do velho demente. Deu um último gole na cerveja já quente e levantou-se, deixando o cliente habitual entregue ao que restava do tinto.
Dirigiu-se ao balcão deixando sobre ele uma nota bem generosa. – Pode ficar com o troco. – Murmurou entre dentes ao taberneiro que de imediato guardou o dinheiro com a sua mão gordurosa.
Saiu, invisível à clientela barulhenta. Lá fora estava a rua à espera. Escurecia, a noite tinha começado a cair entretanto. Havia perdido a noção do tempo que estivera dentro daquele local bizarro. Apertou o casaco melhor para se resguardar do frio que se fez sentir.
As palavras cobertas de insanidade proferidas pelo velho teimavam em pairar de forma sinistra no seu pensamento. Existia algo de verdadeiro nelas. A cada passo que dava a solidão que sentia sempre tornava-se mais forte, como que animada por aquela experiência grotesca. Não a conseguia ignorar nem evitar, como aquele frio trazido pela noite. Doía na alma. “A vida era um castigo”. Concluiu, e deixou-se chorar…

sexta-feira, abril 17, 2015

A ti que não tens nome


Gosto de ti! Sim eu sei que não conheço o teu nome, nem os traços do teu rosto, nem a silhueta do teu corpo ou qualquer tipo de aparência e muito menos as cores que pintam o teu espírito ou os sonhos que o habitam.
Sinceramente pouco me importam pormenores! Interessa-me somente o acto de gostar, sem grande poesia ou romantismo, livre de ser adjectivado como “eterno”. Aliás, o fascínio está em engrandecer esse mero “amar”, reduzindo-o a um momento efémero, praticamente imperceptível que acaba por se perder no esquecimento entre os detalhes do dia-a-dia.
É como um silêncio repentino, que surge no meio da algazarra que te rodeia, durando somente uns insignificantes milésimos de segundo, contudo, suficientes para te dar um instante de alívio, ou mesmo prazer, enquanto te faz a mente escapar para outras ideias.
Uma voz singela e calada, quase nascida na imaginação, que te sussurra encantamentos libidinosos ao ouvido e te faz arrepiar a espinha e humedecer o sexo. Um toque invisível que faz vibrar toda a tua feminilidade fazendo dançar a tua imaginação por entre histórias de encantar: "E se..."
Amo-te assim, de uma forma tão breve quanto uma mera troca de olhares; ou alguém que passa na rua cativando a curiosidade momentaneamente para nunca mais ser visto; ou uma voz que te chama a atenção entre as demais para nunca mais ser escutada; ou até mesmo a silhueta de um corpo que te surge pelo canto do olho, embora logo desapareça entre a multidão.
Um amar tão básico como estes encontros que em segundos te fazem imaginar uma vida, ou somente uma tentação sensual que encontra guarida no pensamento, onde Deus não está a ouvir e onde afinal não é pecado. Um cruzar de vidas tão intenso como passageiro que logo a seguir já não faz parte das tuas recordações.

Nota: dedicado a todas as mulheres que já foram desejadas e desejaram em momentos de segredo já esquecidos