domingo, dezembro 25, 2016

Métrica e parágrafos


Tenho um absoluto fascínio por ler blogs caseiros nutridos por desconhecidos. Pouco importa se escrevem bem ou mal. Cativa-me sim o conteúdo desses lugares perdidos no ciberespaço
Não me tragam livros, nem cultura erudita de autores famosos cheios de prémios. Os da raça deles que os leiam e elogiem. Eu vou para o outro lado em busca de moradas onde vive a timidez anónima que abomina multidões.
Satisfaz-me, até ao expoente do gozo, ler cantos escondidos na internet pertencentes a gente comum. Pessoas, que depois da luta do seu dia, com os seus corpos cansados, chegam a casa e despejam o que têm a dizer para o teclado. É como um acto de rebeldia para fugir ao que é banal!
Louvo todos aqueles que publicam o seu mundo interior em textos e imagens, para que quem ali chegue, num deambular perdido, se possa deleitar com o que têm a dizer. Mesmo que ao resto do mundo não sirva para nada, para quem não se encontra lá fora, cada publicação é um tesouro.
Gosto de textos sem nome, poesias estranhas, vidas contadas nas palavras de quem é apenas mais um entre outros. Entre métrica e parágrafos vão descrevendo o universo na sua pequenez grandiosa.
Banho-me nesses segredos narrados a coberto da fantasia e acolhidos nos braços maternais de uma página na net. Bendito mar onde vêm desaguar todos os sonhos brotados da fonte da imaginação. Desabafos de quem deseja ser mais do que existir!
A todos os meus companheiros da blogosfera, deixo o meu abraço mais forte de admiração! Nunca deixem de partilhar os vossos sonhos!

quarta-feira, dezembro 14, 2016

Porque tens medo de chorar?


Deixa-me vestir-te de negro para que faças o luto da tua alegria.
As mágoas dos outros, com que te cobres para esqueceres a melancolia, deixam-te ainda mais nua de felicidade.
Deixa que me banhe nas tuas lágrimas e faça dessa fonte uma imensidão de poesia.
Não percebo porque tentas apagar a tua tristeza na apatia. Tens medo de chorar por causa da dor que, afinal, faz parte da tua identidade.
Deixa morrer um pouco dos teus sonhos ao mesmo tempo que esqueces a fantasia.
Na vida muita coisa muda à medida que amas a companhia. Sabes que a solidão mete medo e vais-te tentando esconder na falsidade.
Deixa-te acordar dessa que não és tu, porque cá fora, mesmo que assuste, nasce o dia.
Mentir a ti mesma sobre algo que não és só aumenta a agonia. Sofrer é temporário, até ao momento de renascer em toda a grandiosidade.
Deixa que te conduza pelo caminho de espinhos até à porta da magia.
Sei que não acreditas, porém, depois do deserto da angústia vem a euforia. Sabes que atrás da mágoa, o contentamento cresce quando se aceita a verdade…

sexta-feira, dezembro 09, 2016

Brincar de Outono


Vem cá para fora brincar na luz do dia
Que hoje o outono está colorido
Nos lábios um assobio divertido
Faz-me bem o sorriso da tua companhia
Trás uns quantos tons de castanho
Vamos pintar um quadro estranho
À deriva sem regras na palete da fantasia
Nunca gostei do preludio do inverno
Pertenço ao calor do verão materno
Nestes dias, o sol da tarde sabe a alegria
Podemos também passear devagar
Neste caminho forrado pelo cantar
O estalar dourado das folhas secas contagia
Trazem os nossos passos à aventura
Cadência ritmada ao som da candura
Pequenos momentos de felicidade e energia
Voltei às lembranças de criança
Cantos saudosistas da esperança
Faz crescer a excitação em saltos de euforia
Como os outonos de antigamente
Crianças que sonham alegremente
Na certeza que a felicidade não é uma ousadia
Toda a criação, uma obra infinita
Natureza, é a minha arte favorita
Porque neste dia o outono é novamente poesia

sábado, dezembro 03, 2016

A mudança (O Narrador VIII)


Foste embora mas voltaste. Igual mas diferente. Com mais acção e menos mistério. O rosto lavado como se fosses outra pessoa. O corpo adornado para esconder as mazelas, quer da carne, quer da alma. Diria que cresceste, evoluíste, ou até mesmo que vieste de uma outra linha temporal, ou até de outra realidade. Houve uma mudança e isso não é mau. Simplesmente alterou-se aquilo que eras. A vida é assim. Cheia de transformações. Quanto a mim, fico contente por narrar essas diferenças.
Olho agora para ti com uma certa admiração. Sei que sempre o fiz, mas desta vez é diferente. Mudaste de forma verdadeira. Creio que nunca acreditaste que fosse possível isso acontecer. Se calhar nem eu. No entanto aqui estás perante mim. Outra pessoa. Uma metamorfose refectiva que te deslocou da tua própria existência para outro acontecer. Um toque de poesia, romantismo e aventura. É por coisas assim que dizem que a vida de algumas pessoas dava um livro.
Não deixa de ser impressionante a tua força de vontade para mudar. Ou, também, a própria vida que se encarregou de trazer a mudança, mesmo que esta assustasse. Uma mistura destas duas perspectivas. Foi rápido, quase de um dia para o outro. Como saltar uma fogueira e passar entre as chamas incólume. Assim que atingiste o solo e te apercebeste do que aconteceu, verificaste que afinal foi simples. Agora tudo é novo!
Enfim, uma insignificância para a história do mundo. Um gigantesco salto para o teu mero ser. Sim, eu sei que foi uma tentativa distorcida de plagiar Neil Armstrong, mas há que ter em atenção que isto merece uma analogia grandiosa. Afinal de contas, não deixa de ser algo muito importante. Mudar!
Verifico também que te encaixas melhor na dita sociedade. Parece até que a tua peça de puzzle consegue caber quase na perfeição e cumprir o que lhe é suposto. Já não é um simples fingir. É mesmo verdade. Fazes parte integrante de um todo. Isso completa-te, pelo menos até onde é possível completar… Já agora, sabe bem ver-te com um sorriso sincero no rosto. Um pouco de luz clareia sempre os pensamentos mais tenebrosos…
Não faças essa cara. Sabes bem do que falo!
Apesar de seres como outra pessoa, algo em ti mantém-se imutável. Esse mesmo facto que tentas esconder. Quando o vazio faz parte de nós, não existe forma, pelo menos que eu conheça, de o evitar por muito tempo. Ele continua lá. Ainda que de forma mais suave. Sem aquela crueldade ameaçadora a assombrar qualquer vislumbre de felicidade. Não te deixes levar pela euforia porque, quando menos esperares, vai manifestar-se com brutalidade para reclamar o que é seu.
Gosto deste teu novo ser. O antigo foi embora para surgir esta nova imagem. Creio que só o espelho, quando tu o olhas, pode reflectir aquilo que está verdadeiramente escondido em ti. Os outros contemplam apenas a aparência, a atitude, as novidades… Tudo camuflagem para os teus medos!
Não digo isto para te desanimar. Apenas o faço como um alerta para o que pode acontecer (ou vai acontecer). Que na sua forma implacável não te apanhe de surpresa e te faça rastejar novamente por entre um pântano de lágrimas, como já o fizeste tantas vezes.
Tem calma. Não me interprete mal. Podes continuar a sorrir como no início desta conversa. Não desejo a tua desgraça. Pelo contrário. Sei bem que és forte. Se foste capaz de chegar até aqui, também és capaz de seguir em frente. Não subiste esta escadaria para voltar a cair no mesmo nada que te sentias antes. As minhas palavras parecem duras. Possivelmente até são. No entanto, sabes perfeitamente que, na minha função de narrador, ainda que imparcial, tenho por ti alguma estima e ver-te falhar não é algo que deseje descrever. Prefiro as façanhas da tua força contra as angústias da vida, do que um marasmo monocórdico de um estado de tristeza aborrecido!
Tem em atenção que a melancolia até me dá aso à criatividade. Chama a veia de poeta que há em mim. Mesmo assim a derrota é algo que não quero cantar! Sabes bem que não!
Fala-me agora dos teus sonhos! Essa fantasia que também habita em ti não a podes deixar desaparecer. Se há algo que te torna fascinante é esse teu mundo interior, que tanta vida brota dessa fonte que é a tua centelha de imaginação! Era capaz de ficar horas ouvir-te contar todos os teus desejos, como uma criança maravilhada a conhecer a poesia pela primeira vez.
...
Porque esse silêncio?...
Não me vais responder?
Resumes a tua resposta um sorriso que se arqueia no teu rosto?
Assim deixas incontáveis enigmas no ar! Gosto disso! Sabes bem como cativar a minha atenção, para me manter por perto a narrar aquilo que és!
Está bem. Deixo-te ir embora com esse virar de costas e piscar de olho maroto. Afinal de contas ainda tens mistério em ti e uma vida nova para desfrutar. Nada contra. Pelo contrário. Segue esse caminho que em breve voltarei para o relatar. Seja como for, tenho de continuar a cumprir a minha função como teu narrador!

quinta-feira, novembro 24, 2016

Hoje estou frágil


Olha para mim que hoje está escuro
Preciso de mais luz
A tua, que me seduz
Sou de ferro mas sinto-me inseguro
Preciso de mais cor
Do teu corpo, o calor
A chuva alimenta o meu ser obscuro
Preciso de escapar
Leva-me a encontrar
Em ti acredito-me novamente puro
Preciso de mim criança
Ter a força da esperança
Sem a noite sombria fadando-me duro
Preciso do teu verso
Viver em ti o universo
Nesse teu dia luminoso estar seguro



sexta-feira, novembro 18, 2016

Acredito apenas na carne


Se fosses um anjo certamente que as tuas asas seriam negras, para que, com o seu tom lúgubre, escudassem a tua fragilidade.
Se assim fosse, eu, na minha desordem, mutilava toda a tua plumagem com a violência que só o desejo pode explicar. Em toda a ânsia de te ter, arrancava, uma a uma, cada pena do teu ser angelical, como um selvagem, até despir a tua alma.
Desenhava assim uma porta para o paraíso na silhueta da tua brandura. Soltava o teu medo para dançar com o prazer. Nas tuas veias a correr o fogo da perdição, para que te abrisses para mim. Flor desabrochada no orvalho quente do pecado sem castigo.
No entanto, aqui na Terra, onde moram os animais e os nossos olhares se imploram, não creio em seres alados nem em criaturas celestiais. Acredito apenas na carne, na fúria da pele, nos dentes que mordem e na voz que geme. A única verdade é o calar da sensatez.
Sem inferno onde cair nem divindades a pregar a virtude. Tudo se resume ao instinto! À vontade! À intensidade!
Liberta-se o querer e o combate inicia. O arrepiar desnuda o teu segredo! A transpiração! A dor e o gozo! Mostras-te em pleno como mulher! Rivalizas o próprio éden e fazes do teu corpo repasto. Ordenas-me a virilidade e não nego a minha fome sobre a tua perfeição. Nasce o caos! A poesia disfarçada que se vem dentro de nós!

quarta-feira, novembro 16, 2016

Eu e os outros

 

Esta noite estive desperto, a sonhar acordado sobre coisa nenhuma.
É impressionante como o vazio, por vezes, pode tomar conta da vida. Nem o sono, com o seu esquecer, parece escapar à tormenta desta inquietação.
Puxo o cobertor para cima, cubro-me com mais força, na esperança que o calor me traga algum conforto. Sei bem que nada acontece. Deixo então a minha mente divagar por entre uma réstia de pensamentos coerentes.
O prazer tem um limite, é o aborrecimento.
A dor tem um limite, é a apatia.
O vazio, esse sim, não conhece limites. Preenche-se a ele mesmo com mais vazio ainda. Absorve todos os extremos de todas as outras coisas e agiganta-se sempre mais em cada esperança de o fazer desaparecer.
Diz-me a lógica que não sou o único. Sei que existem outros a cair no desalento. Sei que não os posso conhecer ou chegar, mesmo assim, deixo um abraço calado entre o silêncio da noite, para todos aqueles que já tiveram um dia de solidão desesperante. Daquela verdadeira, absoluta, cortante, que faz doer a própria existência. Suprema mágoa quando a necessidade de ter um amigo é vital, porém, ninguém está lá, só o frio de nós próprios…
Os pensamentos vão e vêm ao ritmo da sua própria vontade. Deixo-os nessa liberdade enquanto aguardo que o sono chegue, ou que as horas passem (creio que devem estar a passar) e a luz da madrugada venha vencer o meu desassossego…

sexta-feira, novembro 11, 2016

O impropério


Foda-se
• [Calão]  Interjeição designativa de admiração, surpresa, espanto, indignação, etc.

Sinónimo Geral: FORNICAR

"foda-se", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013

O impropério favorito do povo português
O analgésico mais eficaz contra as frustrações do mundo banal
O grito de triunfo de sexta-feira à tarde na hora da liberdade 
O relaxante orgasmo intelectual quando se saboreia o triunfo
O mais sincero desabafo de amizade 
A mais verdadeira confissão ao Deus misericordioso 
O grandioso acto de bravura para o humano comum
O mais belo canto quando nos permitimos o cansaço...

sábado, novembro 05, 2016

Aqui no perto


Anda comigo olhar para longe. Este perto que nos acomoda será sempre uma prisão, quando o nosso destino se encontra ali tão longe.
Eu sei que somos malfadados com o dom do descontentamento. Não é aquilo que temos predestinado que nos chama, mas sim a viagem. Olhemos para horizonte e para o que está atrás dele. Este perto não nos satisfaz. Viajemos para essas distâncias, que nos roubam a atenção, nem que seja a sonhar. Vamos à velocidade da poesia, como se esta fosse a nossa estrada e o nosso transporte simultaneamente.
Procuremos silêncios que se transformem em palavras. Visões inacreditáveis de paisagens coloridas pintadas pela inquietação. Poder visitar a pele arrepiada e nela encontrar um pouco de descanso depois da azáfama do gemer. Sabemos que nesses momentos esquecemos a dor e somos mais do que simples "nós próprios". Ainda assim é tão pouco, tão breve, tão gritante o anseio por mais e mais e ainda muito mais.
Há que continuar o caminho. Existem sempre coisas novas em que nos devemos renovar e enganar o desassossego. Mesmo sabendo que vamos voltar sempre aqui, não podemos perder a esperança, ou pelo menos acreditar que ela existe, nem que seja no conforto do beijo.
Somos os diferentes e os iguais. Temos um mundo fora dos outros. O impulso da carne em desejo, com a ânsia igual de amar o que não está aqui. Seja como for, podemos partilhar lonjuras, para que as nossas solidões sejam companhia neste existir absorto.

sábado, outubro 29, 2016

Sem grandes motivos...


Existe ódio escondido dentro de mim. À espera. Sei que ele não se vê nem se acredita, mesmo assim ele está lá oculto. Vagueia dissimulado na ternura do meu olhar, na alegria do meu ser, no entusiasmo da minha voz... Está cravado, sem piedade, num canto qualquer da minha alma inexplorada.
Adormecido...
Quem sabe se um dia vai acordar? Talvez atiçado pelo medo, ou por uma qualquer crueldade da existência. Ou, quem sabe ainda, sem motivo algum.
Por vezes interrogo-me se essa fúria indomável não tem personalidade própria? Não precisa explicações para ser, nem de ciência para acontecer. Simplesmente é!
Engrandece-se sem justificação a meio de um poema que se propunha feliz. Surge imprevisível como a lâmina de uma navalha, perfeitamente afiada, a rasgar a carne. Nasce do nada a romper a noite num ataque violento à nossa certeza.
Quem odeia não precisa de grandes motivos. Apenas de um instinto selvagem a recusar toda a justiça, como se as regras impostas fossem veneno para todos que desejam mais. Talvez até sejam, porque debaixo da capa da vida que nos cobre está uma história proibida de desejos malditos...

quinta-feira, outubro 27, 2016

Grandiosa insignificância


Existe algo de tão maravilhoso, quanto de misterioso, no pôr-do-sol de um dia quente. A quietude toma conta do mundo. A luz que se vai desvanecendo devagar. Os tons avermelhados que se apoderam do céu. A total e absoluta tranquilidade que cobre, como um manto, o desenho confuso da vila.
Enquanto a noite cai, os pensamentos mundanos desaparecem, a mente navega apenas no transcendente desconhecido. O silêncio de banalidades é tão profundo e grandioso que eu, meditativo, me deixo levar pela incompreensão do universo.
As luzes da povoação começam a acender. Algures um cão ladra. Aqui e ali, um ou outro carro passa. São as pessoas, apressadas, que seguem para as suas casas, para os seus confortos, para seus afazeres, para a hora do jantar. Eu prefiro ficar aqui, ao mesmo tempo que o sol se afunda no horizonte, deixando apenas réstias da sua incandescencia no céu que vai escurecendo.
Não tarda a aparecer a primeira estrela, como um cumprimento cósmico a esta minha contemplação espiritual. Não sei se para Deus isto conta como oração, dada a paz que sinto em mim.
É um momento perfeito, enquanto, na minha insignificância, desenho o infinito na pequenez de um poema...

sábado, outubro 15, 2016

Colorindo


As cores são tão estranhas!
Estou acostumado a viver rodeado de escuros e cinzentos, de tal forma que todas as outras tonalidades parecem-me um universo por explorar.
Olho com um fascínio quase infantil para as variações do arco-íris quando se elevam por entre o céu enublado. Não me admiro que os povos antigos achassem que aquela festa colorida fosse uma ponte para o mundo dos deuses.
Aqui é tão sombrio!
Quem me dera adormecer no cor-de-laranja. Viajar em cor-de-rosa por estradas azul-bebé. Perder-me em florestas esmeralda salpicadas de lima, escarlate e turquesa. Beber de fontes timbradas com todas as cores que se possa imaginar e mais ainda!
Como luz a deslumbrar, beijar em todos os vermelhos; visitar peles de todas as tintas; cruzar olhares de todos os oceanos; conhecer almas de todas as galáxias!
Como um louco na sua arte, amar com todos pincéis e dançar em todas as telas com linhas iluminadas por toda e qualquer cor! Invejo quem se transcende numa pintura multicolorida criando um festim de imaginação nas faces tristes de quem as contempla!
Ainda assim não abandono a melancolia. Mesmo que a tente colorir de quando em quando, vive em mim esta profunda sina de quem não consegue pintar de outra forma a poesia de viver. Sobram-me as cores dos outros, que, no seu entusiasmo as partilham altruístas. Com um sorriso verdadeiro, a esses agradeço por mostrarem a alegria a quem sonha deste lado do impossível...

quarta-feira, outubro 12, 2016

Tanto em coisa nenhuma


Amo-te como quem ama coisa nenhuma e tudo em simultâneo.
Quero-te por inteiro e para sempre como nos contos de fadas. Fascina-me esse imenso todo que se esconde no teu ser. Tesouros, vitórias, sonhos e medos que me cantas na tua entrega. Mesmo assim aborreces-me e procuro também os mistérios que pairam nas almas dos outros porque não me contento apenas com uma eternidade.
Desejo cada ponto sensível do teu corpo como quem anseia a loucura. Deleito-me ao provar o teu gemer, navegar no teu suor, ser todo o teu gozo. No entanto a tua carne é muito pouco para o meu infinito e o meu âmago pede mais satisfação. Apraz-me degustar o sabor de todas as silhuetas perdidas e abertas, porque só um prazer não me basta.
Amo-te com a violência de quem tem a revelação do segredo da felicidade! Completas-me com toda a paz que uma vida inquieta sempre espera encontrar. És tudo! Porém, somente isso! Um mero existir imponente, sem nada de mais para mim, que ambiciono o inalcançável. És breve na tua imensidão. Ínfima estrela na tua grandiosidade. Unicamente um parágrafo de intensidade suprema no desassossego da minha história...

sábado, outubro 08, 2016

Beleza eterna


Por momentos enamorei-me por uma estátua. Uma mulher desnuda esculpida na pedra fria.
Era tão mágica na sua imobilidade. Desprovida das falhas da carne e da pele, assim permanecia, coberta de encanto, sem o pecado da imperfeição. Era eterna na sua juventude. Sobressaiam as suas linhas esbeltas traçadas com mestria. Toda a sua silhueta era beleza, como só quem se alimenta de arte compreende.
Por breves instantes deixei-me fantasiar pela sua história que nunca aconteceu. Dei-lhe um nome, um sabor, uma idade, um viver humano onde pôde sentir como sente quem ama. Imaginei-lhe um sorriso a rasgar o desenho dos seus lábios quietos, bem como um olhar meigo a colorir o branco do mármore. 
Presenteei-a com o desejo e com um toque quente no seu rosto indiferente. Ofereci-lhe tudo isso para vestir o seu silêncio e o seu movimento suspenso. Quem sabe se Deus lhe deu algum tipo de alma para que de mim se pudesse lembrar?
Invejei o escultor que a tinha concebido. Declarei-o maldito por ser capaz de criar tanta perfeição. Mas ele pouco importava. Imaginei todos os outros que por ela se encantaram e fui tomado de ciúmes. Senti desgosto por aquele corpo inerte não ser como o meu.
Dei então conta que o meu devaneio já ia longo. Despedi-me daquela forma estagnada, já tinha servido o seu propósito de me fazer sonhar, e acordei. Estava na altura de seguir o meu caminho.

domingo, outubro 02, 2016

Da terra de ninguém


Saí à rua apenas com a intenção de reparar nas pessoas que palmilham a cidade. Os seus rostos; os seus corpos; as suas vestes; as histórias que estão contadas nas suas expressões; as emoções que transparecem ou que escondem. Podemos aprender muito sobre alguém estando atentos aos pormenores da sua aparência. Cada detalhe vai narrando uma vida.
Vejo os que passam. Há-los para todos os gostos: os atarefados na sua correria; os que vão devagar para serem vistos; aqueles que na sua submissão param a cumprimentar os importantes; os distraídos que olham para tudo e para nada ao mesmo tempo que vagueiam nos seus pensamentos; os que caminham lentamente a tentar prolongar a existência…
Eu fico por aqui no meio entregue a minha realidade perdida. Observo cada ser humano com a sua particularidade: os bonitos; os feios; os indiferentes; os vulgares; e os outros demais…
Peço por favor ao destino! Quase que rezo a um deus qualquer para que me cruze com alguém parido do ventre da diferença. Que não se encaixe em estatísticas nem use o grilhão de um rótulo. Será que este é o mundo certo para este tipo de gente?
Corta-me a solidão com violência as entranhas do meu ser. A sorte cospe-me em cima cada vez que julgo encaixar-me num canto da sociedade. Escasso é o tempo que consigo viver a mentira de dizer que sou dali ou daqui. Sou de lado nenhum, da terra de ninguém, aquela que não consigo encontrar nem há quem me indique direcções!

quinta-feira, setembro 29, 2016

Quem acorda ao anoitecer?


Quando o sol se põe acorda o poeta para o viver
Fragmentos de pensamento conjugam a sua fala
Os versos vão nascendo enquanto o mundo se cala
Desígnios abstratos que se fazem acontecer
Palavras vadias surgem de forma salteada
Bizarras eloquencias paridas da urbe calada
Loucuras gritadas somente a quem as entender
O silêncio sussurrou o nome de ninguém
Soltou o inquieto em si a buscar esse alguém
Olhou em volta mas tudo era anoitecer
Procurou então no seu redor algures um lugar
Onde essa personagem sem nome possa estar
Nada encontrou além do seu próprio querer
Amaldiçoou a noite que lhe traz inquietação
Maldisse do seu intimo e da sua agitação
Desaguou a sua sorte em todo o seu escrever
Continuou a buscar por entre todo o infinito
Talvez a esperança escutasse o seu grito
Para no fundo encontrar apenas o seu próprio ser

quinta-feira, setembro 15, 2016

O destinatário


Hoje apeteceu-me escrever uma carta, num papel, com uma caneta, tinta verdadeira e com a minha própria caligrafia. Sem me importar se o tipo de letra é arial, times, comics, ou outra coisa qualquer. É minha. Uns quaisquer gatafunhos. Pouco importa se são perfeitos, ou não, desde que se leiam.
Envio-a pelo correio. Pago o selo, uns quantos cêntimos, com prazer. No destinatário coloco "Para qualquer um que queira ler". Não me importo para onde os serviços postais a vão levar desde que chegue às mãos de alguém. Qualquer um, tanto faz, pode ser um doutor, sem abrigo, sábio, hippie, aventureiro, ou que só tenha a quarta classe. É indiferente desde que leia o devaneio que lá coloquei.
Nem sequer estou preocupado se percebem a minha mensagem. Naquelas palavras libertei um segredo. Um "nada de especial" que ocupou umas quantas frases rabiscadas numa folha, mas que para mim teve a importância do tempo que lhe dediquei. Apenas isso, ou tudo isso! Deixo ao critério do leitor.
Se por acaso fores tu o receptor deste envelope, considera-te afortunado por receberes uma parte das minhas ilusões. O destino, com a sua lógica própria, lá decidiu que serias um bom guarda para este tesouro que nada vale aos olhos dos homens comuns com as suas moedas. No entanto transporta nas suas linhas algo precioso saído da minha essência mais profunda...

quarta-feira, setembro 14, 2016

Solitária companhia


A lua está escondida
Oculta a sua magia
Desvanece a fantasia
Como uma memória perdida
Cor negada à calmaria
Rosto sem alegria
Audácia amada destruida
Enublada euforia
Chama a melancolia
Malfadada nas ruas da vida
Solitária companhia
Engrandece a noite fria
Toda a caricia é proibida
Desejar sem ousadia
Viver sem poesia
Felicidade esquecida

sexta-feira, setembro 09, 2016

Longinquo conhecimento


Contemplo o anoitecer intenso
A primeira estrela no firmamento
Canta a luz do seu nascimento
Fascinante encantamento
Nele louvo o universo
Faço uma oração sem lamento
Peço perdão do meu desalento
Mágoas a cair no esquecimento
Torna o meu sofrer disperso
O silêncio do momento
Longinquo conhecimento
Transcendente pensamento
Tudo neste pequeno verso

terça-feira, setembro 06, 2016

Enganar a melancolia


Quando cantamos o beijo os demónios que habitam em nós correm até aos nossos lábios. Animados pela tentação, à qual não resistimos, atiçam ainda mais as chamas do nosso inferno.
E nós gostamos! Oh como gostamos!
Se tudo além de nós é tristeza para quê negar a punição? No poço fundo e negro onde jaz a nossa coragem, nasce, por entre o frio, um momento de angústia disfarçado de desejo. Tudo é ilusão.
Mas nós vamos! Oh como vamos!
Conhecemos a dor, aquela perpétua, que vem do nosso ser inquieto. Enganamos a melancolia durante a luz do sol que desperta o dia, tentando negar que somos filhos do cinzento e da chuva.
Ainda assim sonhamos! Oh como sonhamos!
Não temos asas porque já não tememos a queda. O nosso fado é sofrer portanto nada impede a nossa entrega. Temos as cicatrizes, temos a poesia, temos a fantasia enevoada pela vida.
Nesse céu voamos! Oh como voamos!
Cruel é o momento em que acreditamos que a esperança renasce. Agarramos aquela ínfima faísca que diz conseguir matar a solidão com a força enraivecida de quem não tem nada a perder.
Mesmo assim acreditamos! Oh como acreditamos!
Na mentira do nosso toque está a verdade da nossa mágoa. Tão real, perfeito e igual, assim é o nosso desalento. Juntadas as nossas noites surge uma lua cheia de brilho que nos ilumina como a quem é feliz.
Mesmo que seja falso nós amamos! Oh como amamos!

quinta-feira, setembro 01, 2016

Gourmet


Atrás das minhas orelhas cheira a queijo. Se por acaso vier um especialista no assunto, com o seu olfacto apurado, cheirar as crostas húmidas que lá se encontram, dirá, com toda a certeza, que são comestíveis. Mais até. Um verdadeiro pitéu. Um prato de delicioso paladar. Um petisco digno dos mais conceituados restaurantes gourmet. Algo reservado somente para as bocas mais exigentes dos réis.
O lixo imundo acumulado ali durante os vários anos da minha existência, onde, por um motivo de rebelião me recusei a lavar, é-me tido como símbolo do meu triunfo sobre a tirania das regras impostas. Congratulo-me por ser um insurrecto sujo e ignóbil. Um ser asqueroso abaixo da condição animal.
Na minha mais profunda sátira sirvo a minha falta de asseio e repugnância ética numa bandeja e coloco-a à mesa dos altos moralistas para que se indignem com a minha insolência.
Vejam! Todo o meu corpo sabe a rebeldia. A minha mente busca apenas a sabedoria. Não me aquieto em jaulas feitas de conforto. Só me conforma a arte e a poesia no seu desassossego. Procuro apenas caminhos onde os passos são raros.
Os companheiros, esses, vão vindo e vão indo pois o rumo não é igual para todos. Sigo por aí determinado, ainda que por vezes sé me reste a solidão, que, na sua doçura ou amargura, me foi sempre fiel.
Na minha bagagem levo um tesouro feito meramente de sentimentos. Desde a acidez do ódio, até à doçura do amar. Conhece-me assim!
Atrás das minhas orelhas cheira a liberdade!


terça-feira, agosto 30, 2016

Só a poesia


Quem me dera ser jovem novamente
Passar os dias entusiasmado
Com os amigos ao meu lado
Poder acordar sempre contente

Quem me dera descobrir o mundo novamente
Na inocência entusiasmado
Por um futuro sonhado
De uma criança inconsciente

Quem me dera nascer novamente

Sentir o espanto de ser gerado
Agradecer o viver que me foi dado
Ao abrir a janela do ventre

Quem me dera acordar novamente 

Muito antes do tempo passado
Antes de ficar fatigado
Cometer novos erros loucamente

Quem me dera apaixonar-me novamente

Trocar um olhar corado
Com um rosto enamorado
Sentir a emoção a vibrar ansiosamente

Quem me dera ancorar-me ao presente

Ter na vida um rumo traçado
Longe do mundo sonhado
Deste meu ser ausente

Quem me dera não me sentir distante

Pela banalidade ser levado
Deixar este sentir cansado
Somente uma rotina constante

Quem me dera não ser como toda a gente

Nunca por este adormecer ser tentado
Selvagem sem nunca ser domado
Amaldiçoar quem me quer condizente

Quem me dera continuar diferente

Nunca me sentir enjaulado
Nem pelo habito ser amansado
Só a poesia me levar avante

terça-feira, agosto 23, 2016

Hoje está...


Hoje está frio
O mundo está cinzento
Perdeu o seu encanto
Lembrando o meu vazio

Hoje está frio
A noite cai enegrecida
Sem luz de guarida
Chamando o meu vazio

Hoje está frio
A noite traz o medo
Que eu escondo em segredo
Cresce o meu vazio

Hoje está frio
Deformadas são as brumas
Que aumentam as sombras
No meu sonho vazio

Hoje está frio
Nasce um grito calado
No meu ser amargurado
Tomado pelo vazio

Hoje está frio
Uma incerteza de criança
Que me rouba a esperança
Torna o caminho vazio

Hoje está frio
Não há conforto
Nem rumo a bom porto
Sozinho no vazio

Hoje estou frio
Na pele arrepiada
Muralha desmoronada
Sinto-me vazio

sexta-feira, agosto 12, 2016

Onde o longe é constante


De que serve compreender
O meu olhar distante?
Que num lento acorrer,
Leva o meu sonhar errante,
Sem medo de se perder,
Para terras onde o longe é constante!

Não sei aonde vou ter.
Apenas sei que estou ausente.
Pelo infinito a desvanecer,
Voa pensamento e mente
Entre uma paz de indizível saber
Como uma brisa fresca num dia quente.

É como num entardecer,
Que na solidão me faz diferente.
Aconchego do silêncio sem nada a dizer,
Sei que mesmo aqui presente
Nesta paz de introverter 
Estou perdido no meu íntimo transcendente...

quinta-feira, agosto 11, 2016

Animar a existência


Em que posso servi-lo senhor?
Dê-me um copo de infinito
Para a poesia calar o meu grito
Deste desassossego aflito,
Se faz favor.
É para já senhor.
Ah! Também uma dose de sonhos com uma pitada de inocência!
Bem regados com aventura, que esta coisa de viver requer paciência,
Seja porque meios for um homem tem de animar a existência.
Traga do melhor.
Pois não. Mais alguma coisa senhor?
Agora que fala nisso, traga paixão.
Que isto sem inflamar a emoção
Faz-me de mansinho acomodar a razão.
Há que brindar o amor.
Como queira senhor.


sábado, junho 18, 2016

A Arena


O falo ergueu-se decididamente, ostentando toda a sua virilidade! Não porque houvesse uma fêmea para copular, mas por pura demonstração de orgulho e masculinidade. Chamou a si, dessa forma, um pouco da origem animal que o homem tem.
Todas as mulheres que apreciavam aquele espectáculo, que supostamente seria apenas uma execução violenta e injusta para gáudio da assistência, não ficaram indiferentes àquela manifestação de audácia. Nesse instante algumas murmuravam entre sí, outras coravam, outras até, mostrando algum pudor junto dos maridos, afastavam o olhar. Ainda assim, não conseguiam esconder a curiosidade.
O juiz, tomado pela fúria contra aquele condenado que devia estar a implorar pela própria vida, quebrado pelo medo e a humilhação dos derradeiros momentos, ordenou que a arena se enchesse de guerreiros para que o sangue do maldito insolente fosse derramado.
Os gladiadores entraram em grupo. Eram eles, as suas espadas e armaduras, contra a nudez e coragem daquele homem.
Em poucos instantes rodearam-no. Confiantes na sua força e treino deixaram que o primeiro avançasse para iniciar o martírio. Mas a morte não iria acontecer com rapidez. Sabiam que a multidão queria um bom espectáculo, portanto cada um daria um golpe que esvaia aos poucos e dolorosamente a vida do pobre homem.
Aparentemente sem medo, o pénis mantinha-se erecto quando a primeira espada investiu. O movimento foi rápido. Quase imperceptível. O gladiador, que devia estar a festejar um golpe cobarde, estava agora no chão, sem vida. A espada, essa, com a sua lâmina afiada, estava agora na mão do condenado despido.
Houve um momento de silêncio incrédulo por toda a arena antes que acontecesse uma reacção. Vários guerreiros avançaram em simultâneo para vingar o colega. Um a um iam caindo vítimas da fúria do condenado. Parecia até fácil demais matar gladiadores para aquele homem despido. Todos se inanimaram a seus pés.
O impensável acontecera. A multidão começava agora a gritar pelo condenado em cânticos de incentivo. O juiz, tomado de uma raiva descontrolada, mandou avançar mais soldados que entraram em grande número.
O pénis recolhera ao isolamento da flacidez para não estorvar a percepção da mente atenta à batalha. Os gestos eram rápidos, frios, eficazes e implacáveis, sem qualquer tipo de erro. Saiam naturais para aquele combatente experiente. Quase inumanos aos olhos dos que assistiam. A morte, essa, vinha rápida e indolor para aqueles que caiam.
Não tardou até que não houvesse mais soldados, nem gladiadores, nem carrascos. Somente um homem nu em cima de uma pilha de cadáveres, munido apenas de uma espada, da sua pele e da sua coragem, ovacionado por uma multidão eufórica.
Já não estava mais sozinho, passara de condenado a herói. Queria agora justiça!
Olhou por entre a assistência eufórica e numa expressão que só aqueles que procuram a vingança podem compreender, usou a espada para apontar aquele que o condenara somente para satisfazer a sua fome de sadismo.
«Tu!» Exclamou!
A voz ecoou pela arena atiçando a multidão que em uníssono bradava: «Tu! Tu! Tu! Tu! Tu!» Repetia-se o grito cada vez mais forte para o juiz que provava agora o mesmo medo que gostava de impingir. Exigiam que o próximo fosse ele. Desonrado, sem soldados que o protegessem foi atirado para arena pelo povo em euforia.
Envolto em pavor ajoelhou-se e começou a chorar. Em palavras soltas entre soluços implorou pela vida à visão da silhueta despida do agora novo rei da arena.
Tal súplica não foi atendida.
Desta vez o golpe não veio rápido. Em passos lentos o homem aproximou-se do juiz. Segurou-o pelos cabelos esticando-lhe o pescoço. Ergueu a espada e saudou a multidão. Desceu depois a lâmina lentamente até à garganta do cobarde e sem qualquer tipo de pressa foi cortando a carne, certificando-se de que a agonia ia durar o mais possível.
O corpo caiu enfim. A tua tirania acabou ali depois da humilhação.
As palmas faziam-se ouvir por toda a arena. Era um ovacionar ensurdecedor pois tinha nascido um novo rei!

quarta-feira, junho 08, 2016

Métrica do despertar


Lá em cima os deuses combatem
Imortais sem medo da morte
Invenciveis não precisam da sorte
Da luta dos homens nada sabem

Lá em cima as orações se esvaem
Palavras secas lavam desespero
Crenças vazias num culto severo
Porque afinal os homens nada têm

Enquanto a morte me chama
Eu grito: Ainda é cedo
Ainda não cumpri a minha vingança
Enquanto os céus se fecham
Entre trevas e medo
Ainda não perdi a minha esperança

Cá em baixo os homens combatem
Ilusões sem medo da morte
Lutar para encontrar o mais forte
Dos deuses à muito que se esquecem

Cá em baixo os corações sofrem
Pobres almas que ainda amam
Tormenta de todos que sonham
Emoções banais todas que se vendem

Dentro em mim as muralhas caem
Acordar dum mundo parado
Deixar lá atrás o que está passado
Novos trilhos novas pontes se erguem

Dentro em mim sonhos já não dormem
Saíram à rua para gritar
Agora e sempre não posso parar
Medos domados que já nada temem

Eu solto
Eu grito
Afinal esta é a minha vontade
Nascida no sono da minha prisão
Despertei a minha verdade
Eu sonho
Eu vivo
Afinal esta é a minha autoridade
Sobre mim tenho toda a razão
Acordei a minha liberdade



sábado, maio 28, 2016

Quis hoc carmen scripsit?


O poema caiu ao chão
Foi pisado
Por mil pés calcado
Na apressada multidão
Como lixo enxotado
Tornou-se papel amarrotado
Ainda assim sem qualquer rasgão
Esse palavreado rimado
Sujo e maltratado
Esvoaçou na confusão
Negou esse fado
De morrer calado
Porque sua voz é paixão
Viu-se então segurado
Alguém o tinha salvado
O poema viajou para outra mão
Lido para ser sonhado
Forte para ser declamado
Com toda a alma e coração

Algures um sonhador escreveu
Esse mesmo sonhador esqueceu
(Porque um sonhador também se esquece de sonhar)
Porém a rima não desapareceu
O poema sonhado não morreu
Outro sonhador o leu
(Porque um sonhador não se esquece de amar)

sábado, maio 07, 2016

A companhia


- Para onde vais?
- Não sei ao certo.
- É uma resposta vaga vinda de um viajante.
- Talvez por isso não tenha destino planeado.
- Sozinho?
- Não. Vou encontrando companheiros pelo caminho, até que cada um siga a sua rota. Depois vou encontro outros que também hão-de seguir os seus trilhos.
- Certamente existe um lugar que te faça ficar.
- Quem sabe? Não dou muita importância a isso. Acima de tudo gosto de preservar aquilo que aprendi, as aventuras que vivi e os rostos que se cruzam comigo.
- És sábio?
- Fizeste-me sorrir com essa pergunta.
- Mesmo assim não respondeste.
- A resposta é não, evidentemente.
- Já encontraste algum?
- Não sei. Todos os sábios são humildes. Jamais diriam que o são. Mas já encontrei gente com grande sabedoria, se é isso que queres saber.
- Interessante. Sabes, respondes muitas vezes não! Ou pelo menos ainda não deste uma resposta completamente afirmativa!
- Isso é porque ainda não me perguntaste algo que me fizesse dizer sim.
...
- Sabes. Depois destes minutos em silêncio que partilhamos, o meu pensamento juntou vários fragmentos. Na minha cabeça formou-se um todo. Acho que já tenho uma questão para ti.
- Qual é?
- Posso ir contigo?
- Sim.

sábado, abril 30, 2016

Verdadeiramente belo


Tu que choras a olhar a Lua, na esperança de uma qualquer salvação, de uma mudança, seja ela qual for, que te tire dessa inércia, podes continuar a chorar. 
Sim eu sei que esta imagem poética já foi repetida até à exaustão. Mas por ser tão verdadeira continua a ser usada. Deixa que as tuas lágrimas façam nascer um rio. Uma torrente cristalina que te lave a alma de todas as tuas amarguras, que nada mais são que expectativas frustradas, sem qualquer sentido. 
Quando por fim os teus olhos secarem, por favor, vive! Sê feliz!
Deixa que de ti irradie beleza, pois só aquilo que é verdadeiramente belo nasce da felicidade!

segunda-feira, março 07, 2016

Amo imaginatio


Existe um mundo imenso dentro de mim
Tenho muito barulho no meu ser a inquietar
Sendo então distante com a mente a divagar
Desinquieto não sou o único a viver assim
Na insistência das palavras soltas a rimar
Alguma parte etérea de mim a chamar
Em sentimentos de tumulto em frenesim 
Sem ciência que explique este desajustar
Perdido na realidade paralela do sonhar
Faço deste meu desassossego um motim
Na riqueza das quimeras vejo-me cantar
Amores com chama intensa a desejar
Ser como a Primavera a florir um jardim
Toda esta fantasia em mim está festejar
Liberto nas estrofes tenho asas para voar 
Pois a vida se recria num colorido festim

terça-feira, março 01, 2016

Gostos comuns


Certo dia, num encontro romântico com a sua namorada, o rapaz segurou-lhe as mãos com grande ternura e contemplou, não a sua face angelical, nem o seu sorriso aberto, muito menos o seu olhar meigo, apenas as suas unhas compridas de que tanto ela se orgulhava.
Lentamente foi aproximando o seu rosto dos dedos dela. Num acto impetuoso atirou-se, com os seus dentes, à longa unha do indicador direito. Ela gritou! Puxou! Mas não a tempo de impedir que ele a conseguisse roer desenfreadamente como quem devora um petisco.
Aquela reacção, que só um viciado compreende, mereceu-lhe um par de estalos bem assentes e o fim da relação. Ele não se importou. Foi um pequeno preço a pagar. Valeu bem a pena pelo bom pedaço de unha que conseguiu arrancar. Se houvesse prémios para isso, aquele feito era certamente digno de um.
Era um daqueles rapazes ditos normais, com gostos comuns, alguns pequenos luxos, um telemóvel já com alguma qualidade e um automóvel, mais ou menos, acima do modesto. Não desejava grandes riquezas. Apenas queria uma vida simples com algumas comodidades.
O que ele gostava mesmo era do seu vício. Algo tao impulsivo que o fazia descaradamente mesmo à frente de todos! Roía as unhas com um prazer quase irreal. Cortava por um canto, devagar, com a ponta dos dentes e ia retirando aos poucos as lascas que as compunham.
O mais custoso era o tempo que demoravam a crescer entre as selváticas devastações que sofriam. Passavam-se segundos, minutos, horas, sem que o tamanho aumentasse. Por isso olhava para as unhas dos outros com lascívia. Invejava quem as tinha compridas.
Nesse aspecto as mulheres eram um bom alvo pois sabiam a importância de ter as unhas longas. Mesmo que o motivo fosse completamente diferente é claro. Porém tratavam-se de meros pormenores de um objectivo muito mais grandioso.
Não se tratava de um tique nervoso. Somente de um hábito tão incontrolável que a mera ideia de o deixar de fazer causava-lhe pânico! Uma fobia desmensurada impossível de parar. Dito desta maneira talvez fosse um costume exagerado aos olhos dos outros mas não para o rapaz. Para ele era como saborear um pouco do paraíso…

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Dark Cabaret


Era um casarão antigo, pertence de gente abastada, com um grande salão de entrada. Daqueles onde se pode organizar facilmente um baile com um número generoso de convidados. Algo me dizia que já tinham ocorrido ali uns quantos. Ao centro havia uma enorme escadaria interior para acesso ao andar de cima. A decoração fazia lembrar os anos vinte, ou trinta. Uma coisa vintage como dizem agora, embora mais parecesse um cenário saído de Hollywood.
Um piano, já desgastado pelo tempo, estava encostado à parede estrategicamente colocado para que a acústica do lugar o permitisse ser ouvido da melhor forma. Tocava sozinho, uma melodia alegre, com uma daquelas engenhocas que se veem nos filmes do velho oeste. Aquele sítio fazia-me mesmo viajar no tempo para um saloon, daqueles dos westerns que via na televisão quando era pequeno. Infelizmente esse género caiu em desuso.
Uma foto de grandes dimensões retratava o dono da casa. Não fora o facto de ser a cores em nada descorava do resto dos ornamentos. O homem ali apresentado tinha um porte vaidoso. O seu cabelo estava irrepreensivelmente penteado com o risco ao lado. Ostentava, orgulhoso, um bigode daqueles que se enrolam dos lados, completamente fora de moda, para não dizer ridículo. Seja como for, aquela aparência em nada fugia ao estilo do palacete, embora ache que, se a ideia era essa, a imagem ficaria melhor a preto e branco. Mas quem sou eu para opinar sobre moda?
A música jovial que saída do teclado automático do piano, com as suas notas entusiastas, fizeram-me rir da situação por toda a ironia que acarretava. Tentei, com os meus pensamentos do momento, criar uma letra para aqueles acordes que, divertidos, pediam a companhia de uma voz. Não era cantor mas comecei, no entanto, a trautear de improviso:

“Tenho sangue nas mãos
Sangue na roupa
Sangue nos sapatos
Salpicado no meu rosto
Vejo sangue nas paredes
Sangue pelo chão
Sangue em todo o lado
Salpicado por cada canto”

Cantarolei assim ao ritmo das teclas que seguiam sozinhas. Dei uma certa tonalidade jazz à minha voz para não contradizer a decoração. Sei que as estrofes não rimavam, mesmo assim procurei alguma métrica para descrever toda a cena sinistra que me rodeava. Creio que não foi mau.
O cadáver jazia no chão ensopado numa poça de sangue. Digamos que mais parecia um pequeno lago. Além disso estava tudo salpicado pelo tom carmesim que foi jorrando do homem a cada golpe que recebia. Saltou para as paredes, para o piano, para os quadros, para os móveis, para a minha roupa e para tudo que é sítio. Pode-se dizer que quando um martelo atinge um corpo humano de forma implacável, vezes sem conta, não se pode prever para onde vai jorrar toda a vermelhidão.
Não posso dizer que fazia grande diferença. O serviço foi feito com eficácia. A figura de porte vaidoso que ostentava o quadro estava agora irreconhecível no chão frio do salão salpicado. Suponho que o bigode ainda se podia reconhecer por entre face semidesfeita. Pode-se constatar que mesmo na desgraça não perdeu o orgulho. Bom para ele.
Podia ter sido mais cuidadoso no que diz respeito a limpeza. Uma martelada forte no crânio tinha sido suficiente para uma morte eficaz, mas deixei-me levar pelo entusiasmo e continuei a agredir freneticamente. Não estando ainda contente, depois do corpo cair com um forte estrondo, continuei as agressões aos pontapés. Às vezes gosto de ser dramático e exagero.
Resultado: ficou tudo manchado. Não havia grande problema nisso, simplesmente tinha de tomar um bom banho e livrar-me daquelas roupas. Não eram as minhas favoritas, logo, não estava arrependido. Quanto ao resto alguém havia de limpar.
Acabei por sentir um certo afecto por tudo aquilo. Sou um tipo sentimental apesar de tudo. Pode-se dizer, depois do quadro completo com toda a sua ironia, que existe aqui um bom argumento.
Agora queria apenas contemplar todo aquele ambiente de cabaret negro, com a sua música entusiasmada, a sua decoração vintage salpicada de carmesim, e hoje, completada com uma história violenta.

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Nós os básicos


As prioridades que existem na vida, se forem mal escolhidas, podem fazer com que as pessoas se apaguem aos olhos dos outros. E acontece assim tantas vezes… Em troca de um ideal errado, um emprego que aprisiona, obrigações fruto de chantagens emocionais por gente egoísta e outras tantas situações insensíveis, vai-se perdendo o tempo e a alegria.
Esvai-se a energia, a juventude, os sonhos e a própria felicidade para um esgoto de desculpas. Adia-se para um eterno amanhã aquilo que se deve viver hoje. Pega-se numa borracha qualquer e vai-se apagando a personalidade até que a existência se transforme num fantasma vivente.
O querer que não vai além da rotina. De casa para o trabalho onde as horas se esgotam, de regresso ao lar e à dormência da televisão e dos pequenos luxos que nos aguardam. Um pouco de esplanada para enganar o vazio. Uma conversa banal, com um dito amigo banal, porque na realidade tudo é banal, mantêm a ilusão de que afinal as coisas até são empolgantes. Mas é tudo mentira.
Espera-se o fim-de-semana para nos dar um pouco de liberdade, embora esta esteja limitada por tudo que nos adormece. Aguardam-se as férias como se fossem um prémio por bom comportamento. Um pequeno momento onde se pode atravessar a linha do horizonte com as poupanças da própria venda do melhor que há em nós. Sempre cientes que o mais importante é voltar a tempo e horas.
Cães bem-mandados. Criancinhas bem comportadas. Carneirinhos obedientes! Seja qual for a denominação que seja num profundo sentido pejorativo, pois em nós já não existe ânsia real por aventura! Fomos formatados, moldados e amestrados para nos encaixarmos na máquina a que chamamos sociedade. Essa é a mais profunda verdade!
Amamos o pré-concebido. Queremos o que toda a gente quer (mesmo que nos seja vendido com único). Veneramos o cárcere como se nos acolhesse, quando este nos excluiu sempre que necessário de forma fácil e impessoal. Não há compaixão aqui! Somos facilmente substituídos porque todos fazemos o mesmo.
Queixar-me não faz qualquer diferença. Toda a gente o faz em algum momento.
Fugir? É preciso coragem e mente aberta para seguir outro destino.
Mesmo assim, porque não colocamos em primeiro lugar aqueles e aquilo que nos faz bem?...