terça-feira, setembro 29, 2020

Simetria entre opostos


Já reparaste que tudo é resultado de um equilíbrio entre as forças cósmicas deste mundo. As estrelas mantêm-se a brilhar no firmamento devido à perfeição matemática da criação. Todos os corpos celestes existem em harmonia pela métrica imaculada do universo.
Acredito que o segredo da felicidade consiste na simetria entre opostos. O amor e o ódio; a raiva e a serenidade; o luxo e a pobreza; o pesado e o leve; o belo e o feio… Enfim, todas as dualidades opostas com o mesmo peso na balança. 
O caminho do centro é o certo. Convém é que sejamos nós, com sinceridade, a avaliar as medidas. É aqui que toda a razão falha. Confiar essa missão a seres de instinto duvidoso, como somos, certos apenas da nossa verdade, é por si só, uma ideia condenada ao fracasso.
Há que saber que apesar de criarmos uma consciência que nos dá a ilusão de sermos seres individuais, não somos cientes, ou sábios, nem conhecedores de grandes segredos. Aquilo que sabemos não é nada em comparação com a imensidão do infinito. Uma piada perante a perfeição. Um ultraje até à mera ideia de criação.
Regressemos ao início, desde o chamado "big bang" a todos os acontecimentos que foram surgindo em cadeia para que estivéssemos aqui. Humanóides. Dois braços e duas pernas. Homens e mulheres. Cada um com o seu cérebro dito inteligente. Animais racionais a brincar às divindades, ou meramente à sobrevivência.
Desde o aparecimento da luz, que deu lugar ao firmamento, ao surgimento da dita civilização, aos amores dos teus antepassados, ao momento da tua concepção, ao teu parto, e culminar na tua história pessoal. Há uma grandeza exageradamente espectacular nisto tudo. Não achas?
Contudo, teimamos na incompreensão e vamos seguindo, ignorantes…
Os opostos atraem-se mas não se completam. Equilibram-se. Cada um dos seu lado da teimosia. Eu sou éter e tu és chão. A dimensão do pensamento em oposição ao horizonte do autêntico. Cada qual com a sua legitimidade, embora sem saber ao certo o seu lugar para que o equilíbrio se mantenha.
Depois, tudo se torna complicado. Uma excentricidade de doutrinas e ciências que vão tentando romper um caminho a que chamamos sabedoria. Um emaranhado de sentidos que apontam para todas as direcções: perfeitamente opostos e perfeitamente simétricos!

terça-feira, setembro 22, 2020

A ilha de "Lost"

Setembro é um mês agridoce. Tem no seu ventre o conforto caloroso do verão e em simultâneo abre as portas do outono e traz consigo os primeiros dias invernosos. No entanto esta história aconteceu no fim de um dia quente. Quando a noite começa a cair e as primeiras estrelas convidam a olhar o céu. 

– "Gosti" –  disse com uma certa meiguice que só ela sabia ter. 

– Como quem gosta de quê? – Questionou ele, não porque duvida-se, mas porque gostava de viajar nas palavras dela. 

– Como quem gosta da lua cheia. – Respondeu sorrindo, sem timidez. 

– Desenvolve. – Insistiu ele com alguma frieza, tal como seria interpretada por quem não o conhecesse.

– Daquelas gigantes que hipnotizam! – Concluiu ela.

– Já eu, gosto de ti como uma ilha deserta. Daquelas com praias fantásticas e florestas  supertranquilas. Mas depois, quando começamos a explorar, vamos encontrando vários mistérios cativantes. Tipo aquela ilha de "Lost". – Disse ele narrando as palavras de forma a dar corpo ao sentimento.

– Ganhaste no desenvolvimento. – Comentou ela refugiando-se no sorriso.

– Também podias ter desenvolvido mais. Se quiseres continuar eu não me queixo… – Lançou-lhe o desafio, apesar de saber que seria difícil obter a continuação, já que as suas confidências são raras.

– Agora não. Tenho de ir […]. – Deixou de a escutar no momento em que disse que tinha de fazer uma mundanice qualquer. As banalidades do mundo sempre foram demasiado aborrecidas para ele. Principalmente na companhia dela. 

Contentou-se com a resposta expectável. Já sabia que ela era assim, fugidia. Chega, deixa o mistério no ar e depois vai embora com um pretexto qualquer. Não se importou em demasia. Tinha conseguido que ela lhe oferecesse um pouco do seu tempo gratuitamente. Isso para ele era muito.

A conversa talvez continuasse depois, num dia qualquer, noutro momento em que a poesia estivesse presente na decoração da natureza. Ou então, quando os sentimentos tentassem enganar a inquietude e tomassem as palavras por escape.

Contemplou o anoitecer. Não é preciso ser poeta, ou artista, para interpretar a beleza das estrelas no céu a brilhar numa noite amena. Basta gostar da tranquilidade que vai surgindo como recompensa depois da confusão dos afazeres humanos.

De certa forma aquela conversa continuava, silenciosa e distante. Como tantas outras que aconteceram antes. Pintada no cenário sossegado da noite que cai e das estrelas que cintilam ao fazer viajar a imaginação...


segunda-feira, setembro 14, 2020

Qual é o teu sonho?

Nunca compreendi porque chamam "sonhos" aos nossos projectos, ideias, ou ambições. Sonhar é algo que pertence ao sono. Uma realidade abstracta que ocorre enquanto dormimos, sem relevância maior, destinada apenas ao esquecimento. 

Dizem os entendidos que é o cérebro, com os seus mistérios, a reordenar os pensamentos. Nada de especial, portanto. Pelo contrário até, apenas um computador a desfragmentar toda a sua informação. Visto por este prisma nada existe de extraordinário em sonhar. Ainda que, tenho de admitir, seja algo que levante curiosidade pela sua excentricidade. 

Mas voltando ao pensamento inicial, aplicar o termo "sonhar" para aquilo que desejamos, indica, só por si mesmo, algo não realizável. 

Não! Eu não "sonho" dessa forma! 

Prefiro expressões como fantasioso, imaginativo, inconformado, visionário, idealista! 

Não! Não me perguntem qual é o meu "sonho"! 

Eu sou daqui. Não estou a dormir. Estou acordado. Talvez até demais. 

Estar acordado por vezes dói mas só assim consigo ver com precisão as linhas com que é tecido o mundo. A realidade crua em que a nossa forma se perde entre os chamados "sonhos por realizar". 

Posso imaginar uma utopia, impossível do ponto de vista humano, contudo se a descrever numas quantas linhas esta passa a ter o estatuto de ideia. Depois, quem sabe, pode inspirar outros, com saber suficiente para a tornar realidade. 

Seja como for, a fantasia que criei acordado, ganhou forma. Algo palpável para quem compreende a linguagem dos que pensam para lá da linha do horizonte.

A maior parte das pessoas, desses que têm "sonhos", são os mesmos que excluem gente como nós. Os que vivemos rodeados por arte e poesia. Nós, os que conhecem a realidade e sabem que ela não basta.

Tu, que estás aí desse lado, a ler estas palavras e identificas-te nelas como se fossem as tuas próprias, fica a saber que a tua condição não é única, muito menos isolada. És somente fruto do desprezo de quem não consegue ver mais do que os limites pelos quais são rodeados. 

Não aceites os julgamentos nem conselhos dessa gente comum. Dizem que "sonham" e por isso acham-se diferentes. Não passam de cópias uns dos outros. Do nosso mundo não sabem nada e nós também não os queremos cá! 

Deste lado da fantasia só as nossas verdades nos podem orientar!


segunda-feira, setembro 07, 2020

Interlúdio entre o dormir


Despertei a uma hora inexistente da madrugada. Os outros lá de casa dormiam no mais profundo silêncio do seu descanso. Como se fossem somente parte do cenário. Apenas sombras por distinguir na penumbra. Vultos cuja história caiu em esquecimento.
Na escuridão pareciam evidenciar-se cores que não conhecia. Tonalidades berrantes que desafiavam a realidade. Sei que não estava a sonhar nem tão pouco semi-desperto. Quem sabe, estava num estado de consciência ainda desconhecido da sabedoria humana. Um momento longe do real que, talvez mais tarde, fosse remetido ao esquecimento do verdadeiro acordar.
Sabia apenas que a noite já ia longa e a manhã não devia tardar muito. Não procurei o relógio, creio que tentar orientar-me no tempo ia destruir a incógnita do momento. É um acto de heresia estragar o mistério de ocasiões assim, onde o pensamento se eleva acima da carne humana e da ciência que a rege.
Por vezes, acontecem revelações em instantes como este. Sem percepção temporal da sua dimensão. Embora, desta vez não tenha nada em especial a desafiar a minha inquietação. Ou, quem sabe, estava demasiado desatento para conseguir entender qualquer epifania nocturna. 
Para além do desassossego não entendi outro propósito. Eu, com os meus devaneios, numa tentativa poética de transcender a banalidade. Creio que foi só isso. Nada com uma grandiosidade que mereça relevo nos porquês da existência.
Baixei as pálpebras e busquei conforto na roupa da cama para regressar novamente ao sono. Sei apenas que este chegou novamente para camuflar os meus pensamentos neste simples interlúdio entre o dormir. 
Contudo, de forma contrária ao esperado, o dia, na sua lucidez, recordou-me este momento. Algo que provavelmente não passou de meros segundos perdidos entre sonhos. Sem qualquer importância, mas que teima em desafiar a minha compreensão.
Seja como for, não ousei descartar o seu mistério. Gosto destes pequenos nadas que tanta coisa dizem. Há sempre algo que se esconde por detrás daquilo que não tem significado. Não consigo interpretar o seu intento e possivelmente seja esse o seu fascínio. 
Coisas pequenas que se vão acumulando na enormidade do pensar. Nada de especial com tanto para reflectir. Se não fosse assim a condição humana era crua, sem temperos e insuportável. Para concluir o devaneio, envolvo-me em pensamentos sobre coisa nenhuma e isso é lindo!

quinta-feira, setembro 03, 2020

Fulana, sicrana e beltrana

Acordei com o som de umas senhoras animadas que conversavam na rua. A julgar pelo timbre da voz, diria que a idade já lhes pesava um pouco, mas não o suficiente para lhes roubar o vigor das palavras. 

No meu quarto não consegui perceber o teor da amena cavaqueira. Aqui e ali conseguia compreender qualquer coisa, embora não fosse preciso grande especialista para chegar à conclusão de que se tratavam de coscuvilhices. 

Não estava totalmente desperto mas certos fragmentos ditos chegavam a mim: "Fulana isto, sicrana aquilo, beltrana acoloutro". Alguns vocábulos que o meu ouvido captava e denunciavam o tema daquele falatório matinal. 

No meio das frases por vezes surgia uma gargalhada que se contagiava a todas as outras intervenientes, já, logo de seguida, o tom das vozes baixava quase para murmúrios completamente imperceptíveis. O assunto, por vezes, mudava de sentido rapidamente. 

Achei toda aquela cena divertida e caricata. O estereótipo de velhas alcoviteiras ali mesmo ao pé de mim, vivo, na pele enrugada daquelas mulheres sem pressa.  Entretidas com a sua tagarelice que me serviu de despertador.

Não me levantei para observar pela janela os seus rostos. Em vez disso deixei-me ficar na cama com a figura delas a ser desenhada pela minha imaginação. Acredito que a recordação tem mais piada assim. Não quis que a realidade me estragasse a imagem.

O sono tinha cumprido a sua função de retemperar as minhas forças físicas e anímicas. Não havia melancolia, nem irritação, só uma preguiça banal, típica no ser humano comum. Fiquei grato por ser dessa maneira. Acordar de forma banal sem o peso do sentir.

A manhã começou assim entre vocábulos alheios. Com uma pequena história, sem nada de verdadeiramente interessante, para contar. De qualquer maneira decidi aceitá-la como uma dádiva e como recompensa decidi transcrevê-la sobre a forma de conto, mesmo que desinteressante.

É tão simples quanto isto. Sem me preocupar com ideias magnificentes, deixo por escrito, em palavras embelezadas, para que conste no futuro a quem por aqui passe a ler, de que, neste dia em particular, acordei contente!