terça-feira, fevereiro 24, 2015

O crime de sonhar


Existe um ogre que vive no abismo da minha imaginação. Lá bem fundo, numa caverna fria, revestida pelos cadáveres das personagens que nunca fui.
À noite, aquela criatura grotesca esconde-se no meu adormecer para caçar as mágoas com que a vida me castiga. Faz colecção de sentimentos agrestes e lágrimas vertidas injustamente.
Durante o dia malogra os sonhos que tento realizar. Vai envenenando as minhas ideias e a minha vontade com uma cobardia amorfa, vestindo-me um colete-de-forças feito de apatia.
Esse ser imundo abomina qualquer tipo de felicidade. Um simples vislumbre de alegria, faz com que uma fúria incontrolável brote do seu coração apodrecido pela violência.
A cada iniciativa que tenho, o monstro tenta encarcerar-me acusando-me do crime de ser um sonhador. O mais hediondo dos pecados para este maldito juiz das trevas. Ameaça-me com torturas de puro sadismo caso tente declarar-me inocente.
E eu tenho medo…
Muito medo!
Um terror irracional vindo de mim mesmo faz-me temer as vergastadas que me lascam a pele do pensamento. Os instrumentos de suplício, nas mãos da inquisição da letargia, fazem-se sentir um grito aflito de tão calado que está. A minha garganta não o solta porque gritar é um acto de alívio e a agonia quer ser sentida no seu pleno.
Este carrasco infernal observa cada passo que dou e certifica-se que caminho sempre a mesma estrada. Lembra-me que devo permanecer assim porque o castigo de ousar por novos rumos é o de sofrer perpétuamente.
E eu aceito…
Limito-me a aceitar!
Embora olhe com fascínio para os céus da minha fantasia, onde, secretamente, desejo voar com asas de liberdade sobre este mundo de inércia, até encontrar novas paragens que me contem novas histórias e me renovem infinitamente.
E eu quero…
Oh se quero!

quarta-feira, fevereiro 18, 2015

A companhia (O Narrador III)


Então? Olhando para ti diria que estás prestes a desmoronar. Esses olhos contraídos a tentar segurar o choro não auguram coisa boa. Já agora, a porta não tem culpa. Podes soltar a tua raiva noutra coisa qualquer. Bater assim tão de força ainda a põe abaixo. Afinal o que se passa contigo?
Há!... Já percebi. Voltaste a cair no abraço da solidão. É fria, não é? Dá-te medo. É um sentimento tão vazio que assusta. Enche os teus sonhos de terror e as tuas noites de insónias. As lágrimas não parecem ter grandes problemas em cair nestes dias.
Ainda há pouco saíste desse abismo e já estás de volta. Tanta gente ao teu redor e tu no teu cantinho, sem que ninguém repare em ti. A pressão é insuportável. Vão-te ignorando num ciclo vicioso e quanto mais te tentas aproximar, mais te afastas.
Compreendo-te…
Agora pergunto-te: Porque é que isso acontece?
Eu sei que não me queres responder. Cá para mim, talvez nem tenhas a resposta. A única coisa que me podes dizer é que dá medo! Eu sei. Portanto vou-te dar um conselho: Aprende a usar as vantagens que a solidão te oferece.
Sim! Elas existem. Acredita em mim. Não faças essa cara de quem está ouvir um sermão repetitivo. Já tens obrigação de me conhecer e saber que falo muito a sério.
Não te estou a dizer apenas palavras bonitas que li em pequenas frases de pseudo auto-ajuda que vão proliferando pela internet. A maior parte dos idiotas que as partilha não faz a mínima ideia do seu significado. Mas eu sei. Diria mesmo que a solidão tem várias vantagens até.
E tu também sabes! Sabes sim! Não queres é admitir. Preferes ir com o medo. Esse cabrão que não te deixa raciocinar em condições. Parece que gosta de te fazer chorar. Mas eu digo-te, com autoridade até no assunto: A solidão tem algo de fascinante, ajuda-te a ver as coisas mais claramente. Traz ao de cima o teu lado mais… (como hei-de dizer) transcendente! Por isso, aconselho-te a tirares algum tempo, todos os dias, para ficares apenas na tua própria companhia. Só assim consegues observar os outros de maneira mais eficaz.
Olha que o comportamento das pessoas ensina-te muito. Sabias? Se calhar já reparaste. Não deste foi muita atenção. A tua preocupação está centrada nas regras do mundo. Que se fodam!
Sim, podes dizer a asneira à vontade. Não há qualquer tipo de problema. Afinal de contas só aqui estamos nós e eu apenas me limito a narrar a tua vida. Não vou fazer grandes julgamentos e se os fizer, pouco importam. Estás à vontade. Um impropério de vez em quando sabe mesmo bem. Ajuda a expulsar sentimentos nefastos de dentro de nós. É uma espécie de exorcismo caseiro.
Isso mesmo. Pragueja com força! Estás a ver, agora até te ris. Ainda bem.
Voltemos aquilo que se pode aprender estando só. Para começar, é suposto nós controlarmos a solidão, não o contrário. Por isso vamos observar e aprender. O mundo tem muitos segredos e acredita em mim quando te digo que dá muito jeito conhecê-los, para os usar em nosso proveito quando assim é necessário.
Viver, já de si é penoso, não há necessidade de intensificar essa sina com a insegurança na nossa humanidade. Nem apostar a nossa felicidade em regras igualmente humanas. A sociedade, ao querer fazer de ti um dos seus membros sem vontade própria, está jogar um jogo que consiste em fazer-te acreditar que és um ser único, embora tenhas de fazer tudo o que os outros fazem.
Quando te apercebes disso acordas e aprendes a jogar contra o mundo. Deixas de ser mais uma ovelha e passas a ser o lobo. Claro que essa transformação é muito dolorosa, muito para além das dores já conhecidas da nossa zona de conforto, é por isso que muita gente se acomoda. Mas a única forma de mudar é através da solidão e daquilo que ela nos pode ensinar.
Acredita, se não tiveres medo da solidão, aí sim, vais sentir verdadeira companhia.
Quando o mundo te tentar derrubar vais saber jogar as cartas certas para venceres o que é banal. Para seres verdadeiramente diferente, há que pensar fora das regras. As mesmas que te dizem que a companhia é obrigatória.
Aprende a amar a solidão como uma amante proibida, sem esquecer de a temer como um condenado teme a sentença, ainda assim ultrapassar a barreira dos seus limites para conhecer a verdadeira liberdade. Percebes, não percebes? Eu sei que sim.
E agora, depois desta conversa em que servi mais de psicólogo, do que narrador da tua vida (Sim, eu sei que a culpa é minha, mas não consigo evitar em dar-te conselhos.
Afinal de contas, não me apetece narrar monotonia!) vou-me ausentar. Embora não tarde em voltar. Quero ver o que se segue nessas tuas pequenas aventuras pelo quotidiano que tanto me fascinam. Ainda há muita coisa que tenho a contar sobre ti em pequenos detalhes de pura inquietação…

quinta-feira, fevereiro 12, 2015

Considerações


Somos todos pedaços de Deus.
O criador, talvez num desejo extravagante, decidiu experimentar observar o universo através da vivência humana, com os limites que lhes são impostos. A carne, o nascer, o morrer, a fragilidade perante a imponência do cosmos. No entanto, na nossa efémera animalidade, somos banhados com sentimentos: amamos, odiamos, emocionamo-nos, ficamos deprimidos... Uma miríade de sensações impossíveis de explicar a quem não veste a nossa pele.
Quem sabe se não foi esse factor que seduziu o Criador a ser parte de nós. Querer existir com as nossas limitações! É possível que ache toda a Sua criação mais fascinante desta maneira. Ainda que isso implique reduzir-se a um ser tão ridículo como nós e deixar um ínfimo de Sí em cada humano. Já que, saber tudo, sobre todas as coisas, se torne, talvez, um pouco entediante…
Quem sabe? Quem somos nós para compreender os Seus desígnios…
Ignorantes!
Somente isso.
Precisamos de símbolos para activar a nossa Fé. Necessitamos de deuses e seres iluminados, superiores a nós, que nos guiem. Somos tolos! Não temos a percepção de que nada mais é necessário para criarmos prodígios e alcançarmos a gnose, do que nós próprios…

quarta-feira, fevereiro 04, 2015

O acontecer


Se te escrevesse um poema, não sei ao certo o que diria. Podia retractar a beleza das tuas feições. O traço irrepreensível que desenha o teu rosto. Os teus olhos profundos, da cor do arco-íris, que hipnotizam a inquietude que há em mim. A tua silhueta feminina sublimemente delineada, como se tivesses sido moldada pela própria perfeição. A tua boca que mesmo calada me chama a provar a sua doçura.
Quem sabe falar do salto que me fazes dar entre o desejo obsceno de te tomar o corpo, numa nudez faminta inimiga do pudor e a vontade de te roubar um beijo, como um miúdo inocente, na sua primeira paixoneta, com o tocar dos nossos lábios trazer o bailado das línguas e fazer-nos voar para outros mundos onde não existem impossíveis. Apenas uma mistura de sentidos erógenos, somente reservados aos deuses e aos amantes.
Ou então simplesmente amar-te como quem ama o infinito sem que o consiga descrever, num deslumbramento tão intenso que ofusca todo o resto, calando a razão, o mundo, as leis e a lógica. Somos nós, tão básico como isso, sem necessidade de explicações racionais, equações complexas, filosofias e outras doutrinas que nada mais servem do que aborrecer. Tudo está dito quando não há nada a dizer.
Acontecemos.
Não existe necessidade de poesia quando as rimas somos nós; o cântico a nossa pele; o encanto a nossa melodia; o êxtase a nossa arte…