sábado, fevereiro 24, 2018

Quem acha que pode mudar o mundo


O vampiro apaixonou-se. Aconteceu com a brandura e a leveza de uma simples brisa. Até um monstro pode amar quando a serenidade assim convida. É tão difícil resistir a um rosto com luz própria!
Deus criou a perfeição no olhar de quem cora facilmente. É impossível suportar o arrepio que emana de uma troca de olhares; sorrisos que nascem tímidos pelo canto da boca; o riso contagiante de uma piada tola. Não há como resistir a uma alma cheia de vida!
Há também a beleza e a jovialidade. A pele perfeita de quem ainda não sentiu a amargura do viver. Os sonhos imaculados de quem acha que ainda pode mudar o mundo. A magia de uma alma gentil!
Como é que o vampiro não se podia apaixonar? Ainda que o amor fosse breve e frágil como uma flor que perde as pétalas, a atração é mais forte do que a natureza. O calor mais urgente do que a noite. O amar, mesmo que efémero, mais intenso do que o vazio!
O martírio chega no amanhã e na banalidade que cobre o ser. O cansaço da rotina, do mesmo corpo, do mesmo poema, do dia que está tão longe. Sai vencedora, como sempre, a perdição dos filhos da noite, ao enganar a inocência com o brilho feiticeiro da lua!
O vampiro esqueceu-se que afinal a paixão era mentira. Não tinha esse direito, reservado aos filhos do dia. Deixou-se encobrir na escuridão e no esquecimento. Mas não sem antes reclamar o sangue quente da jovem que o iludiu com esperança!
A voz terna, que antes encantava, deu lugar a um grito desesperado. Como quem sente o mergulho no terror mais absoluto do abismo. Esse é o tormento de quem perde a sua fantasia pelas mãos daqueles que se alimentam do sonhar dos outros!
O vampiro bebeu até se saciar. Saboreou ideais, viveres e amanhãs, para que nos seus dentes tudo se calasse. Um monstro merece o seu prémio depois de sentir o cheiro da luz. Depois tudo volta ao silêncio e a um secreto devaneio, que talvez um dia possa amar…

sábado, fevereiro 17, 2018

Identidade absurda


Uma solidão imensa tomou conta das ruas da vila. Não há trânsito. Os estacionamentos estão vazios. O céu está cinzento. Nuvens ameaçadoras anunciam que vai chover a qualquer momento. Sopra um vento do sul trazendo consigo uma caricia fria. Como não há sol que aqueça o corpo e a alma, o mundo parece ainda mais gelado do que realmente é.
Aqui e ali silhuetas humanas percorrem a calçada num passo lento e perdido. São os esquecidos cuja dor se agiganta em dias como este. Gente sem nome, como espectros, que se atrevem onde os outros não encontram conforto. Buscam, fora do vazio do lar, uma outra alma vivente com quem possam cruzar um olhar e um cumprimento, como uma esmola atirada a quem mendiga, para que dessa forma possam roubar à solidão um instante de companhia.
A inquietação toma conta da mente dos poetas em dias assim. Sem amor que os salve da própria identidade absurda. Refugiam-se em horas inebriadas pela loucura, visto ser insuportável encarar a sobriedade a quem não se basta com a própria pele. As ideias são maiores que o mundo e o pensamento infinito como o universo. Ainda assim, não há um lugar que acolha quem pertença a lado nenhum.
Estar infindavelmente perdido é uma forma de viver. Sem graça, nem tronos, ou glórias. Raça escorraçada de qualquer paraíso, abaixo de todas as castas. Dói no próprio ser o martírio de existir. Por isso palmilham-se as ruas caladas com receio da intempérie. Com as suas gentes mansas recolhidas na comodidade de quatro paredes e um tecto. Que sabem eles da bênção amaldiçoada que é estar em constante desassossego?
A escuridão adensa-se nos céus enublados. Misto de anoitecer e a chuva que ameaça. Deambular sem destino não é sensato mesmo para um desajustado, quando a natureza exibe o seu poder. Também eu devo recolher-me…
Talvez a noite traga a tempestade.
Talvez o sonhar traga a companhia.
Talvez o adormecer engane a saudade de uma vida não vivida.
Talvez a chuva engane a saudade de uma vida por viver.
Talvez tudo que tenha ficado por dizer, tenha sido dito no esquecimento que o tempo traz.

sábado, fevereiro 10, 2018

Hot Rod


A estrada é longa, sem fim à vista. Não me importo, é melhor assim. Sabe bem percorrer um caminho extenso cheio de aventuras, cenários memoráveis, com pessoas que me preencham de histórias e sabedoria. Engrandece-se o eremita que sou, canta o viajante que me fiz, solto a audácia que me impele a seguir em frente a lugares onde o viver é intenso.
Acelero a fundo pelo asfalto livre. O motor responde com potência. Os tempos, as existências e a fantasia misturaram-se. Debaixo do aspecto clássico do automóvel está uma máquina impulsionada por um combustível desconhecido. Pouco me importa que seja movido a energia nuclear ou a éter mágico, não sou mecânico. Tudo que quero é ir onde a poesia me chamar.
Não me dei a mim mesmo um nome, talvez receba esse mérito quanto encontrar um destino, seja ele um tempo, um nascer, ou um poema. Tento recordar o início da viagem, quem sabe num sonho qualquer, ou num incentivo de um jovem curioso. Sobra-me a memória de entrar naquele carro construído com passado e futuro debaixo de olhares indiscretos.
Ainda é cedo para saber quem sou, portanto não me importo com isso. Afundo ainda mais o pé e uma nova paisagem abre-se como uma janela. Dou por mim a cruzar o infinito entre estrelas que surgem e fogem em breves ápices para quem as observa. Desacelero para contemplar este jardim feito de brilho onde desabrocha o mistério da criação.
A beleza é importante, assim como o calor de quem ama. Uma nova janela abre e entro naquilo que posso descrever apenas como o sentir do primeiro amor. O aconchego da inocência na pele perfeita da juventude. Imaginar um futuro sem saber que a dor existe. A ingenuidade de ser criança faz com que os devaneios tenham mais sabor.
Ficou claro que não pertencia ali, embora tenha agradecido o momento. Segui para outras paragens. Alternavam-se as noites e os dias, a cor e o frio, a paz e o ódio. Atravessava mundos escondidos no sentir da vivência humana. Experimentei várias sensações pela perspetiva de incontáveis juízos. Enveredei por trilhos ligados pelo entender de quem procura a imensidão.
Reencontrei-me com nome, corpo e história, como quem desperta de sonhar acordado pela atenção de um qualquer sentido humano. Dei por mim desperto (ou adormecido). À minha volta um panorama e rostos familiares, ainda assim desconhecidos. Já não havia um carro impossível, nem estrelas a dançar. A viagem terminou? Certamente que não!
Alguém chama o meu nome. Há! É esse! Lembrei-me de quem era afinal naquele existir. A aventura tinha sido real. Muito para além de mim. Mesmo sem explicação, ou cingida à minha fantasia. Não encontrei um destino. Nem sei se era sonho ou lembrança. Talvez fosse apenas um instante perdido, num segundo em que a imaginação me levou para longe com todo o seu saber.