sábado, dezembro 30, 2023

Domingo solarengo de Outono



Hoje não chove 

O sol lá vai brilhando

Uma abelha passeia pelas flores

Não sabe que é domingo

Dia em que o Zé Povinho

Dá a volta dos pobres 


Não chove hoje

O sol lá vai raiando 

No outono com as suas cores

As folhas vão caindo

Castanhas e vinho 

Alimentam muitas fomes


Hoje não chove

O sol lá vai encantando

A natureza com os seus odores

Os pássaros vão cantando

As crianças vão brincando

Alheias a todas as dores


Não chove hoje

O sol lá vai aquecendo

O nascimento de novos amores

Os jovens vão sorrindo

Porque amar é lindo

E ainda estão longe os dissabores




segunda-feira, dezembro 25, 2023

Tempo de Natal


O Deus Menino nasceu pequenino, mesmo sendo maior do que o mundo. Encarnou na pobreza e foi deitado nas palhinhas. Dizem os padres ser uma mensagem de amor e humildade por parte do criador. Todos sabemos que a humanidade não compreendeu isto. 

Igual a qualquer outra criança foi gerado para crescer exposto ao ódio, fome, peste e guerra. A sua imagem devia ser adorada com amor e devoção. Em vez disso, é usada como decoração em cenários de riqueza, onde abundância só chega a alguns.

A criança divina, rei de todos os povos, foi coroada ainda bebé com uma coroa de espinhos.

De repente já é um homem. Vê luzes brilhantes e escuta canções alegres, parecem ocultar a dor de quem grita calado nos lugares longínquos. 

É proibido falar de sofrimento como se este fosse uma coisa real. Serve para alimentar as notícias, para quem tem fome de tragédia poder lamentar como se isso aliviasse a consciência. Dá-se uma esmola aqui e ali para afastar a culpa, não vá ela pesar na mesa farta da noite de consoada.

Desigualdade, injustiça e crueldade. Ganância e egoísmo, disfarçados de generosidade. Celebravam o seu nascimento com festas extravagantes e presentes caros, enquanto os invisíveis olham cá fora pela janela, ao frio, com a inveja própria de quem só lhe resta o sonho.

Nós sabemos e continuamos.

E o Deus Menino chora porque o Natal é tristeza.


terça-feira, dezembro 19, 2023

Conto de Natal em cinquenta palavras


Era véspera de Natal. Uma criança encontrou um porquinho perdido e trouxe-o consigo. Já em casa, pediu ajuda para cuidar dele. A família, indiferente a esta época, nunca preparava ceia. Ao verem o porquinho, reuniram-se. Aconchegaram-no, partilharam comida. Passaram a noite em união. O porquinho presenteou-os com o Espírito Natalício.

Conto elaborado para um desafio do Laboratório de Escrita

quinta-feira, dezembro 07, 2023

Anoitece mais cedo no outono


É engraçado, ou no mínimo curioso, como estas coisas funcionam. 

Com a chegada do outono e a insistência das primeiras chuvas, sentia falta de algo. Nada que fosse material, uma roupa quente pudesse aconchegar, ou uma comida mais forte pudesse satisfazer. Não. Nada disso. Era uma sensação inexplicável. Como se alguma coisa lá dentro mendigasse por atenção. 

A hora mudou, anoiteceu mais cedo. O tempo escuro convidou a sentar-se no sofá para um pouco de descanso antes do jantar. Navegou sem destino pela internet, até se deparar com uma imagem a representar todas as fases da lua. Compreendeu o significado. A sua espiritualidade estava a chamar. 

Pousou o portátil. Dirigiu-se ao quarto. Abriu a gaveta do meio, da mesa de cabeceira. Dentre os vários objetos pessoais, alcançou uma bolsinha de pano. Apesar de estar misturada com todas as outras coisas mundanas, pegou nela com reverência e acariciou-a. Tinha um fio que a fechava, libertou-o e de dentro tirou um baralho de tarot. 

Olhou demoradamente para a arte em cada carta. Para o comum mortal, tratava-se apenas um pedaço de papel com um desenho bonito. Podia ser só isso. E se fosse, mesmo assim era tanto. No entanto, nas suas mãos, eram coisas vivas. Mensagens por decifrar. Sabia que o oráculo precisava de atenção. Ou o melhor, o seu próprio espírito precisava de atenção.

Com um suspiro profundo, sentou-se na cama. A luz suave do candeeiro convidava à introspecção. Os dedos deslizavam com suavidade sobre a superfície lisa das cartas. Cada uma passava pelas suas mãos  devagar. Todos os pormenores das imagens desenhadas com grande cuidado, tinham um segredo. Pequenos detalhes que todos juntos formavam em simultâneo, um mistério e uma resposta. Arte e magia numa simbiose perfeita. 

Começou a embaralhar as cartas. Mesmo sendo um processo simples, demorou até se certificar de estarem todas bem misturadas. Finalmente, quando sentiu ser o momento certo, parou. Com os olhos fechados e a mente aberta, cortou o baralho a meio. Retirou a carta de cima da metade de baixo. Como estava virada não podia saber qual era. Ainda assim, sentia a energia dela. Vibrava, quase como se estivesse viva. 

Virou-a. Era a Roda da Fortuna. Carta número dez. Representa o movimento constante da vida, as mudanças inevitáveis, todos os ciclos da experiência humana. Não sentiu surpresa ao verificar o resultado. Das setenta e oito possíveis foi exactamente aquela a escolhida. A mesma que fala das fases pelas quais passamos de forma cíclica. 

Olhou para a carta com um sorriso nos lábios. Interpretou como uma mensagem de esperança. Parecia completamente adequada para o momento. Sentiu-se bem.

Olhou para todas as outras cartas também. Cada uma tinha o seu espaço. Refletiu sobre o significado delas. Eram um espelho da alma. Falavam sobre a sua jornada espiritual. Como se desprendeu de muitas coisas pesadas. Dos desafios enfrentados. A força conquistada para chegar até ali. Compreendeu e aceitou o convite para continuar a crescer. Agradeceu, depois, ao oráculo pela mensagem.

Juntou o baralho novamente e guardou-o na bolsinha de pano. Voltou a colocá-lo na gaveta, ainda com mais reverência. Naquele cantinho escondido, mas tão especial. Sentiu-se mais leve. A chuva lá fora parecia menos insistente e o outono menos melancólico.

Voltou para a sala, sentou-se no sofá e pegou no portátil novamente. Contudo, em vez de navegar sem rumo pela internet, decidiu escrever. Começou com frases soltas sobre a vida e os sentimentos. Depois, as palavras fluíam com facilidade, libertas na inspiração do éter. Nasciam poemas e prosas. Ideias e pensamentos. As páginas do processador de texto ficavam assim cheias pela criatividade outonal.

Quando terminou, sentiu uma satisfação aconchegante. Ouvia a chuva a cair. Sorriu. Respondeu ao apelo do seu espírito e sabia disso. Concluiu que o mundo interior também precisa de atenção.

Talvez por isso exista o outono. A noite vinha mais cedo porque é suposto o corpo abrandar. A chuva caia lá fora, pois o aconchego convidava a imaginação a sair. Era esse o pequeno grande mistério refugiado naquele momento. Tão simples e perfeito.


quarta-feira, novembro 15, 2023

Capítulo perdido

Noutro dia, enquanto vasculhava uns ficheiros antigos, encontrei os primeiros capítulos de uma história que comecei a escrever há uns 25 anos, mais ou menos (sei que naquela altura ainda não se usavam telemóveis. As pessoas comuns pelo menos). 

Infelizmente, por preguiça, talvez, não lhe dei continuidade. Contudo gostei de recordar estas primeiras ideias concretas, passadas para o papel. Decidi partilhar o primeiro capítulo aqui, visto também ainda não existirem blogs. 

Não alterei o texto e deixei tal como escrevi. Pessoalmente acho estranhamento bom para a idade e principalmente falta de experiência. 

Quem quiser passar algum tempo a ler, pode dar a sua opinião. Aqui fica:

Vejo agora o caixão a descer à terra. Bem para o fundo, onde ficará esquecido. Lá dentro o corpo morto do meu pai. Mas ao contrário do seu corpo, as suas lembranças que eu julgava há muito esquecidas e enterradas, vêm agora ao de cima, criando em mim um sentimento desagradável. Não sei se são remorsos ou se são pena. Pena de não ter sido de outra maneira. A minha mãe morreu quando eu ainda era pequeno. O meu pai sempre me tentou proteger. Tentou fazer os dois papeis de mãe e de pai. Por isso era duro para mim. Por isso também eu vivia em conflito com ele. Mas agora é tarde. Tarde para remediar o que está feito. Enquanto o caixão desce à terra as lembranças continuam a vir ao de cima atormentando-me. Mas porque é que eu me estou a sentir assim? Desde cedo lhe declarei guerra. Aquela guerra que os adolescentes declaram aos pais. Ele nunca me tentou compreender. Nunca me deu a liberdade que eu queria. Por isso quando cheguei à idade adulta sai de casa, ignorando totalmente os conselhos dele. Deixando-o numa grande solidão. A culpa foi dele. Ele nunca tentou compreender-me. Mas agora me apercebo que eu também não o tentei compreender a ele. Mas agora já é tarde. O caixão já está no fundo e começa agora a ser coberto por terra. Já é tarde para ter uma conversa com ele. Por um momento quase me deu vontade de chorar, como as minhas tias. Por que é que elas choram assim? Afinal também o deixaram sozinho. Também devem estar com remorsos. Mas eu não vou chorar. Afinal ele era meu inimigo. Desde cedo lhe declarei guerra, e ninguém chora a morte de um inimigo. Por isso mantenho a minha postura rígida e inabalável. Estão agora a tapar a cova. Quero sair dali mas ainda tenho de aturar os abraços das minhas tias. Grandes chatas. Choram tanto. Porquê? 

- Estás bem? 

- Sim estou. - A pergunta da Joana quebrou os meus pensamentos de raiva. Tinha de sair dali rápido. 

- Vamos embora daqui. 

- Já? Tens a certeza? 

- Sim. Ainda quero passar por casa do meu pai e chegar à cidade cedo. – A Joana era minha namorada. Nunca lhe tinha falado muito acerca do meu pai, embora estivéssemos praticamente noivos e eu partilhasse todos os meus segredos com ela, esse era um aspecto da minha vida que ignorava. Provavelmente já se tinha apercebido que o meu relacionamento com ele não era dos melhores, mas não imaginava que isto pudesse acontecer e me fosse deixar tão abalado. Procurava não mostrar qualquer tipo de sentimento mas ela sabia que naquele momento, eu estava a lutar com os meus fantasmas. Com certeza queria falar comigo fazer com que desabafasse com ela, queria evitar isso a todo custo. – Vamos.  

Entramos no meu carro, ainda tinha de passar pela casa do meu pai, a casa da minha infância que agora era minha. Ele vivia numa vila calma, afastada da cidade. Grande parte da minha família vivia ali. Eu tinha nascido, tinha crescido ali, mas contam-se pelos dedos as vezes que lá voltei depois que vim para a cidade estudar. Acabei o curso, arranjei um emprego e sem saber como passaram-se seis anos. Seis anos que devem ter sido de terrível solidão para o meu pai. Lá estão eles outra vez, os sentimentos de culpa. Agora já é tarde, mas não os consigo afastar. Vou calado enquanto conduzo pelas ruas da vila. A Joana também vai calada, ainda bem. E eis que lá está ela, a casa do meu pai. Mais um fantasma que tinha de enfrentar. Era uma vivenda grande de dois andares, qualquer habitante da cidade a acharia fantástica para passar as férias e o fim de semana, mas a mim só me trazia más recordações.  

- É aqui? – Pergunta a Joana com ar admirado. Aquele ar de pessoa nascida na cidade. 

- Sim. – Respondo com ar de quem não quer muitas perguntas. 

É espantoso como nada tinha mudado desde que eu sai dali. Era uma casa tão grande. Não sei o que irei fazer com ela. Vende-la? Deve ser a melhor solução. Mas também não a queria vender a qualquer um, talvez alguém de família a queira comprar. A Joana continua admirada. Provavelmente acha estranho eu não lhe ter dito que o sitio onde cresci era assim. Logo a ela que achava a vida na cidade tão acelerada. Pela cara dela, até aposto que era capaz de se mudar para aqui. É melhor ver-me livre da casa enquanto é tempo, senão depois de ficarmos noivos ainda me convence a ficar com ela, para passarmos os fins de semana e coisas do género.  

- Que casa fantástica! 

- Sim. É uma boa casa. – É obvio que ela está ansiosa por entrar. Por explorar todos os recantos. De certeza que vai fazer tudo ao seu alcance para me impedir de a vender. 

Ao abrir a porta senti logo aquele seu cheiro característico, que me trás de volta sentimentos amargos. Continuava tudo inquietamente na mesma. 

- Bem. Não me vens mostrar o sitio onde cresceste.  

- Porque não vais tu sozinha. Eu sei que gostas de explorar. Eu quero ficar só por uns momentos. Depois vou ter contigo. 

- De certeza que posso? 

Fiz-lhe um sinal afirmativo com a cabeça e logo ela subiu as escadas para explorar o 1º andar. Estava agora sozinho na sala de estar. Estava tudo na mesma. Exactamente como me lembrava desde a mais tenra infância. Os sofás, as paredes, as pinturas, a mesa, a lareira e por cima a espada que a adornava. Incrível. A espada do meu pai. Desde sempre que ali esteve, por cima da lareira. Guardada como se fosse um objecto sagrado. Gostava de saber a sua história, acho que nunca a vou saber. Sempre achei aquela espada fantástica, sempre me senti atraído por ela. Mas por alguma razão que desconheço o meu pai nunca me deixou tocar-lhe. Lembro-me que várias vezes em criança a ia buscar, ou para brincar, ou para mostrar aos meus amigos, ou simplesmente para apreciar a sua beleza. Sempre que o meu pai descobria que tinha pegado nela era uma bronca dos diabos. Cheguei a apanhar várias tareias por causa disso. Ele nem gostava que eu olhasse para a ela. Não sei qual era a sua obsessão pela espada mesmo que valesse uma fortuna, não havia razão para agir daquela maneira. Mas agora ele não estava ali. Estava morto. Já não me podia dizer nada. Por isso vou pegar-lhe. Sem hesitar peguei-lhe, já não me parecia tão pesada como em criança. Agora já era adulto e tinha força suficiente para a manejar. Lentamente comecei a tirá-la para fora da bainha, era realmente bela. Mais bela e fascinante do que me lembrava. Já devia de ser bastante antiga, dois ou três séculos talvez? Mas continua bela e afiada, devia valer uma pequena fortuna. Gostava de saber a sua história. Quem sabe pertenceu a um cavaleiro? Quem sabe quantas pessoas já matou? Em quantas guerras já participou? Quem sabe se pertenceu a um rei? Quem sabe? São só fantasias. Já pareço outra vez criança, a olhar para aquela fantástica espada por cima da lareira e a imaginar. Possivelmente nem era tão antiga quanto eu pensava. Mas não deixava de estar fascinado, ali, com aquela fantástica espada na minha mão. Engraçado, desde que lhe peguei, todos os sentimentos de culpa que me atormentavam desapareceram. De repente fui invadido por uma felicidade quase insana. Não sei de onde é que ela veio. Mas sentia-me bem. Sentia-me agora poderoso, invencível, com aquela espada na mão. Sentia-me capaz de dominar o mundo. Foi então, que, num acto, quase sem pensar, ergui a espada no ar com as duas mãos. Nesse momento todos os meus sentimentos de raiva, ódio e culpa vieram juntar-se ao sentimento de euforia que estava a sentir. Nesse momento, enlouqueci! Então com toda a minha força, dei um golpe na mesa. Esta ficou dividida em dois. A lâmina da espada atravessou a madeira como manteiga no Verão. E eu, sentia-me bem, tão bem! 

- Jorge?! Que se passa? Que barulho foi esse? – O meu momento de felicidade foi interrompido bruscamente. A Joana, atraída pelo som da mesa a partir desceu as escadas completamente apavorada. – Meu deus! Que fizeste? – Eu fiquei parado, a olhar para a cara assustada dela. Quase me deu vontade de rir, tentando adivinhar os seus pensamentos. Ao ver-me ali, com uma espada na mão, depois de ter cortado uma mesa a meio com um só golpe. Sempre me conheceu como sendo uma pessoa calma. E agora ao ver-me ali naquela figura. Possivelmente pensa que a vou atacar a seguir. 

- Tem calma. Não se passa nada. 

- Tenho calma! Tenho calma, dizes tu?! Para é que fizeste isso? E essa espada? Onde é que arranjaste essa espada? – Coitada. Estava completamente apavorada. Mas não sei o que a assustava mais? Se a minha acção? Se a minha aparente descontracção? 

- Sim, tem calma. Estou só a despejar a minha raiva.  

- A despejar a tua raiva?! Partiste a mesa a meio! A espada. Dá-me a espada, antes que faças mais alguma tolice. – A cara dela estava fantástica. Quase que não conseguia conter o riso, ao vê-la assim, tão assustada. 

- Acalma-te. – Voltei a embainhar a espada e dirigi-me a ela. Abracei-a e dei-lhe um beijo na testa. Todo o seu corpo tremia. Coitada. Não consegui deixar de esboçar um sorriso. - Acalma-te. Agi sem pensar. Desculpa. Não queria assustar-te. – Depois das minhas palavras e da minha manifestação de afecto, ela acalmou-se um pouco. 

- Pregaste-me um susto tão grande. Olha, eu sei que isto tudo está a ser difícil para ti. Eu compreendo-te. Podes falar comigo se quiseres. Vai fazer-te bem. Porque fizeste isso? – Sim, estava agora mais calma. Abraçou-se também a mim. 

- Olha. Esta era a espada do meu pai. – Dei-lhe a espada, para ela ver. Um pouco a medo pegou-lhe e lentamente começou a desembainha-la. - Não tenhas medo, toca-lhe. Vê como é bela. Quando era pequeno, o meu pai não me deixava tocar-lhe. Agora, quando a vi… Vieram-me ao de cima algumas recordações. Agi sem pensar. Foi uma idiotice. Desculpas me?  

- Desculpo. Claro que desculpo. Mas que foi uma idiotice, foi. – Aquela cara de susto já lhe tinha passado. Olhava agora, também fascinada, a espada. – Esta espada era do teu pai? É muito bonita. E também deve ser bastante antiga. 

- Sim. Deve ser. Mas o meu pai nunca me contou nada acerca dela. A única coisa que sei, é que ele não me deixava tocar-lhe.  

- É compreensível. Esta espada é fantástica. Deve valer bastante dinheiro. E além disso, é perigoso para uma criança tocar numa coisa destas. Vê só como é afiada. 

De facto. Depois de um golpe daqueles, a lâmina continuava extremamente afiada, como uma espada nova. Aliás toda ela brilhava, como se tivesse acabado de ser construída. Era realmente muito bela. Era uma espada digna de um rei. Digna mesmo de um deus. De um deus da guerra. 

- Vamo-nos embora. Voltas cá noutro dia. Esta casa traz-te recordações amargas. E hoje não me parece que estejas preparado para lidar com elas. 

- Sim, vamos. - A Joana tinha razão. Era melhor ir-me embora. Mas a espada vai comigo. 

- Que fazes? Não me digas que levas a espada contigo? Não achas melhor deixá-la ai. 

- Não. Vou levá-la comigo. Agora é minha. – A Joana achou aquilo estranho, mas não me disse mais nada. 

A viagem até à cidade correu normalmente. Passamos quase todo o tempo calados, fingindo esquecer o sucedido. Mas eu notava na Joana ainda uma certa inquietação. Já eram umas 11 horas da noite quando chegamos a casa dela. 

- Ficas bem? – Pergunta-me. – Não queres que fique contigo? 

- Não te preocupes. Eu fico bem. Vai tu para casa. Os teus pais já devem estar preocupados. 

- Está certo. Mas se precisares de alguma coisa, se precisares de falar, não hesites. Telefona-me. E outra coisa, tem cuidado com a espada. Não mates ninguém pelo caminho. – Disse ela. Tentando mostrar que o incidente em casa do meu pai não a tinha afectado. Mas a espada veio todo o caminho no banco de trás do carro, a lembrar-lhe o sucedido . Por certo vai ter dificuldades em dormir hoje à noite. 

Prossigo a viagem em direcção a minha casa. Não consigo deixar de pensar no dia de hoje. Como começou. Com todos aqueles sentimentos amargos a atormentar-me. Como me senti quando segurei a espada, completamente louco. E como me sinto agora. Como se nada de especial tivesse acontecido. Ainda bem. Se continuasse a sentir remorsos, acho não iria conseguir dormir à noite. Mas não consigo de deixar de achar estranho. Mudar de sentimentos assim tão rápido. Nem parece meu. 

Passo agora por uma rua morta. Ainda não é muito tarde, mas já não se vê ninguém. Nunca tinha reparado como a cidade parece tão calma à noite. Está tudo tão sossegado! Mas no meio da calmaria, algo me chama a atenção. Três indevidos com cara de poucos amigos, rodeiam uma rapariga que parece estar muito assustada. O local não estava muito iluminado, o que o tornava perfeito para um assalto. - Vejam só a minha sorte. No meio da calmaria, fui deparar com um assalto. – As luzes do meu carro assustaram os bandidos. Certamente pensavam estar sozinhos. Porém este facto não os fez desistir. Continuaram a cercar a rapariga, certamente convencidos que eu ia seguir o meu caminho, fingindo não ter visto nada. O que é que eu vou fazer? A rapariga olhava para mim com esperança que a ajudasse. Os bandidos continuavam empenhados. O que é que eu vou fazer? Se eu sair do carro para a ajudar, eles podem estar armados. Além disso são três. O que podia eu fazer contra eles. O melhor é seguir o meu caminho e esquecer. Não. Não posso fazer isso. Não me posso acobardar dessa maneira. Parei o carro e apaguei as luzes. Os bandidos olhavam agora para mim, mas continuavam no mesmo sitio. Peguei na espada, segurando-a atrás das costas, e sai do carro. Não havia luz suficiente na rua para me poderem ver em condições. Com a espada sinto-me protegido. 

- Hei? O que é que se passa aqui? Estes homens estão a importuna-la, senhora? – Perguntei. Foi o acto mais corajoso que tinha feito, até hoje. 

- Por favor. Ajude-me. – Pediu-me a rapariga, apavorada. 

- Hê pá. Vai-te embora se não queres morrer hoje. – Disse um dos bandidos puxando por uma navalha, dando uma risada. – Mata-o. – Diz outro. 

- Por favor. Ajude-me. – Voltou a pedir a rapariga. 

Nesse momento, o bandido que empunhava a navalha, saltou sobre mim. Então novamente num acto sem pensar, desembainhei a espada. E sem o mínimo de piedade desfrutei um golpe no homem. Um golpe tão violento, que lhe abriu o peito e lhe cortou a mão, tudo de uma só vez. O que fez jorrar sangue, como se fosse uma fonte. Um dos companheiros veio em seu socorro, não se mostrando impressionado. Com a ponta da lâmina fiz-lhe um golpe nos olhos.  

- Os meus olhos! Os meus olhos! Estou cego! Não vejo nada! – Gritou em agonia. Levando as mãos às vistas todas ensanguentadas, caindo de joelhos. 

- Estás cego? Compra um cão. – Respondi-lhe. E num acto completamente sádico, sem mostrar um único sentimento. Enterrei-lhe a espada na cabeça. Jorrando novamente um rio de sangue. 

O terceiro tentou fugir. Mas tropeçou e caiu no chão, de barriga para baixo. Espetei-lhe várias vezes a espada nas costas. Foi o que teve a morte mais clemente. Ao acabar de executar os bandidos, olhei para a rapariga. Estava perplexa com o acontecido. Sorri-lhe e perguntei. – Está bem? – Ela olhou para mim, ainda tentou dizer qualquer coisa. Mas fugiu, assustada. Vejam só! Fugiu! Acabei de a salvar. E é assim que me agradece. Então reparei nos corpos mortos e mutilados dos bandidos. E no sangue que escorria da lâmina da espada. E na enorme poça, na calçada. Parecia um rio. Fantástico. Nunca tinha visto tanto sangue na minha vida. Só então ai me apercebi verdadeiramente do que tinha feito. Tinha acabado de matar três homens, de uma maneira tão violenta, que ainda me custa a acreditar que o tivesse feito. Não admira que a rapariga fugisse. Depois de ver tanta carnificina. Meu Deus! O que é que eu vou fazer? Vou ser preso e acabar os meus dias na prisão. Não. Não. Não pode ser. Ao ver aquele cenário de morte e pior, ao saber que fui eu que o provoquei, começou-me a dar vómitos. Tinha de sair dali. Meti-me no carro e arranquei. Só pensava em chegar a casa, limpar completamente o sangue da espada e tentar esquecer. Se isso fosse possível. 


quarta-feira, novembro 08, 2023

Cântico sem destino

Ai de mim, coitado,

Que nasci em corpo de gente,

Sem saber ao que estava fadado.

Depois do meu destino traçado,

Lançaram-me em frente, 

Ao encontro do futuro guardado.

Indiferente a qualquer cuidado,

Firme como um crente,

Segui entusiasmado.

Julguei não poder ser travado.

Era tão inocente,

Quando descobri estar enganado.

A verdade tornou-me atormentado.

Tudo ficou diferente.

Fui maltratado.

Por ter fantasia, fui intimidado.

Conheci a maldade oprimente.

O terror de ser injuriado.

Regras a fazer-me acobardado.

Derrotaram-me assim, impunemente.

Fiquei acomodado.

Esquecido em algum lado.

Deixei-me esvanecer lentamente.

Mas alguém contou-me algo vedado.

Falou de rebeldia e ser ousado.

Escutei atentamente.

Ensinou-me a ser malmandado.

A voz não disse nada errado.

Ouvi rebeldemente.

Tornei-me despertado.

Sem medo de ser arriscado.

Revelei-me ousadamente.

Estava danado,

Contra quem era incontestado,

Desobedeci violentamente.

Já não estava domado,

Muito menos acorrentado.

Contra quem me queria desistente,

Enfrentei o mundo inconformado,

Com a raiva do meu lado,

Combati ferozmente.

Já não estava derrotado.

Mas o mundo é gigante.

Uma luta constante.

Há sempre um caminho errado.

Dei por mim errante.

Numa busca desgastante,

Por um local encantado.

Segui por diante.

Perdido e distante,

Pelo meu rumo desnorteado.

Com pouco de contente,

Sigo a minha história inquietante.

Talvez um dia me sinta afortunado.

Ai de mim que nasci gente...


sábado, novembro 04, 2023

Os Poetas têm cada ideia!


Um porco grunhia ao longe.

Parece que estava vento.

O tempo,

passava rápido no relógio parado.

E nada,

apenas nada,

fazia nascer tudo no gemer das vozes famintas.

São rosas senhor,

são rosas...

Abertas no regaço.

Alguém comeu o pão todo.

E o diabo dos Poetas,

sacanas,

andam todos com o fogareiro aceso!

Cobardes.

Sem coragem de dizer diretamente,

aquilo que querem realmente:

Justamente pinar!

Fazem preliminares com palavras.

Faz de conta que a intenção é rimar.

E já agora,

se quiseres terminar o verso com estilo,

podes acrescentar o verbo amar!


Nota: ironia a certo tipo de poesia. (ou não)


segunda-feira, julho 31, 2023

É amanhã dia 1 de Agosto...

Eu sei que tenho andado demasiado preguiçoso para criar qualquer coisa que se leia. Mas isto, ou se escreve qualquer coisa que mereça ser lida, ou então mais vale estar quieto. É o que tenho feito. 

Não tenho dúvidas que daqui por algum tempo a criatividade volta, até lá, olha... Este espaço faz anos no dia 1 de Agosto e eu gosto de recordar a data. É um cantinho perdido na internet, mas é meu. Não é um livro, nem sequer me atrevo a dizer que tenho qualidade para me dizer escritor. Contudo as palavras saem e lá vou deixando o resultado aqui. Nem sei se isto ainda tem visitantes! 

Já aprimorei a minha escrita ao longo destes anos. Está melhor, mas ainda não encontrei o meu estilo. Este próprio texto, podia estar melhor escrito. Não faz mal, é como se estivesse a falar contigo num café a beber um copo. É assim que gosto de imaginar os leitores que se dão ao trabalho de ler aquilo que escrevo. Alguém que encontro num café e com quem troco umas quantas palavras sobre a vida, a fantasia e outras coisas que habitam o nosso pensamento. 

Talvez seja um narrador de sentimentos, ou um contador de inutilidades, seja como for, é para isso que este blog serve: dar guarida a coisas escritas sem um objetivo concreto. 

Portanto, é mais um aniversário deste 'mundo diferente' que assinalo. Parabéns a mim e às coisas que por aqui estão escritas!



segunda-feira, maio 29, 2023

No mundo


Em frente

Está a estrada que nunca percorri

O mundo que nunca explorei

Mulheres que nunca amei

Aventuras que nunca vivi


Em mim

Estão as lições que aprendi

As vezes que desanimei

Fraquezas que nunca superei

Todos os erros que cometi


Nos outros

Estão ideias que nunca entendi

Segredos que não desvendei

Mentiras que nunca perdoei

Histórias que nunca compreendi 


Aqui

Interrogo caminhos que nunca segui

Morrem os sonhos que não realizei

Sobram as mágoas que guardei

Doem as falhas que nunca admiti


No pensamento

Tenho palavras que nunca proferi

Mundos que nunca mostrei

Tudo o que um dia esperei

Narrativas que nunca escrevi


Cá dentro

Vivem sentimentos que nunca exprimi

Inseguranças que nunca enfrentei

Soltam-se lágrimas que nunca enxuguei

Gritam as limitações que sempre sofri


Cá fora

Procuro a felicidade que nunca sorri

Possibilidades que nunca tentei

Desejos que nunca partilhei

Todo o alento que ainda não senti



quinta-feira, maio 25, 2023

O puto


O estupor do puto não se cala dentro de mim!

Está zangado, com os outros; a escola; a família; o mundo. Ninguém o compreende. Farto dos grandes a ralharem com ele sem dizerem porquê. Quer brincar, não pode! Quer falar, não sabe! Quer sonhar, não deve! Grunhem eles a apontar o dedo.

Porquê? Porque sim, ou porque não. Porque simplesmente são eles a mandar e a criança só tem de obedecer. A curiosidade infantil não tem direito a uma explicação satisfatória sobre essa coisa de ser adulto.

Sem orientação, o pirralho não obedece. Não nasceu ensinado. Depois chamam-lhe mau. Traquina. Ordinário. Repetem-se os ralhetes, sem nunca virem acompanhados da tão esperada justificação. Surgiu, então, uma raiva rebelde, aos poucos, dentro do coração ingénuo.

O mundo, assim, parece frio, cinzento e sem alma. É tudo uma confusão enorme aos olhos do pequenote. Não lhe dão espaço para imaginar. Ele quer divertir-se. Inventar universos minúsculos feitos de grandiosidade e alegria. Qual é o mal?

O menino já não é um bebé. Cresceu e está furioso. Sempre a resmungar. Agora, eu tenho de o aturar. Lá vou tentando descobrir soluções para as perguntas que nunca lhe responderam. Contudo, só lhe posso dizer: o caminho para a maturidade é uma merda!

Não chega! As coisas têm de ser ditas no momento certo. A semente tem de ser plantada na altura correta para poder germinar em condições. Agora, talvez seja muito tarde. O solo da serenidade está cheio de ervas daninhas.

Eu bem o deixo divertir-se, sem rédeas, nem raspanetes. Mas ele há coisas sem o mesmo sabor depois de passar a meninice. Já não vai a tempo de compensar. Continua descontente. Confuso. À procura dum rumo.

O estupor do puto afinal ainda não cresceu. Está sempre a refilar. E eu, aqui, a ouvi-lo sem poder fazer nada, por mal dos meus pecados. A maioridade não trouxe a sabedoria que era suposto. Só ainda mais dúvidas.

Com tudo isto, só me resta uma alternativa. Ter de me aturar! Aqui, dentro de mim!


domingo, maio 14, 2023

Um encontro ao qual possa chamar Paz


Se estiver por aí uma Divindade benevolente a escutar-me, rogo-lhe que me envie uma figura Salvadora!

No meio do tumulto deste mundo caótico, olho em volta à procura de uma centelha de esperança. A minha jornada é solitária. Os meus caminhos são tortuosos. Estradas obscuras, com sombras a dançar à minha volta. Cada rumo que encontro tem como destino a desilusão.

Nasci pária. Desprezado pelos meus supostos iguais. Colocado à parte. Repreendido por existir. Malfadado por ter a curiosidade dos Poetas, privado de autorização para poder rimar como devia. Sem saber mais nada de mim, pergunto-me se o propósito da minha criação tenha sido só esse?

As minhas preces rasgam o silêncio da noite. Fazem um eco gutural nas divisões vazias da minha inquietação. Procuro no infinito uma resposta divina capaz de apoiar o meu desamparo. Tento acreditar na existência de um ser celestial. Uma entidade clemente a zelar por quem está perdido nas encruzilhadas da realidade.

Imploro por uma mão condutora. Algo ou alguém conhecedor deste mapa bizarro chamado viver. Anseio por um pouco de compaixão. Palavras, como melodias alegres. Braços estendidos como refúgio deste desalento crescente. Um encontro ao qual possa chamar Paz.

O meu desejo teima em encontrar essa personagem magnânima, envolta numa aura de benevolência, capaz de restaurar a minha fé. Seja com a ternura de uma mãe a embalar o filho nos braços; com a sabedoria de um mestre; com a força de um herói a lutar por Justiça. Tanto faz!

Seja qual for a sua forma, traga salvação. Talvez um amigo fiel sem medo das adversidades. Ou, quem sabe, um amor verdadeiro com a capacidade de me fazer acreditar ser mesmo possível existir felicidade. Até pode ser um néscio, dotado de ignorância, mas, sabe-se lá como, capaz de se orientar no labirinto da dor. Venha quem vier!

Teimo em manter a esperança nesta suplica. Acreditar que o destino ainda tem algo valioso reservado para mim. Espero o momento, quando, por ventura, essa tal figura salvadora vier ao meu encontro. Mesmo, sendo uma ilusão como tantas outras. Aguardo, poder descobrir nela, quem sabe, alguma serenidade.


terça-feira, maio 09, 2023

Flatulência matinal


No alvorecer de uma manhã serena,

Quando a aurora beija o céu com delicadeza,

E a natureza desperta com toda a sua beleza,

Um fenômeno surge, uma sinfonia amena.


Ecoa pelo quarto um som inusitado,

Sai a flatulência matinal, num soltar gasoso,

Um ruído engraçado, subtil e airoso,

Acorda o silêncio com o seu som desavergonhado.


Nasce do vento que sai sem aviso,

Um suspiro musical, engraçado e fugaz,

Faz-nos sorrir, na sua falta de pudor mordaz,

Eleva o humor num instante impreciso.


Ah, flatulência matinal, és fonte de riso,

Peculiaridade do corpo, sem disfarce ou máscara,

E mesmo que pareça um tema de pouca graça,

És uma lembrança de que soltar é preciso.


Assim, despertemos com bom humor e leveza,

Aceitar os sinais do corpo com simpatia,

A flatulência matinal, na sua singela melodia,

Lembra-nos da nossa humanidade, e da sua natureza.


Costumo brincar com o chatgtp e pedir para fazer poemas ou textos sobre temas inusitados. 99% das vezes saem coisas até interessantes, mas muito longe da criatividade humana. Quando lhe pedi para fazer um poema sobre 'flatulência matinal', escreveu este que publiquei. Ou melhor, uma outra versão onde fiz pequenos ajustes para o meu tipo de escrita e rima. Nada que tirasse a essência do poema original. 
Mesmo sem ser completamente da minha autoria, decidi publicar, já que achei imensa piada ao rimar do chatgpt. Principalmente com este tema!

segunda-feira, abril 10, 2023

Sem destino nenhum

– Ainda não deixaste de fumar?

– Tem calma, depois deste desisto. – Deu uma passa longa e logo a seguir atirou o cigarro fora juntamente com a caixa vazia. – É hoje que fugimos?

– Ó sim. – Anuiu confiante. – Vem comigo. – Caminharam até uma carrinha estilo furgão, antiga. Talvez fosse dos anos oitenta ou até anterior. Entre a descoloração e algumas amolgadelas meio reparadas, nem dava para perceber a marca, quanto mais o ano.

– O que é isto?

– O nosso meio de transporte.

– Esta coisa anda sem se desfazer aos bocados?

– Podes ter a certeza disso. Aliás, eu, pessoalmente tratei de verificar a estrutura e o motor. Podemos dar a volta ao mundo e não nos vai deixar mal.

– Se tu o dizes, eu acredito em ti.

– Temos tudo que precisamos. – Abriu a porta traseira e mostrou. Revelou um interior generosamente grande. Lá dentro estava apenas um colchão insuflável.

– Parece uma casa acolhedora. – Admirou toda a área vazia. – Teto não nos vai faltar. 

– Não podíamos dormir à chuva.

– O que fizeste às tuas tralhas?

– Vendi. – Riu-se. – Temos de ter dinheiro para comer.

– Também fiz o mesmo. Parece que estamos ricos. Temos a barriga cheia sempre garantida.

– Vamos. – Entraram.

– Onde foste desencantar esta coisa? É enorme. Mais parece um camião americano. – Deitou-se no assento. – Consegues conduzi-la pelo menos?

– Eu conduzo qualquer coisa. Até uma nave espacial se for preciso. – Brincou.

– Que temos aqui? – A sua atenção virou-se para um rádio antigo de cassetes. – Isto traz-me recordações. Ainda funciona?

– Nem duvides. Não só funciona como traz uma colecção de músicas para a gente ouvir. – Abriu o porta-luvas e caíram dezenas de cassetes antigas. Sem dúvida, não eram utilizadas há mais de duas décadas, pelo menos.

– Ui tantas! – Verificou algumas com curiosidade. – Tens a certeza que isto toca mesmo?

– Coloca uma. Não há como experimentar.

– Tens razão. – Segurava uma caixa na mão. Abriu-a, retirou a cassete e colocou na ranhura. Já não se lembrava bem como se usava uma coisa daquelas. Não era difícil. Ao carregar no play começou a tocar "125 azul" dos Trovante.

– Nem de propósito. Excelente banda sonora. – Ligou o motor da carrinha velha sem qualquer dificuldade. – Eu disse que o motor estava bom. – Sorriu.

– Vamos mesmo fazer isto? – Tocou-lhe na mão e devolveu o sorriso.

– Sim. Hoje vamos 'arrancar sem destino nenhum'.


domingo, abril 02, 2023

Que as mulheres não me interpretem mal...


As mulheres que amei quando era jovem estão todas velhas!

Não me refiro àquela velhice decrepita, cheia de rugas profundas e deformações corporais. Nada disso. A beleza física mantém-se, mesmo a rasar a meia idade. Silhuetas firmes bem delineadas, a servir de guarida a uma pele macia e bem cuidada. Aparência irrepreensível, como se quer numa mulher moderna e dona de si. Nada contra, pelo contrário.

Falo da vulgaridade do dia-a-dia. O espírito de aventura foi trocado pelo zelo do lar. As corridas na natureza substituídas pelo exercício no ginásio da moda. As conversas flutuam entre o preço das compras, as mazelas que vão aparecendo aqui e ali, ou o enredo da novela. Tudo nelas gira em torno de rotinas mundanas. Nada mais, só isso. São de uma banalidade violenta, chata, enfadonha, deixando-as completamente desinteressantes.

Olho-me ao espelho e reflicto. Talvez o meu género masculino não tenha deixado crescer o petiz dentro de mim. Uma criança endiabrada a fugir das responsabilidades adultas. Também as tenho, mas não sou dominado por elas. Se calhar o erro está em mim, ou não. Abomino a ideia de seguir o caminho que a maioria segue. Eu amo o infinito. As incógnitas escondidas do Universo. Preciso de inquietude para saber quem sou.

A mudança é inevitável. O tempo traz consigo as escolhas que nos transformam. Cada um de nós percorre um caminho diferente. O que para mim é tédio, para os outros pode ser infinitamente gratificante. Olho para os homens com quem elas decidiram partilhar a vida, no conforto da família. É possível terem encontrado um equilíbrio. Ou simplesmente encontraram uma satisfação acolhedora.

Dou por mim a fazer comparações. Sem julgamentos. Apenas uma certa necessidade de compreender o crescimento humano. Sou diferente deles, com certeza. Na minha natureza observadora não deixo de sentir simpatia por quem faz o que é suposto fazer. A sociedade tradicional assim manda. Afinal de contas somos bichos e até os animais se confortam entre si. Ainda bem que assim é.

Deixo o meu enigma para depois. Tenho outros amores à minha espera. Seja nas palavras que escrevo, nas cores da natureza, na arte que consumo, ou nos corpos de outras mulheres que me cativam com o seu próprio mundo. Ofereço-lhes também um pouco do meu, nestes encontros de quem não tem amarras. Cada um leva um pouco do outro. Talvez seja outra forma de criar pontes. De viajar. Ou até mesmo de crescer.

Ironicamente, ao ler o texto do início, não me parece assim tão original. Já houve alguém que escreveu sobre isto e chegou a conclusões semelhantes. Paciência. É sinal que não estou assim tão à parte. Mas não devemos ser muitos. Uns nas ciências, outros das letras, todos com as suas utopias. Deduzo ser algo natural, haver quem se ocupe dos mistérios da existência. Mesmo sendo inútil fazê-lo.


sábado, fevereiro 25, 2023

O Pianista


Já repararam como o acto de chorar pode representar vários sentimentos? Para os bebés é uma forma de chamar a atenção, já para os adultos pode ser: dor; angústia; desgosto; alívio; alegria; emoção... Calhou a este último ser o responsável pelas lágrimas de uma plateia inteira. Tomados pela comoção, cada um dos espectadores, expressou-se com gotículas salgadas a escorrerem pelo rosto. Isto antes de se conseguirem levantar para uma monumental e demorada ovação de pé. 

No palco, o pianista tentava agradecer por toda a aclamação, com uma linguagem corporal tímida. Parecia até, estar a pedir desculpa por existir a toda aquela gente. Após longos minutos, lá conseguiu convencer os espectadores a parar com as palmas. Contudo, passados poucos segundos, começaram todos a gritar em uníssono «MAIS»! 

O pianista, no alto do seu apogeu, declinou. Tentava acalmar a assistência sem sucesso. A sua cabeça rodava em negação. A plateia não se contentava com aquela resposta e insistiam «MAIS»! «MAIS»! «MAIS»! 

«NÃO»! A voz do pianista ecoou por toda a sala de espetáculos. Soltou um grito visceral, uma ordem imperativa saída diretamente da alma. Calaram-se todas as vozes insistentes. Ficou apenas o silêncio. 

«A peça não está completa, muito menos é da minha autoria. Eu não mereço os vossos elogios». Desabafou o pianista, perante os rostos surpreendidos que o encaravam atónitos. 

«Ouvi os primeiros acordes num sonho, quando era criança. Ficaram entranhados na memória. Eram uma presença constante em tudo o que eu fazia. Aquela harmonia não me abandonava, estava constantemente a ouvi-la na minha mente, por isso, decidi aprender música». Explicou o pianista. 

«Depois, enquanto crescia, sabia que tinha de encontrar o resto da melodia. Comecei então a procurar nos pequenos pormenores da vida. Aos poucos descobri o segredo. Certas cores transformavam-se em notas musicais. Algumas paisagens convertiam-se em pequenos trechos, assim como os beijos no calor da adolescência». 

O pianista projectava a sua voz intensa por todo o teatro. Chegava a todos sem qualquer auxílio de equipamento sonoro. «Aprendi mais tarde o nome do fenómeno; chama-se sinestesia. Acontece quando o cérebro interpreta algo com um sentido trocado, no meu caso imagens, sabores, toques, são interpretados como música. Em cada acorde, em cada pequeno trecho descoberto, eu acrescentava à partitura. Aos poucos, foi ficando mais completa até se transformar naquilo que toquei para vocês hoje». 

O público escutava a explicação com curiosidade. Certamente acreditavam que a genialidade daquele pianista estava acompanhada por uma dose generosa de loucura. Talvez não estivessem a enganados. 

O músico, calou-se de forma abrupta. Ficou quieto e encarou-os durante alguns momentos. Logo a seguir correu para o piano. Pegou nos papéis da partitura e acrescentou mais umas quantas notas. «Vocês querem mais? Então eu dou-vos mais»! 

Acomodou-se na sua pose concentrada, sentiu as teclas e tocou durante cerca de trinta segundos. Isto, se fossem contados pelo relógio. Já para a plateia, o tempo estendeu-se. Cada nota parecia uma viagem e aquele meio minuto transformou-se num universo inteiro. 

«Gostaram»? O pianista voltou até à borda do palco. «Esta parte escrevi com as vossas lágrimas. Mais um pequeno acrescento à obra completa. Mas como disse, eu não posso receber o mérito da sua autoria». 

Começou a andar de um lado para o outro. «Esta composição, é da autoria do próprio Criador. É a música da vida! Talvez contenha até o segredo do Universo e existe em todas as coisas. Eu só me limito a tocar aquilo que consigo entender. No entanto, podem acreditar. Vai chegar o dia em que eu vou conseguir completar a melodia. Depois, tudo fará sentido». 

«Porquê»? Os rostos fixos no pianista adivinhavam a pergunta. «Porque desde o nascimento; desde a primeira estrela; desde a primeira centelha de criação; esta sinfonia está lá. Com todos os Enigmas do entendimento humano respondidos. ». Quietou-se por alguns instantes. 

«Quem sabe, tudo se resuma à consciência solitária de cada um de nós, perante a nossa própria fragilidade. Contudo, na minha opinião, não precisamos de enfrentar esta existência sozinhos. Podemos encontrar conforto e inspiração nas histórias, na arte, na sabedoria e naqueles que nos rodeiam». 

O seu discurso mais parecia uma declamação poética. As palavras surgiam-lhe na boca de forma espontânea, sem qualquer tipo de reflexão ou ensaios prévios.

«Devemos procurar a verdade, a beleza e a bondade no mundo e em nós mesmos, encontrar assim um sentido para a nossa vida e um lugar no cosmos. A nossa pequenez torna cada momento precioso e único. Então, que todos possamos vivenciar esta liberdade, amar intensamente e aprender sempre»!

Quem já teve um momento de revelação ou uma ideia grandiosa, certamente reconheceu a expressão iluminada no rosto do pianista. A mesma de quem consegue ver a ordem escondida no caos.

«Quando finalmente completar a partitura, talvez toda a nossa ignorância desapareça e algo novo nasça, gerado nos alicerces da sabedoria. A vida é, assim, um misto de descoberta, viagem e despedida. Uma melodia interpretada por todos os sentidos, como esta peça musical que partilho e componho convosco»… 

Deixou a frase a meio e olhou para o piano com uma lágrima a cair do seu próprio rosto antes de continuar. «Julguei estar a compor um requiem para um homem só, quando afinal era uma epopeia para cada um de nós»! 


quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Peixes significa poesia


No signo dos Peixes há mistérios,

Mundos submersos e mundos sérios.

Sonhadores do Zodíaco, assim são,

Voam na sensibilidade e intuição.


Amam o impossível que há no Universo,

Vivem de alma inquieta e feitio intenso,

Buscam desvendar o segredo do infinito,

Alcançar o inatingível com o espírito.


Nos seus pensamentos profundos,

Como nas águas sombrias dos abismos.

Onde o medo e a poesia se deixam levar,

Para, juntos criarem uma beleza sem par.


Mergulham nas emoções mais intensas,

Fazem dos sentimentos as suas crenças.

Encontram nas artes sua verdade,

E no amor a mais alta liberdade.