quarta-feira, maio 23, 2018

Não te peço o impossível


Conta-me o segredo da melancolia.
Sabes que me sinto atraído pela tristeza que se esconde atrás de um sorriso. Esse, como o teu. Com aquela dolência que não precisa de explicação, nem de uma história amarga para que tenha origem. Simplesmente é.
Tenho um fascínio, quase metafísico, pelas almas geradas na senda sombria do Universo, tão bem camufladas pelas artimanhas da felicidade. Há sempre um momento em que o que é falso é desmascarado e um actor se livra da sua personagem. Essa, como a tua.
Depois há a poesia. Esses versos malditos que viciam com as suas estrofes escritas, desenhadas, cantadas, ou simplesmente abandonadas, nos gestos esquecidos do dia-a-dia repetido. Tal como os teus.
A beleza existe onde os olhares mais básicos não entram, mesmo num ser atormentado pela inquietude de existir. É algo que ascende acima da condição humana, sem conhecimento que o ensine, numa incompreensão por traduzir. Essa, como a tua.
Não te peço o mundo, nem tão pouco o impossível. Somente a voz erógena que dita o segredo da melancolia. Essa, como a tua…

terça-feira, maio 15, 2018

O aroma da padaria


Onde estão as minhas recordações de criança?
Visitei-as naquele dia vazio. Encontrei ruínas abandonadas. Paredes decrepitas com trepadeiras a tomar os seus tijolos, pintar o estuque em tons de verde e a ameaçar a sua verticalidade. É a Natureza a reclamar o que afinal lhe pertence.
Da padaria que visitava na minha infância restavam apenas uns muros grafitados. Isso não impediu que a lembrança do seu cheiro característico chegasse às minhas narinas, como se estivesse lá novamente a comprar uma regueifa. No entanto, tudo me parecia demasiado pequeno aos olhos do meu corpo adulto.
Assim estava também a loja de caça. O pequeno mercado. O casarão da velha quinta. A própria alma do lugar onde, antigamente, pessoas passavam atarefadas por outras que conversavam sobre as coscuvilhices da vizinhança e a canalha que corria em brincadeiras traquinas. Havia sempre muita gente, ao contrário do vento solitário que hoje sopra nos caminhos sem ninguém.
Aqui e ali, alguém se lembrou de recuperar, ou modernizar, o que já lá estava, entre as ruas sozinhas esquecidas pelo progresso. Mesmo assim eram cenários que nada me diziam, para além da sua aparência limpa no meio de uma ruralidade ultrapassada pela tecnologia, pelos cursos superiores, pelas grandes superfícies comerciais, pela novidade, pela cidade que agora é aqui tão perto!
O problema do tempo que passa é que as coisas mudam e tudo que foi vivido vai sendo anulado, ou melhor, distorcido pela percepção do crescimento. O que ontem era presente, hoje não passa de meras linhas escritas na memória. Portanto, de que vale procurar o passado no dia de hoje, quando já não sou o mesmo?
Em mim tanta coisa mudou. Os meus sonhos de criança parecem ridículos, pela ingenuidade com que eram pautados. Ao mesmo tempo são como uma riqueza infinita pelo simples facto de existirem. Chego à conclusão que do passado não posso exigir muito mais. Basta saber apenas que já lá estive e sentir a alegria de o ter vivido, sem mais querer das recordações, a não ser o que elas me ensinaram.

segunda-feira, maio 07, 2018

Trovoada de Maio


Há um calor abafado no ar.
Há uma sexta-feira à tarde no fim do horário do trabalho.
Há uma esplanada com gente que relaxa depois de um dia de labuta.
Há nuvens escuras que vão cobrindo o céu devagar. Abafam cada vez mais o ambiente, tornando o calor quase insuportável, ao mesmo tempo que anunciam que em breve vai chover. Ouve-se nas conversas que se cruzam entre as mesas, “está um calor de trovoada”.
Não tarda, vai nascer a tempestade.
Os diálogos começam a divergir apenas nesse sentido e as pessoas vão-se levantando com medo da intempérie que se aproxima.
Um homem mantinha à sua frente uma bebida fresca, rodando o copo lentamente, com a calma de quem espera.
O céu vai ficando cada vez mais escuro. A tempestade está chegar.
“Meu Deus! Que vem aí uma trovoada!” Alguém exclama ao passar. Escuta-se os passos apressados, em fuga, do resto das pessoas que ainda arriscam ficar na rua. Em cada adulto existe um medo irracional e infantil dos relâmpagos e do ribombar dos trovões. Em cada pessoa crescida, existe uma criança assustada.
No entanto, o homem mantem-se no seu lugar. A bebida estava fresca. A boca estava seca. Apeteciam-lhe e sabiam-lhe bem os goles que ia dando. Mas entretanto, continuava a rodar o copo, sem se importar com o negrume sobre si, e a tempestade iminente, que ia assustando os demais.
Dentro do café o empregado olhava-o por detrás dos vidros. Interrogava-se como é que aquele homem continuava ali, sem medo?
Afinal estava calor e ele tinha sede, por isso bebia algo fresco.
A trovoada, prestes a acontecer, não começava. Parecia que também ela esperava, enquanto o homem, calado, continuava a dar goles no copo de bebida fresca, que parecia nunca mais esvaziar.
O sol foi-se escondendo até desaparecer por detrás das nuvens sombrias. Mesmo assim o homem parecia cada vez mais relaxado. Afinal de contas, era sexta-feira à tarde, depois da semana de trabalho. Tinha quase uma obrigação para si mesmo de descontrair e sabia-lhe na perfeição a bebida fresca, degustada em pequenos goles de sabor tropical.
Estava um calor muito abafado no ar.
Era sexta-feira depois do horário do trabalho.
Era um homem sozinho sentado numa esplanada vazia.
Eram as nuvens escuras que tomaram conta do céu.
Era uma trovoada que nunca mais chegava.
E nada mais acontecia…