domingo, dezembro 30, 2018

Pudesse o Universo ser todo poesia...


O teu nome na manhã, pintado nas palavras do despertar. Tem paladar de arco-íris e toque de sonhos a acontecer. És sinónimo de nascer do sol num dia luminoso e a tua imagem é semelhante à Primavera. Tudo em ti é um convite à vida!
Pudesse o Universo ser todo poesia, para que a nossa fuga não tivesse horizontes. Sem limites que ousassem impor-se por todas as paisagens impossíveis que visitássemos. Tudo isto na glória absoluta de um olhar profundo!
Há um descontentamento perpétuo em redor da nossa humanidade. Cabe a nós, viajantes nos pensamentos da madrugada emancipar-nos face ao medo que mora dentro da pele. Sem saber o infinito, desenhamos na sinestesia dos sentidos momentos de perfeição!
Talvez não sejamos muito mais do que o Pó das Estrelas que nos molda. Ainda assim somos como magia, na imaginação inocente de uma criança; ou beleza no seu estado mais puro, entre os desígnios de um qualquer deus consagrado à arte!
Sei-te, tal como também me sabes a mim, em passos delicados pelo mundo que há em nós. Sem a pressa do conhecer, ou a tirania do dominar. Apenas sermos imensos entre os recantos mais iluminados das nossas profundezas mais escondidas.
Ouvem-se ondas ao longe quando tu estás. És amena como o Verão; serena como o caos que se cala. O calor emana nas vozes coloridas da nossa tela, e nos silêncios quietos do nosso sorrir. A intimidade vai-se entrelaçando nos dedos que brincam. Sempre e tudo; tu e eu!

segunda-feira, dezembro 24, 2018

«Um Bom Natal!»


«Um Bom Natal!» O homem deu assim os seus votos num tom de voz determinado. Quase como se este «Um Bom Natal!» fosse uma presença física, em vez de apenas um espaço temporal associado a rituais de afectividade.
As recepcionistas devolveram os votos, com a simpatia habitual, embora sem o conteúdo encorpado daquele «Um Bom Natal!», afirmado com a certeza absoluta do significado, quase saudosista, das palavras «Um Bom Natal!»
A firmeza bem-intencionada do homem captou-me a atenção para este «Um Bom Natal!», que podia ser apenas mais, um de entre os muitos, quase mecânicos, que tinha ouvido até ali. «Um Bom Natal!» concreto e perfeito, dito com toda a franqueza.
A sinceridade foi profunda. De tal maneira que quase transformou aquele «Um Bom Natal!» numa ordem a cumprir. «Um Bom Natal!» Mais forte que o peso da melancolia, do frio, ou da sorte. Só um querer bem, honesto, expressado com toda a convicção!

quarta-feira, dezembro 19, 2018

Como gente de carne e osso


Anoitece e o frio chega. Estou sozinho, enquanto a iluminação da rua se humilha na comparação com o sol que se esconde. Ainda assim, conforta-me alguma luz vazia.
Vem também humidade. Incómoda, que me morde a pele e pica a alma. Entranha-se adormecida no meu ânimo. Mesmo assim desperta-me. Estou acordado entre o pensar e o ser.
Hoje conheço-me. Escrevo-me com força implacável, em gentileza de guerreiro, violência de poeta, telepatia de amante. Filho do desejo. Poucas vezes me entendo assim, como gente de carne e osso, sem nada mais que me roube a atenção do mundo que me cerca.
Há os sons, as cores e os sentidos atentos a todos os estímulos. Encontro em mim vontade de acontecer. Tenho certezas banhadas com energia impulsiva. Sonhos nascidos da origem do impossível. Uma explosão de criatividade prestes a ganhar vida.
Ouvem-se vozes, tão banais quanto interessantes. Mostram-se rostos, cheios de histórias escondidas. Faz-me falta o toque noutro igual. Afinal de contas também sou um deles a baloiçar entre dramas e conquistas. Tenho vontades, ideias e esboços. Caí na derrota, elevei-me na vitória. Nada de especial se comparado aos demais, também eles entre o auge e o nulo.
Nos traços do meu semblante transcrevo tudo isto, como fazem os outros, mesmo sem o saberem. Deixo que o meu olhar fale uma língua calada, tal como falam os que amam (ou odeiam). Mesmo assim sei-me único, sem ostentar demais a minha singularidade. Não vá surgir quem me copie, ou pior, que seja eu a copiar alguém, ainda que de forma inconsciente. Simplesmente tomo consciência da minha pequena grandiosidade numa dança de pensamento e movimento. Tal como tu, entre todas as diferenças.

domingo, dezembro 09, 2018

O aconchegar


A noção de consciência tomou-me, mesmo ainda ciente do cansaço. Abri os olhos por momentos, no que julgava ser ainda a fase do adormecer. A ténue luminosidade matinal do quarto anunciava o contrário. Estava sim, a despertar.
A noite passou num instante imperceptível à mente. O sono não trouxe sonhos, nem ideias refrescantes, muito menos um descanso digno ao corpo. Foi como um piscar de olhos que atravessou a madrugada à velocidade do vazio.
Aconcheguei-me melhor nos cobertores, o tempo arrefeceu e dava-lhes uma sensação de leveza. Algo em mim ainda dormia, uma parte essencial que me impedia de acordar completamente. Talvez fosse esse o sonho que não aconteceu quando devia, daí a preguiça de me levantar para ligar o aquecimento.
Não olhei para o relógio, ainda estava demasiado apático. Supus apenas que ainda era cedo pela falta de sons que denunciassem movimento no exterior. Deixei-me levar pelo abraço do conforto quente das mantas. Rapidamente voltei a entregar-me para mais uma viagem despida de pensamento.
Desta vez foi breve, até que o sol, numa manifestação particularmente luminosa, me despertasse no momento certo. Talvez tenha passado uma hora, ou duas, ou meia… Não sei e pouco ou nada interessa. Já não sentia o cansaço, pois o sono tinha cumprido o seu dever.
Restou-me na memória aquele interlúdio passivo, que possivelmente não passou de um instinto natural do corpo para buscar aconchego face ao frio. Apenas uma história, sem moral, ou qualquer objectivo que a mereça ser lembrada. Ainda assim, decidi recordá-la. Quem sabe um dia encontre nela um mistério…

terça-feira, novembro 27, 2018

Estai atentos


Atenção! Anda por aí gente que diz ser Feliz!
E muito cuidado, porque falam a sério!
Há no mundo quem não queira competir, ou ser digno de uma qualquer posição de destaque, nem plantar inveja nos canteiros alheios a troco de falta de serenidade. Somente apreciar os pequenos prazeres da vida sem a pressa dos ansiosos.
Querem estes, saber de cor todas as estrofes do Amor. Por isso vão cantando em cada caminho métricas de satisfação, nos sorrisos leves da alegria genuína e nas conversas coloridas ao abrigo da amizade.
São como paisagens imensas, irradiadas de pormenores e contrastes, com horizontes que convidam a viajar no Universo que escondem em si. Trazem o Verão nas palavras e a euforia no olhar.
Aqueles de nós, que se perdem no cinzento, não prestam atenção a estes seres que vão adocicando as ruas amargas. Mas eles existem! Como nos mitos ou nos contos de encantar. O segredo é reparar no que é simples, eles estão lá. Não esperam por nós, mesmo estando prontos a nos acolher.
Atenção! Que anda por aí gente que espalha felicidade!
E muito cuidado, porque também nós temos o direito a ser felizes!

sábado, novembro 17, 2018

Entre os cacos do viver


Sei da tua companhia, oculta por detrás do silêncio do teu sorriso distante.
Reconheço um outro eu na tua forma, espelhada em cacos do viver. O pensamento deformado pelas cicatrizes do crescimento, amargo e agreste. Vergastadas implacáveis nas costas de quem sonha. A dor é constante na memória, mesmo quando adormecida.
Conheço a tua angústia, perfeitamente escudada pela muralha da tua aparência.
Há uma certa poesia erógena nas palavras (quando as há), trocadas como esperança, de quem se aconchega em estilhaços iguais. Sentenças de melancolia, que se traduzem em versos sem nexo porque a humanidade não basta.
Acaricio na inquietude a tua solidão, tão palpável quanto a pele.
Pouco se pode acrescentar quando duas existências se completam. Ou assim o julgam, tal a semelhança do seu fado. As vozes nada trazem de novo. Talvez os olhares se reconheçam nas cores berrantes do vazio. Só isso, o resto é aconchego.

segunda-feira, novembro 12, 2018

A afirmação


Mas afinal, o que sei eu de gente?
O bicho homem glorifica-se porque, na sua evolução, alcançou o dom do entendimento. Dominar a linguagem, construir e engendrar, acima de qualquer outro ser vivente, que tem a Terra como lar. Ganhou, assim, a recompensa absoluta da arrogância.
No entanto, diz a lógica de quem se compara em tamanho e inteligência, com o enigma do infinito, que a pequenez é a única afirmação que se pode declarar com o mínimo de certeza.
Mas, se restringir a minha observação da existência aos limites que a sociedade, presunçosa, afirma como serem os canónicos, interpreto-me com o estatuto de semidivindade. Portanto, nada mais admito que a perfeição para mim mesmo. Sendo o que me rodeia um Olimpo imaculado, livre de manchas, ou defeitos. Tudo o resto é despojado de atenção e rejeitado com fúria intolerante.
Depois há os sentimentos, elevados ao estatuto máximo do respeito, mesmo quando fadados ao apogeu da tragédia. Contudo, suponho que seja essa a força motriz da esperança e da crença na humanidade. Nunca esquecer a obrigação de acreditar na felicidade e no amor, mesmo que estes sejam miragens, ou instintos animais para que a nossa prole continue a senda que nos guiou.
Ou talvez tudo isto sejam devaneios e ilusões de um ignorante sem canto onde se abeirar, porque um dia decidiu procurar a verdade nas entrelinhas do viver, até que a realidade se dissipou (ou aumentou para lá dos horizontes da compreensão).
Barbaridades transcritas em palavras ocas. Se as decidisse apregoar ao mundo, certamente haveriam ouvidos para as acolher e outros para as odiar sem medida. Isto, sem que antes questionassem a sua lógica.
É assim que julgo os meus iguais. Entre a confusão de opostos que se foram gerando na dita evolução. Numa réstia de bom-senso opto por não tomar partido. Até porque, não procuro seguidores, nem tão pouco inimigos. Aguardo que lá pelo meio, a minha opinião passe despercebida entre todas as outras. A minha autoridade é duvidosa. Eu próprio me interrogo:
Mas afinal, o que sei eu de gente?

sexta-feira, novembro 02, 2018

A parte incerta do imaginar


O silêncio é profundo e o Universo entoa o seu cântico. O “nada” que sou agiganta-se numa imensidão de sentidos transcendentes. A profundidade da vida revela-se na sua essência mais pura, dentro do ventre do caos, onde as sombras e a luz se completam na mais absurda perfeição.
De mim, afinal, pouco sei, além da melancolia fria que deseja invadir-me o pensamento vadio. Quedo-me introspectivo no fim de tarde cinzento, entre as palavras levadas pelo Outono e as ideias sem cor que se passeiam pela mente. O mistério da existência revela-se sem que o possa compreender.
A Natureza assim se fez, ditada pelas regras do cosmos, em constante movimento infinito. Os ciclos repetem-se em saltos entre o dia e a noite; o calor e o gelo; a cor e a chuva. Assim também somos nós, seus filhos, integrantes em plenitude na coreografia das estrelas. O segredo está escondido na parte incerta do imaginar.
Algures deve existir uma voz; uma indicação; um sentido para quem se perde na imensidão do desconhecido da alma. Eremitas errantes por momentos esquecidos, como quem viaja por países estranhos, em desafio constante à noção de entendimento. Apenas tentativas frustradas de dar corpo ao enigma do ser…

sábado, outubro 27, 2018

Companhia de quem não a sabe


Amo.
No negrume da minha alma.
No fogo dos meus demónios.
No silêncio da verdade.
Não sinto falta da paixão porque amar estilhaços completa o caos de quem é imperfeito.
O corpo não me pede o toque, nem a vontade animal de saborear o grito de dor e prazer que se solta na pele.
Assustam-me os beijos que te dão a conhecer como porta aberta para a angústia. Mesmo assim sabem a paraíso depois que as palavras falam (ou calam).
Há a telepatia. Silêncios corpóreos esquecidos nos momentos solitários, como companhia de quem não a sabe, ainda assim, não esquece.
Pouco mais há dizer porque já não sei falar de amor.
Desfigurado.
Despedaçado.
Mutilado.
Esmagado sobre o próprio peso do romance.
Castrado com ilusões bizarras de imortalidade.
A felicidade desvaneceu, quando a ditadura do comum a anunciou como decreto a seguir. Sábios e néscios cingiram-se a este objectivo, sem nunca o conseguir, pois nada imaginam do impossível.
Resta a fantasia dos que navegam na insónia que corteja a madrugada.
Dizem poesia.
Dizem heresias.
Dizem ideias perdidas na noite.
Canta-se o teu nome nos sentidos desconhecidos a quem não sonha.
Não existe adormecer, nem vontade de acordar, só os segredos do inefável e o infinito nem começou ainda…

quinta-feira, outubro 18, 2018

Castigo ou recompensa


Hoje o sono é mais forte que a alma. O adormecer é um país maldito. A vida ficou adiada para um amanhã qualquer, se Deus quiser, ou se a vontade lembrar.
Um passado que nunca aconteceu é o resultado do cansaço que sinto. A apatia é o conforto, na fadiga que entorpece o corpo. Algures deve existir o direito à alienação quando o alento se esgota.
A carne tem os seus limites, quando os músculos acusam o desgaste da ausência de ímpeto. O mundo parece desvanecer num pensamento inútil. Nada mais importa a não ser o vazio do descanso, seja ele uma recompensa, ou um castigo a cumprir por desejar viver em demasia.
Dou-me por vencido e faço de mim esquecimento. Queria escrever algo mais na minha história cheia de gloriosas insignificâncias, mas as pálpebras pesam mais do que a sedução da madrugada.

quinta-feira, outubro 11, 2018

Quem se julga apaixonado


Ando à procura da Lua, na noite amena do Outono calado.

Ando à procura de mim, sem pressa de me encontrar, no espelho do céu que escurece lentamente.

Ando à procura de um verso onde me sinta aconchegado, tal como um filho se sente amado no regaço quente da mãe.

Ando à procura das ruas que se esvaziam, purgadas das pessoas que fogem para a ilusão do seu lar.

Ando à procura do oculto, nas estrelas longínquas que desenham os sonhos de quem se julga apaixonado.

Ando à procura das cores que se escondem na noite, como quem acredita na mais profunda felicidade.

Ando à procura de um nome, escrito a dor, no ser incompleto e na pele cicatrizada.

Ando à procura do vazio mais perfeito, sem encontro possível para quem sente a alma inquieta.

Ando à procura do que não sei, porque tudo que conheço não interessa.

sexta-feira, setembro 14, 2018

Um bicho como os outros


A solidão sabe sempre melhor na companhia da Natureza. Onde tudo cresce espontaneamente no compasso da ordem natural, sem que ninguém, a não ser a vontade do Universo, interfira na sua essência.
Posso-me fundir com todo o resto aqui. Sou apenas mais um bicho, como os outros que por aqui andam. Sejam pássaros, sapos, lagartixas, libelinhas, ou moscas. Tudo no seu devido lugar. Exactamente onde é suposto estar, tal como o Universo quer. Esta é a oração sublime de quem medita. Para aqueles que se esquecem do que está lá fora, e afinal não importa, quando a finalidade é a Paz interior.
O barulho aqui está isento de palavras. Se a tranquilidade tem som, este é o da água que corre no riacho, os chilreios apaixonados dos pássaros, ou a brisa que vai sacudindo as folhas das árvores. Sem ruídos que poluam os sentidos.
A linguagem perfeita é esta. Em harmonia com as cores de um arco-íris pintado a fauna e flora, na tela da perfeição. Há a quietude, tão longa quanto o tempo que para. O sabor da vida degustado no cheiro fresco da renovação.

segunda-feira, setembro 10, 2018

Conhecer os extremos


Há dias em que nada faz sentido. Suponho eu, que, afinal, é assim que deve ser.
Querer saber o motor e o propósito de todas as coisas, é uma ambição demasiado grande para quem se limita a deambular sobre a Terra. No entanto, quem prova o veneno da curiosidade e da poesia, sente a tormenta insaciável de querer ir mais além. A inquietação começa quando se toma percepção da pequenez da existência. Tudo o resto é infinito, logo, surge a questão do porquê de tudo isto?
O pecado da sabedoria foi a queda de Adão e Eva. Esse também é o destino daqueles que sonham, privados da doce dádiva que é a ignorância. Compreender que se tem sentimentos, dentro da fragilidade da pele, é o princípio da tormenta. Saber que o amor existe é ter noção que a melancolia também lá está. Conhecer os extremos, aqueles que tomam conta do ser, é tumultuoso.
Hoje nada faz sentido. Suponho eu, que, afinal, encontro uma certa paz nesta desorientação. Talvez seja por isso que perceba, que é a partir daqui que deva encontrar um rumo, entre todas as incertezas que compõem aquilo que sou. Talvez seja este o enigma da construção humana, da curiosidade à interrogação; duma suposta resposta à evolução. Equações feitas de cores, palavras e acordes que se propõem a ordenar um aparente caos.
Afinal tudo faz sentido. Quando despimos aquilo que julgamos saber, para dar lugar a novos propósitos e deixar que a história seja sempre um constante início…

quarta-feira, setembro 05, 2018

Entre o mar e as estrelas (O Narrador XI)


Sabes aquela sensação que tens quando colocas os teus pés descalços na areia da praia e enterras os dedos. Sentes a brisa fresca a bater-te no corpo. O som do mar e o seu cheiro característico. Abres os braços, como quem abraça os pormenores que a mãe natureza reservou para te inundar os sentidos de liberdade. Só tu, a praia e o mar, onde não existem os outros. Sem as leis que governam os homens, com as suas manias complicadas. O peso do trabalho. O conforto da casa. As preocupações e os amores. Sem medos… Até a solidão se desmarca do momento, mesmo sendo só tu, a contemplar a imensidão de beleza e coisa nenhuma em simultâneo. O silêncio profundo que te invade a mente, desperta-te como se dormisses. É a Paz de espírito que toma conta de ti no seu estado mais puro.
Encontras-te aí, num simples instante em que colocas os pés na areia e tudo faz sentido porque se transforma em nada. É tão bom, sereno e inexplicável. Um oásis na confusão que a vida te traz. Já não há vazio, fazes parte de um todo inexplicável. Uma máquina infinita de perfeição. Tudo é beleza, incluindo tu!
Infelizmente, sabes, no teu íntimo, que a vida não pode ser sempre assim. Algo em ti precisa do caos. É um desejo quase sinistro, no entanto verdadeiro. Essa malfadada culpa que te envenena e da qual sentes que mereces punição, mesmo que o crime seja inexistente…
Quando pensas nisso, a lógica diz-te que foi demasiado tempo perdido em que a tua existência se resumia a ver os outros felizes. Mesmo assim, e porque a consciência vence quase sempre a razão, fizeste disso, quase como um objectivo da tua vida. Carregar a tristeza, não tanto como um fardo, mas como uma pena que um prisioneiro suporta, mesmo que não tenha cometido qualquer delito.
Colocas essas ideias de lado. A praia traz-te a frescura que ajuda a clarear a tua mente. Só isso, ou tudo isso. Olhas para o passado com os olhos de quem assiste a uma peça de teatro com continuações intermináveis e repetitivas. Analisas agora o presente e tomas consciência que o verdadeiro protagonismo na tua vida só pode vir de ti. Está na altura de assumires novos papéis, aprender coisas novas e mudares!
Agora chegou a tua vez de provar a felicidade. Não é uma miragem, é realidade. Podes até tocar-lhe. Tens amigos que sorriem, choram, viajam e se aventuram contigo. Fazem parte da tua história, tal como tu fazes parte da deles. Não se trata de uma qualquer dádiva momentânea que o Universo te decidiu ofertar. É o que mereces. É o que é suposto seres. Feliz!
Por vezes tudo que a alma necessita para cicatrizar é saber que não estamos sozinhos. Existem outras dores, outros martírios, outros demónios e outros pensares. Cada um tem algo porque chorar, mas unidos podem sorrir. As cicatrizes, no corpo e no ser, curam. Sem fealdade, ou vergonha de as encobrir. Pelo contrário, são como um ornamento a evidenciar o estatuto de quem cresceu na forja do sofrer.
Essa é a verdade. Tem de ser este o verdadeiro significado do momento presente. Seja aqui na praia, onde o Verão te acolhe como igual; seja lá fora, onde parece não haver lógica. Faz sentido sorrir. Mesmo com a pele da alma rasgada. Isso foi lá atrás e demasiado pequeno comparado com o horizonte. Hoje não há cinzento, só a cor do Verão com o seu calor a invadir a escuridão do quarto secreto onde mora o medo.
Hoje não és tu que te julgas. Se alguém o fizer é o imenso azul do mar. Também não há celas frias onde o ânimo é proibido, só o conforto da areia que te acolhe como um ser amado pelo universo, sem que viver seja um peso.
Entretanto o tempo passa e não dás conta. A serenidade não olha para o relógio. O dia leve e colorido vai chamando a noite. Chegou a vez de o Universo, na sua condição de inventor de paisagens, te brindar com o espectáculo do pôr-do-sol. Lento e tranquilo, no silêncio e na quietude. O dia termina num apogeu de tons alaranjados e sentimentos sem nome.
O sol flamejante a beijar o horizonte promete que amanhã também haverá calor e com certeza vais voltar. As primeiras estrelas vão surgindo como espectadores do teu sorrir. A noite não traz o frio consigo. Afinal é Verão e a pele deseja sentir a caricia do ar ameno. A natureza cria ciclos para se aprenda o que é belo em contraste com o seu oposto. Houve alturas para frio. Hoje não.
Deixas-te ficar mais um pouco até anoitecer por completo. A tela cintilante vai-se compondo no céu nocturno, pintando a fantasia de quem sonha. Hoje o teu nome está nessa lista, sem vergonha de o mostrares. Afinal de contas, hoje não tens medo dos demónios invernais, nem do escuro da solidão. Também tu és sol! Também em ti é Verão!

quinta-feira, agosto 30, 2018

Balada de Agosto


Lápis cinzento
Esconde o sol deposto
Sal que desce no rosto
Nuvem de tormento

Triste relento
Onde o calor é suposto
Afecto sem gosto
Cala todo o sentimento

Frio desalento
Na cor de Agosto
Prelúdio de desgosto
Poema de lamento

segunda-feira, agosto 27, 2018

Pergunta por verbalizar


Olho para longe, em busca de um lugar que os olhos humanos não podem alcançar. Algures, onde a minha mente não conhece, nem a inteligência sabe onde fica. A geografia é uma disciplina impossível quando o ponto aonde queremos chegar fica no desconhecido. Sem mapas, ou indicações, que me orientem. Simplesmente é demasiado longe. Sempre demasiado longe… Para que a inquietação possa conhecer um pouco de tranquilidade.
Louvo este tormento de nunca me encontrar em lado nenhum, nem numa arte qualquer. Não há poemas cheguem para explicar o que não se explica. São coisas infinitas! São coisas impossíveis! São enigmas sem fórmulas para os decifrar. Respostas há muitas, nas mais variadas vozes, dos mais variados saberes. No entanto, esquecem que nunca foi feita uma pergunta por falta de a conseguir verbalizar. Não há ciência, ou pensamento, dos homens capaz de estudar esta sensação de constante distância.
Por vezes o espírito é de calmaria, quando o mundo à volta se cala no seu constante ruido, e deixo-me ir somente com a ânsia de estar ausente. É como se nesses momentos conseguisse encontrar o meu lugar, nesta fuga constante às dimensões corpóreas que restringem o ânimo, dentro da prisão da existência. Mas como pode isso acontecer se tudo é desassossego?
Contudo, há em mim uma réstia de esperança, que provoca o caos nesta minha falta de rumo. Uma Fé inexplicável, vinda sabe-se lá de onde que teima em fazer-me acreditar na ilusão da felicidade. Não posso negar que há em mim um espírito de sonhador. Esteja eu em tumulto, ou na mais absoluta lucidez, há sempre um sonho que insiste em nascer do ventre da imaginação, como se tivesse vida própria.
São delírios de quem não conhece a satisfação. Ainda assim, é tudo que sou. Entre o aqui e o infinito. Caminhos incontáveis sem bússola que me norteie neste emaranhado de incertezas.
Talvez o amanhã me indique uma direcção, ou me faça encontrar um propósito. Hoje não! Deixo-me que me esqueça de mim próprio aqui, nesta Paz momentânea e recolho-me na serenidade do olhar para o que está longe...

quarta-feira, julho 11, 2018

O rei


Hoje fui derrotado pelo mundo! Finalmente aceitei esse destino. Até porque, ao analisar esta guerra que declarei à chamada sociedade, cheguei à conclusão de que nunca travei verdadeiramente algum combate. Por todas as vezes que julguei vencer, na realidade, fui sim ignorado, sem ter sequer o desmérito de ser espezinhado pelo inimigo.
Apercebi-me, portanto, de que sozinho nunca seria capaz de ganhar qualquer quezília. Muito mais, quando o meu adversário são os próprios alicerces do viver. Resta-me aceitar a minha condição de vencido, ou melhor, de insignificante, perante tudo que me é imposto pelo resto da humanidade.
Fizeram-me de carne, osso e pensamento. Como os outros, nasci a gritar, expulso do ventre da ilusão. Inocente, julguei ser um deus! Um rei! Acreditar nos sonhos que me deram como garantidos! Alguém que pudesse ser apelidado de extraordinário, sem saber eu, que carregava o fardo de ser ninguém.

segunda-feira, junho 25, 2018

Caos ou Amor


O infinito está calado. A carne não o consegue ouvir. O barulho no mundo é demasiado para que a voz subtil do inefável se faça notar, ou simplesmente o silêncio nada diz. Tudo é incerteza.
A dúvida cresce em todas as direcções e os “agoras” do viver vão-se acumulando sem história. Nem a esperança se quer pronunciar diante do vazio. Resta olhar para dentro em busca de um centelha de caos, ou amor!
Os sentidos degustam a apatia sem sabor. Não há solidão nem companhia. Até a inquietude descansa num sono sem sonhos nem questões. A inercia acomoda-se no seu reino, onde não existe tédio ou entusiasmo.
A simplicidade esconde os seus segredos nos gestos sem glória. A magnificência começa no inútil. Os apressados nada aprendem com a espera. Sobra a imaginação para cumprir o seu dever de esboçar o impossível.

quarta-feira, maio 23, 2018

Não te peço o impossível


Conta-me o segredo da melancolia.
Sabes que me sinto atraído pela tristeza que se esconde atrás de um sorriso. Esse, como o teu. Com aquela dolência que não precisa de explicação, nem de uma história amarga para que tenha origem. Simplesmente é.
Tenho um fascínio, quase metafísico, pelas almas geradas na senda sombria do Universo, tão bem camufladas pelas artimanhas da felicidade. Há sempre um momento em que o que é falso é desmascarado e um actor se livra da sua personagem. Essa, como a tua.
Depois há a poesia. Esses versos malditos que viciam com as suas estrofes escritas, desenhadas, cantadas, ou simplesmente abandonadas, nos gestos esquecidos do dia-a-dia repetido. Tal como os teus.
A beleza existe onde os olhares mais básicos não entram, mesmo num ser atormentado pela inquietude de existir. É algo que ascende acima da condição humana, sem conhecimento que o ensine, numa incompreensão por traduzir. Essa, como a tua.
Não te peço o mundo, nem tão pouco o impossível. Somente a voz erógena que dita o segredo da melancolia. Essa, como a tua…

terça-feira, maio 15, 2018

O aroma da padaria


Onde estão as minhas recordações de criança?
Visitei-as naquele dia vazio. Encontrei ruínas abandonadas. Paredes decrepitas com trepadeiras a tomar os seus tijolos, pintar o estuque em tons de verde e a ameaçar a sua verticalidade. É a Natureza a reclamar o que afinal lhe pertence.
Da padaria que visitava na minha infância restavam apenas uns muros grafitados. Isso não impediu que a lembrança do seu cheiro característico chegasse às minhas narinas, como se estivesse lá novamente a comprar uma regueifa. No entanto, tudo me parecia demasiado pequeno aos olhos do meu corpo adulto.
Assim estava também a loja de caça. O pequeno mercado. O casarão da velha quinta. A própria alma do lugar onde, antigamente, pessoas passavam atarefadas por outras que conversavam sobre as coscuvilhices da vizinhança e a canalha que corria em brincadeiras traquinas. Havia sempre muita gente, ao contrário do vento solitário que hoje sopra nos caminhos sem ninguém.
Aqui e ali, alguém se lembrou de recuperar, ou modernizar, o que já lá estava, entre as ruas sozinhas esquecidas pelo progresso. Mesmo assim eram cenários que nada me diziam, para além da sua aparência limpa no meio de uma ruralidade ultrapassada pela tecnologia, pelos cursos superiores, pelas grandes superfícies comerciais, pela novidade, pela cidade que agora é aqui tão perto!
O problema do tempo que passa é que as coisas mudam e tudo que foi vivido vai sendo anulado, ou melhor, distorcido pela percepção do crescimento. O que ontem era presente, hoje não passa de meras linhas escritas na memória. Portanto, de que vale procurar o passado no dia de hoje, quando já não sou o mesmo?
Em mim tanta coisa mudou. Os meus sonhos de criança parecem ridículos, pela ingenuidade com que eram pautados. Ao mesmo tempo são como uma riqueza infinita pelo simples facto de existirem. Chego à conclusão que do passado não posso exigir muito mais. Basta saber apenas que já lá estive e sentir a alegria de o ter vivido, sem mais querer das recordações, a não ser o que elas me ensinaram.

segunda-feira, maio 07, 2018

Trovoada de Maio


Há um calor abafado no ar.
Há uma sexta-feira à tarde no fim do horário do trabalho.
Há uma esplanada com gente que relaxa depois de um dia de labuta.
Há nuvens escuras que vão cobrindo o céu devagar. Abafam cada vez mais o ambiente, tornando o calor quase insuportável, ao mesmo tempo que anunciam que em breve vai chover. Ouve-se nas conversas que se cruzam entre as mesas, “está um calor de trovoada”.
Não tarda, vai nascer a tempestade.
Os diálogos começam a divergir apenas nesse sentido e as pessoas vão-se levantando com medo da intempérie que se aproxima.
Um homem mantinha à sua frente uma bebida fresca, rodando o copo lentamente, com a calma de quem espera.
O céu vai ficando cada vez mais escuro. A tempestade está chegar.
“Meu Deus! Que vem aí uma trovoada!” Alguém exclama ao passar. Escuta-se os passos apressados, em fuga, do resto das pessoas que ainda arriscam ficar na rua. Em cada adulto existe um medo irracional e infantil dos relâmpagos e do ribombar dos trovões. Em cada pessoa crescida, existe uma criança assustada.
No entanto, o homem mantem-se no seu lugar. A bebida estava fresca. A boca estava seca. Apeteciam-lhe e sabiam-lhe bem os goles que ia dando. Mas entretanto, continuava a rodar o copo, sem se importar com o negrume sobre si, e a tempestade iminente, que ia assustando os demais.
Dentro do café o empregado olhava-o por detrás dos vidros. Interrogava-se como é que aquele homem continuava ali, sem medo?
Afinal estava calor e ele tinha sede, por isso bebia algo fresco.
A trovoada, prestes a acontecer, não começava. Parecia que também ela esperava, enquanto o homem, calado, continuava a dar goles no copo de bebida fresca, que parecia nunca mais esvaziar.
O sol foi-se escondendo até desaparecer por detrás das nuvens sombrias. Mesmo assim o homem parecia cada vez mais relaxado. Afinal de contas, era sexta-feira à tarde, depois da semana de trabalho. Tinha quase uma obrigação para si mesmo de descontrair e sabia-lhe na perfeição a bebida fresca, degustada em pequenos goles de sabor tropical.
Estava um calor muito abafado no ar.
Era sexta-feira depois do horário do trabalho.
Era um homem sozinho sentado numa esplanada vazia.
Eram as nuvens escuras que tomaram conta do céu.
Era uma trovoada que nunca mais chegava.
E nada mais acontecia…

sexta-feira, abril 27, 2018

Valde timete


Correr. Correr com todas as forças.
Fugir. Fugir com todo o pavor a espalhar-se pelas veias e a injectar o coração de adrenalina.
Ofegante. Não importa o cansaço, há que seguir em frente, mais rápido, com todas as forças, não importa como.
Escuridão. Escapar por entre becos, caminhos, trilhos de floresta onde as sombras reinam, para além do esgotamento do corpo.
Importa apenas fugir da figura sinistra que a persegue infindavelmente pela noite. A noite mais sombria que já viu. A noite mais vazia que sentiu. A noite mais solitária de sempre, sem ninguém que oiça os seus gritos de desespero. Sem ninguém que a ajude. Sem um vislumbre de salvação.
Resta correr. Fugir desenfreadamente para salvar a própria vida. Há algo que a persegue. Algo sem nome, ou rosto. Apenas sabe que a deseja como os monstros desejam as vítimas. Sem piedade. Só o sabor do sangue.
Por isso corre. Corre por caminhos que nunca mais terminam. Sem que nunca encontre um lugar seguro. Repetem-se os becos, os atalhos, os trilhos. Tem de seguir em frente sem noção do corpo extenuado.
Apenas existe o terror.
O terror absoluto e a presença daquilo que a perseguia. Não lhe tinha conseguido ver o rosto nem a aparência. Apenas o seu vulto sem constante perseguição, cada vez mais perto. Mais perto. Mais perto. Ainda mais perto.
Um toque nas costas gelou-lhe o corpo. Finalmente alcançou-a. Num derradeiro fôlego soltou um grito a implorar salvação!
Como num acto de caridade os olhos abriram. Tudo que sentiu nesse instante foi o vazio de quem atravessa a ponte entre os delírios da mente e a realidade. Sem o peso da memória.
Sentiu o alívio intenso de acordar de um pesadelo. Teve a graça de um momento de sobriedade para perceber o que se passou. Reconheceu a sua cama e as linhas que traçavam o seu quarto na penumbra. No entanto, não tardou para que a recordação voltasse.
Ainda tremia. A presença já não estava ali, mesmo assim continuava a pulsar na lembrança como uma vertigem. Olhou em volta para ter a certeza de que estava sozinha, enquanto os olhos se habituavam ao escuro. Não convencida acendeu a luz. O silêncio e as cores das paredes deram-lhe alguma tranquilidade.
Só então notou que a cama estava molhada. Durante aquele sonho horrível a bexiga tinha esvaziado. Sentiu-se novamente uma criança assustada na sua tenra idade.
Levantou-se mas as pernas ainda tremiam. Deixou-se cair no chão lentamente, até que se sentou numa posição fetal. Foi tomada por um choro incontrolável, compulsivo, espástico, numa mistura de alívio, medo e vergonha.
Não sabe quanto tempo esteve ali, no frio do soalho, sem amparo. Apenas que, ao terminarem as lágrimas, a leveza entrou em si. Relaxou. Tinha de limpar a cama e a ela própria.
Dirigiu-se ao chuveiro e esperou que a água quente caísse sobre o seu corpo. Era confortável e limpa. Demorou-se para ter a certeza que a pele ficava pura e os músculos descontraiam. Ainda assim, não tardou até que o coração voltasse a palpitar. A sensação maldita de que estava a ser observada voltou quando o fluxo do chuveiro abrandou por um instante.
Imediatamente saiu e enrolou-se na toalha o mais possível. Ninguém estava ali. Era apenas o cérebro a pregar-lhe partidas. Na dúvida percorreu as divisões do apartamento em busca de algo. Nada. Não podia deixar que o seu inconsciente a dominasse. Precisava de acalmar.
A luz que escapava entre as portadas anunciava que o sol já tinha nascido e mais um dia de trabalho se anunciava. Tomou o pequeno-almoço. Vestiu uma roupa colorida e vistosa. Perfumou-se. Tinha de esquecer o pesadelo e para isso queria estar bonita e sorridente. O espelho disse-lhe que sim. Ela ficou contente.
Quando encarou a rua tudo lhe parecia apertado, apesar da largura da avenida. Uma pequena tontura assombrou-a e fez acelerar a respiração. Os rostos que passavam pareciam encará-la mais do que o costume. Não! Não se podia deixar controlar pelos impulsos da mente assustada. Era forte. Na sua coragem avançou entre a multidão em direcção ao emprego. Afinal de contas, o pesadelo já tinha terminado.
Já tiveram aquela intuição terrível de que alguém vos observa? Essa mesmo.
Demasiado forte para ser apenas uma ilusão. Ela olhava para trás continuadamente enquanto o passo se apressava. Todos a observavam. A rua parecia cada vez mais estreita. Era impossível. Percorria aquele trajecto diariamente e conhecia todo aquele espaço com pormenor. Só podia estar a alucinar.
Esbofeteou-se e beliscou-se. Talvez ainda estivesse a sonhar. A dor podia acordá-la. Não. Aquilo era real. As pessoas juntavam-se cada vez em maior número e encaravam-na com malícia no rosto. A calçada apertava cada vez mais. Sentia a claustrofobia a crescer. Aquilo não podia ser verdade! Mas era!
Começou a correr. Com todas as forças, como no pesadelo. Desta vez não havia noite, nem trilhos, nem floresta, apenas um muro feito de gente que tentava impedir a sua fuga. Lutou para abrir caminho. Gesticulou para escapar das mãos que a tentavam agarrar. Gritava sem que ninguém a tentasse socorrer.
Finalmente houve um toque, diferente dos outros. Um toque igual ao do sonho, que lhe gelou a espinha, o corpo e a vontade. As pernas não lhe obedeciam. Soltou mais um grito a implorar salvação! Desta vez não acordou. Não teve essa felicidade. A vertigem foi demasiado forte e tropeçou. Caiu indefesa a implorar misericórdia.
O piso áspero da calçada parecia ter vida própria e impedia-a de se levantar, como se a puxasse para baixo. Ainda assim encontrou forças para lutar. A figura sombria, que a escolheu como vítima, estava agora sobre ela. Conseguiu-lhe desferir alguns murros e arranhões, embora sem sucesso. Era forte demais.
Segurou-a com os braços abertos no chão frio sem que ela tivesse hipótese de se debater. Não havia mais nada que pudesse fazer a não ser desistir. Estava vencida. Deixou-se levar pelo terror, no entanto, desta vez conseguiu ver perfeitamente o rosto do seu perseguidor. Numa fúria derradeira, encarou-o de frente, olhos nos olhos! Era o rosto de ninguém...

quinta-feira, abril 19, 2018

Entre a multidão de condenados


O homem acordou. O dia estava cinzento, tal como todos os outros quando se cumpre uma pena de prisão. Era assim a sua sentença, penosa e injusta.
Sem saber qual o crime que cometera, nem tão pouco o direito de se defender, fecharam-no numa cela de carne e osso. Um qualquer juiz celestial decretou que assim seria. Condenado à solidão e ignorância da humanidade.
Tem acatado o seu mandato cabisbaixo e submisso. Sofrido as amarguras da clausura com a mansidão de quem procura purgar as suas faltas sendo culpado (mesmo sem o saber). No entanto, na sua essência, uma revolta cresce. Traz consigo uma ânsia por justiça e liberdade.
Olha-se no espelho mas o reflexo não lhe diz quem é. Repete o seu nome mas tudo que sente é alheio. A única coisa verdadeira são as lágrimas de mágoa que verte sem que ninguém o escute.
Saiu para a rua e misturou-se na multidão de condenados. Amaldiçoou os que se riam e os que pregavam felicidade. Tudo era mentira.
Foi no meio desses que, levou as mãos ao rosto, e num acto de desespero enterrou as unhas entre a pele. Numa força sobre-humana, cravou-as como formões entre o crânio, os olhos e a área nasal. Estilhaçou os ossos, que ao ceder lançaram um som crepitante, dividindo a face a meio.
Os outros. Os que nada sabiam. Pararam horrorizados pela cena a que apelidaram grotesca. Olhavam assustados, no mais absoluto terror, ao presenciar o acto de suposta loucura.
Forçava os dedos cada vez mais até que finalmente toda a cara rasgou verticalmente. Foi então que começou a puxar para cada um dos lados, enquanto o sangue que escorria pintava a sua cor.
Da sua boca soltava-se um grito de pleno desespero. Talvez fosse a dor dos nervos em agonia; ou talvez fosse a alma em êxtase por conseguir a evasão.
Quando finalmente toda a cabeça se rompeu o brado calou-se. O corpo, desprovido de alento que o sustentasse, caiu no chão. Uma poça carmesim foi crescendo até reclamar a sua glória.
Sobrou o silêncio.
Depois, sem mais detalhes a acrescentar, para aqueles que ousem perguntar, surge a questão: A pena estava cumprida?

sábado, abril 14, 2018

Sem linguagem para me traduzir


O Universo apontou-me a sina de pertencer a uma subespécie humana. Sem direito a etnia ou raça. Nem sequer uma denominação alternativa de quem não se encaixa no modelo padrão da sociedade.
Sou, portanto, insignificante.
Suponho que talvez tenha algo a oferecer. Sem saber o quê, nem tão pouco quem o queira. Tenho como maior desgraça, a suprema infelicidade de não me conhecer intimamente. Ou melhor, a noção penosa de que isso não acontece, já que os demais estão adormecidos, sem sentir a dor na alma de quem não se sabe.
No entanto, não busco explicações para a minha criação. Procuro sim, perguntas. As respostas, essas, deixo-as para aqueles que se brilham como sábios. Apesar de tudo, ainda existe quem procure decifrar os segredos que nos fazem ser humanos no meio do impossível. A esses não os conheço. Com alguma pena minha. Quem sabe não me soubessem interpretar?
Creio que também não me queira solucionar. Mesmo que os pudesse ter como estudiosos do meu pensamento, não os aceitava. Era capaz de largar o rumo perdido que sigo. Apelido-me longínquo, sem linguagem igual para me traduzir. Apenas isso. Em mim há silêncio. Seja ele de desgosto, inercia, ou simples vazio.
O mundo parece tão estranho, com as suas vozes a declamar verdades, para quem as deseje receber como tal, ou para quem as queira odiar. Tudo se torna bizarro, sem uma essência neutra para os que desejam estar calados e simplesmente ser. Ficar aparte deixa de ser raro e declara-se permanente. Sozinho. Ausente. Distante. Inalcançável.
No fundo, sou um lugar sem mapa em que os sentimentos se despem. Onde, numa réstia de esperança, ou loucura, mora o sonho.

sábado, março 31, 2018

Sítio calado


Tenho, na minha existência, um prazer supremo. Quando a labuta diária termina e a tarde me oferece o seu conforto, desfruto, para mim, um momento quase ridículo, em que o mundo me oferece um local solitário, entre a multidão. Dali posso observar as pessoas que palmilham as ruas da vila nas suas vivências mundanas.
Aqui e ali, passa por mim um rosto familiar, que me reconhece naquele canto perdido no Universo, mesmo que à vista de todos. Cumprimentam-me, com mais ou menos entusiasmo. Alguns dignam-se mesmo a parar e a trocar algumas palavras comigo. Sabe-me bem aquela pausa onde posso fingir que sou apenas mais um.
Aqueles, que no meu sítio calado, se atravessam nos meus pensamentos e na curiosidade do meu olhar, fascinam-me com a sua banalidade. Correm ignorantes, ainda assim felizes. Ou conformados. Ou mentirosos. Cada face esconde uma história sem plateia que a oiça. Vão apenas atrás do que é suposto serem.
Remeto-me à quietude do meu descanso, ou melhor, à inquietação da minha mente que teima em ficar atenta ao movimento da urbe. Deixo que me desconheçam, como fazem a todos os outros. Somos imensos, sem que nos saibamos uns dos outros. E no meio de tantos corpos atarefados, quase acredito ser gente.

sábado, março 24, 2018

Amor tristis


O amor, para ter beleza, tem de ser triste.
Deve haver na sua génese um fim anunciado. Uma melancolia constante a lembrar que todos os gestos de afecto são frágeis, no entanto violentos, como punhais que retalham a alma.
O desejo quer-se sombrio, a profanar os sonhos ingénuos de quem acredita na felicidade.
O toque mantem-se gélido, ainda assim a chamar o arrepio de quem anseia escurecer.
Quente só o sangue, que nasce nos cortes da lâmina, ou no morder que saboreia o seu gosto carmesim. A boca sabe-o de cor, prova o beijo, o sexo e o suor, na pele pálida de quem deixa a vida se esvair.
O feitiço tem sabedoria própria e há quem o queira alcançar para tornar memorável a queda no abismo.
Os pagãos amam como quem morre; como quem vive; como quem peca orgulhoso da sua desgraça!
Dizem-se hereges aqueles que se esperam na penumbra. Gestos e ditos profanos ficam entregues a instantes escondidos de dor e êxtase. A magia acontece depois que o dia se cala. Não existem virtudes nos filhos perdidos.
Os corpos servem de caos. Um abraço nada mais é do que um mergulho no vazio.
Os lábios fundem-se em juras infernais. Não se pronuncia o amanhã, porque nele mora o desespero.
O momento serve de desculpa ao prazer. As veias, como rios de segredos, que se oferecem ao rasgar. Nasce a fome sem remorsos. Depois da noite infinita, o pecado é esquecido pela madrugada.

sábado, março 17, 2018

Ele há dias


Chegou a casa ao fim da tarde. Pedaço claustrofóbico, entre quatro paredes e um tecto, transformado em edén pessoal depois de um dia de trabalho, de gente estranha, de confusão caótica na dita ordem do mundo.
Ele há dias onde parece que tudo lá fora enlouquece!
Sacudiu o mais possível o cansaço de cima das costas, mas o peso teimava em não desaparecer. Frustrações, imposições, castigos acumulados no corpo, da carne até à alma. Um fardo difícil de carregar e de iludir.
Ele há dias onde custa fingir que não dói viver!
Arrancou as roupas encardidas com o cheiro lá de fora. Colavam-se à pele com a viscosidade transpirada da rotina. Atirou-as para longe. Algures num canto escuro, enfadonho e esquecido do buraco a que chama lar.
Ele há dias onde não existe um sitio que pareça acolhedor!
Dirigiu-se para a sanita e despejou todos os dejectos que se abrigavam em si. Puxou o autoclismo e entrou no chuveiro em busca de limpeza. Talvez a água quente trouxesse algum alívio e pudesse atenuar a solidão. Sem sucesso.
Ele há dias em que sentir parece ser pecado!
Olhou-se ao espelho, no entanto a figura que encarava em nada se parecia consigo. A criança determinada a conquistar o mundo, metamorfoseou-se numa personagem pintada a rugas de tempo passado sem aventuras.
Ele há dias em que todos questionamos: afinal quem somos nós!
Arrastou-se até ao quarto. O silêncio escurecido das portadas em baixo parecia trazer algum conforto. Entrou para o aconchego dos cobertores como quem encontra refúgio. Desenhou ali o seu santuário de crente no sossego.
Ele há dias em que tudo que há a dizer, é calar!
O adormecer sabe bem a quem é consumido pela fadiga. A recompensa do esquecimento veio com o sono que é reservado aos justos, ou aos desajustados. O crime de sonhar cumpre assim a sua pena.
Ele há dias em que o maior desejo é simplesmente dormir!
Mergulhou imediatamente no vazio. Ficou invisível com o seu entorpecer. Um salto feito de nada pela noite dentro. Sabe que a madrugada há-de ofertar o ânimo aos seus filhos perdidos. A energia regressa com o sol.
Ele há dias em que tudo que se deseja, é despertar numa manhã descansada!

sábado, março 10, 2018

A multidão


Alguém escreveu numa parede da cidade, com letras grandes e gordas, todas as minhas frustrações e medos. Dei de caras com aquela lista, de tudo que é frágil em mim, e parei na minha absoluta vergonha. Não imaginava quem soubesse tão bem o que se esconde em mim. Ainda por cima, com a audácia de o expor à luz do mundo!
Eis que chega mais alguém que se queda diante a parede. O receio e o choro apoderaram-se do seu semblante, tal como a mim. Quase que podia ler a angustia que emanava daquela face, pois era igual à minha. Outra alma inquieta reclamava para si aqueles dizeres. Entendi que não podia prende-los só para mim, nem para a minha poesia sombria!
Olhei em volta. Mais pessoas tinham chegado, com os seus corpos quietos e semblantes aflitos. Não tardou para que se juntasse ali uma multidão imensa de silêncio amargurado. Foi então que compreendi: aquela lista malfadada não era apenas minha, mas sim daquela gente toda, que tal como eu partilhávamos as mesmas misérias!
Ficou claro que não estávamos sozinhos nos nossos infortúnios. Nenhum desapontamento era exclusivo, nem tão pouco algum receio único de um só ser. A lista na parede não era de ninguém, embora, ao mesmo tempo de todos aqueles que ali se abeiraram. Carne, osso e dor. Só isso. Sem nomes, nem géneros, nem raças, somente angústia!
Aquelas palavras mal-afortunadas expunham a mágoa que devia estar tatuada apenas na tristeza humana. Escondida. Alguma alma ousada decidiu exorcizar os seus demónios, escrevendo com nudez crua o que não deve ser dito, para que todos olhem a fonte de todas as lágrimas. No entanto, mais parecia um espelho a reflectir o fundo de todas as vidas!
Os rostos naquela grande multidão ganharam coragem para se entreolharem. Não tardou para que sorrisos nascessem entre o silêncio. Logo a seguir formou-se um borborinho que foi perdendo a timidez para se transformar em conversas. Não tardaram as gargalhadas pelas piadas contadas sobre todas aquelas fraquezas que roçavam o cómico!
Então, todos juntos, chegaram à conclusão do ridículo dos seus medos, que, sem a força da solidão, quase já não faziam sentido. Pelo contrário, eram como anedotas perante a verdadeira face do mundo. Insignificâncias, se comparados com a vontade de ser feliz. A parede já não importava, ignorada por todos, pois já não sentiam incertezas!
Enorme era a multidão, quando todos os corações solitários se juntaram!

sábado, fevereiro 24, 2018

Quem acha que pode mudar o mundo


O vampiro apaixonou-se. Aconteceu com a brandura e a leveza de uma simples brisa. Até um monstro pode amar quando a serenidade assim convida. É tão difícil resistir a um rosto com luz própria!
Deus criou a perfeição no olhar de quem cora facilmente. É impossível suportar o arrepio que emana de uma troca de olhares; sorrisos que nascem tímidos pelo canto da boca; o riso contagiante de uma piada tola. Não há como resistir a uma alma cheia de vida!
Há também a beleza e a jovialidade. A pele perfeita de quem ainda não sentiu a amargura do viver. Os sonhos imaculados de quem acha que ainda pode mudar o mundo. A magia de uma alma gentil!
Como é que o vampiro não se podia apaixonar? Ainda que o amor fosse breve e frágil como uma flor que perde as pétalas, a atração é mais forte do que a natureza. O calor mais urgente do que a noite. O amar, mesmo que efémero, mais intenso do que o vazio!
O martírio chega no amanhã e na banalidade que cobre o ser. O cansaço da rotina, do mesmo corpo, do mesmo poema, do dia que está tão longe. Sai vencedora, como sempre, a perdição dos filhos da noite, ao enganar a inocência com o brilho feiticeiro da lua!
O vampiro esqueceu-se que afinal a paixão era mentira. Não tinha esse direito, reservado aos filhos do dia. Deixou-se encobrir na escuridão e no esquecimento. Mas não sem antes reclamar o sangue quente da jovem que o iludiu com esperança!
A voz terna, que antes encantava, deu lugar a um grito desesperado. Como quem sente o mergulho no terror mais absoluto do abismo. Esse é o tormento de quem perde a sua fantasia pelas mãos daqueles que se alimentam do sonhar dos outros!
O vampiro bebeu até se saciar. Saboreou ideais, viveres e amanhãs, para que nos seus dentes tudo se calasse. Um monstro merece o seu prémio depois de sentir o cheiro da luz. Depois tudo volta ao silêncio e a um secreto devaneio, que talvez um dia possa amar…

sábado, fevereiro 17, 2018

Identidade absurda


Uma solidão imensa tomou conta das ruas da vila. Não há trânsito. Os estacionamentos estão vazios. O céu está cinzento. Nuvens ameaçadoras anunciam que vai chover a qualquer momento. Sopra um vento do sul trazendo consigo uma caricia fria. Como não há sol que aqueça o corpo e a alma, o mundo parece ainda mais gelado do que realmente é.
Aqui e ali silhuetas humanas percorrem a calçada num passo lento e perdido. São os esquecidos cuja dor se agiganta em dias como este. Gente sem nome, como espectros, que se atrevem onde os outros não encontram conforto. Buscam, fora do vazio do lar, uma outra alma vivente com quem possam cruzar um olhar e um cumprimento, como uma esmola atirada a quem mendiga, para que dessa forma possam roubar à solidão um instante de companhia.
A inquietação toma conta da mente dos poetas em dias assim. Sem amor que os salve da própria identidade absurda. Refugiam-se em horas inebriadas pela loucura, visto ser insuportável encarar a sobriedade a quem não se basta com a própria pele. As ideias são maiores que o mundo e o pensamento infinito como o universo. Ainda assim, não há um lugar que acolha quem pertença a lado nenhum.
Estar infindavelmente perdido é uma forma de viver. Sem graça, nem tronos, ou glórias. Raça escorraçada de qualquer paraíso, abaixo de todas as castas. Dói no próprio ser o martírio de existir. Por isso palmilham-se as ruas caladas com receio da intempérie. Com as suas gentes mansas recolhidas na comodidade de quatro paredes e um tecto. Que sabem eles da bênção amaldiçoada que é estar em constante desassossego?
A escuridão adensa-se nos céus enublados. Misto de anoitecer e a chuva que ameaça. Deambular sem destino não é sensato mesmo para um desajustado, quando a natureza exibe o seu poder. Também eu devo recolher-me…
Talvez a noite traga a tempestade.
Talvez o sonhar traga a companhia.
Talvez o adormecer engane a saudade de uma vida não vivida.
Talvez a chuva engane a saudade de uma vida por viver.
Talvez tudo que tenha ficado por dizer, tenha sido dito no esquecimento que o tempo traz.

sábado, fevereiro 10, 2018

Hot Rod


A estrada é longa, sem fim à vista. Não me importo, é melhor assim. Sabe bem percorrer um caminho extenso cheio de aventuras, cenários memoráveis, com pessoas que me preencham de histórias e sabedoria. Engrandece-se o eremita que sou, canta o viajante que me fiz, solto a audácia que me impele a seguir em frente a lugares onde o viver é intenso.
Acelero a fundo pelo asfalto livre. O motor responde com potência. Os tempos, as existências e a fantasia misturaram-se. Debaixo do aspecto clássico do automóvel está uma máquina impulsionada por um combustível desconhecido. Pouco me importa que seja movido a energia nuclear ou a éter mágico, não sou mecânico. Tudo que quero é ir onde a poesia me chamar.
Não me dei a mim mesmo um nome, talvez receba esse mérito quanto encontrar um destino, seja ele um tempo, um nascer, ou um poema. Tento recordar o início da viagem, quem sabe num sonho qualquer, ou num incentivo de um jovem curioso. Sobra-me a memória de entrar naquele carro construído com passado e futuro debaixo de olhares indiscretos.
Ainda é cedo para saber quem sou, portanto não me importo com isso. Afundo ainda mais o pé e uma nova paisagem abre-se como uma janela. Dou por mim a cruzar o infinito entre estrelas que surgem e fogem em breves ápices para quem as observa. Desacelero para contemplar este jardim feito de brilho onde desabrocha o mistério da criação.
A beleza é importante, assim como o calor de quem ama. Uma nova janela abre e entro naquilo que posso descrever apenas como o sentir do primeiro amor. O aconchego da inocência na pele perfeita da juventude. Imaginar um futuro sem saber que a dor existe. A ingenuidade de ser criança faz com que os devaneios tenham mais sabor.
Ficou claro que não pertencia ali, embora tenha agradecido o momento. Segui para outras paragens. Alternavam-se as noites e os dias, a cor e o frio, a paz e o ódio. Atravessava mundos escondidos no sentir da vivência humana. Experimentei várias sensações pela perspetiva de incontáveis juízos. Enveredei por trilhos ligados pelo entender de quem procura a imensidão.
Reencontrei-me com nome, corpo e história, como quem desperta de sonhar acordado pela atenção de um qualquer sentido humano. Dei por mim desperto (ou adormecido). À minha volta um panorama e rostos familiares, ainda assim desconhecidos. Já não havia um carro impossível, nem estrelas a dançar. A viagem terminou? Certamente que não!
Alguém chama o meu nome. Há! É esse! Lembrei-me de quem era afinal naquele existir. A aventura tinha sido real. Muito para além de mim. Mesmo sem explicação, ou cingida à minha fantasia. Não encontrei um destino. Nem sei se era sonho ou lembrança. Talvez fosse apenas um instante perdido, num segundo em que a imaginação me levou para longe com todo o seu saber.

segunda-feira, janeiro 29, 2018

Nada mais importa a não ser o longe


Engrandeces-te na imagem que te guarda. Sabes que o pensamento viaja mais longe assim, a lugares sem julgamento nem pecado. Com a caligrafia da pele desenhas o poema nas curvas do teu corpo. No berço das estrelas convidas para que te prove. Há em ti um universo que quer nascer e uma lei que torna impossível recusar-te. Mostras que tens sabor a caos e a paz!
Depois cantas estrofes de desejo na lingerie preta que escolhes cuidadosamente. Mostra-se como uma sombra luminosa entre o toque e a flor que se desabrocha. O arrepio mais forte enquanto a fome cresce. Sabes que atiça o feitiço quando despes o vestido. Revelas a essência escondida que se abre humedecida pelo momento. Intensa-se o contraste, o negro, a pele e tu!
Dominas a arte de quem ama além do impossível, por cima da carne e das palavras nos lábios que buscam o beijo. Há o pescoço, as coxas e as costas. Luar erógeno na noite nua. Língua a degustar o sal. Dentes a morder a calma. A linha que se percorre até ao infinito. Os dedos que correm, a boca que naufraga. O querer que se esquece. Nada mais importa a não ser o longe!
Sem reclamar da vida mais que a mágoa, pedes-me um pouco de paraíso. Em mim não existe santidade, porque no teu gemer encontro a fúria do guerreiro. Depois há tudo que se cala na voz dos anjos. O silêncio profundo de quem é imortal. Resta a pausa nos corpos desnudados daqueles que adormecem...

domingo, janeiro 14, 2018

Como quem não se importa


O homem começou a cavar. Espetava a pá no chão com convicção e mestria e atirava a terra para trás das costas. Todos os dias lá estava ele, sozinho, a afundar o buraco apenas com a força braçal.
Quem por ali passava, pelo menos aqueles dotados do dom da curiosidade, observavam o trabalho e não deixava de se questionar qual era o objectivo. Diariamente os braços do homem engrossavam. Da figura franzina que iniciou toda aquela senda pouco restava, a não ser os traços das feições. A sua musculatura reforçava-se à medida que o tamanho da cova aumentava, quer em largura, quer em profundidade. A dureza do trabalho fortaleceu-o, quer física, ostentando um corpo robusto, quer mentalmente, inteiramente determinado no seu objectivo.
Todos os dias o buraco ficava mais fundo, só com a força da vontade.
Certo dia, um jovem, já no fim da adolescência, ousou questionar o homem.
“Para que serve esse buraco”?
Num gesto raro de descanso, o homem pousou a pá, olhou de relanço o rapaz e respondeu.
“Para encontrar companhia”.
Perante a resposta, aparentemente sem nexo, o jovem assumiu o que muitos já diziam. Aquele homem era louco! Mesmo assim, levado pela curiosidade, continuou a questionar.
“Acha que vai desenterrar companhia no fundo desse buraco”?
Desta vez o homem não lhe respondeu. Limitou-se a encolher os ombros, como quem não se importa. Tomou aquela conversa como repouso e logo depois, segurou novamente a pá com robustez e voltou ao trabalho. O jovem ainda aguardou um pouco por um esclarecimento que não veio. Perante o som das pazadas a enterrarem na terra, optou por ir embora.
Nos dias seguintes, sempre que ali passava, o jovem parava por alguns momentos a observar o progresso daquele buraco que continuava a aumentar na direcção das profundezas. Também o homem fazia uma ligeira interrupção e olhava fixamente o rapaz com os seus olhos, azuis profundos, carregados de histórias caladas, cumprimentando-o com um ligeiro aceno de cabeça.
Já, as outras pessoas continuavam o seu caminho, deixaram de ligar àquele homem e ao seu buraco fruto da loucura. Já não havia curiosidade, apenas alienação. Ainda assim ele continuava a escavar sem dar importância a opinião dos outros. Afinal de contas que sabiam eles sobre a sua determinação?
Certo dia, o jovem, a provar o sabor da audácia, resolveu descer ao fundo do buraco. O homem recebeu-o com alguns traços momentâneos de surpresa. Não o impediu. Saudou-o, como sempre, no silêncio do seu olhar intenso. O rapaz também não recorreu à voz. Em vez disso mostrou-lhe a sua própria pá e esperou por algum tipo de instrução. Sem o uso de palavras, o homem, agradeceu a ajuda, e apontou-lhe o local onde escavar. O rapaz anuiu, com os braços ainda franzinos, mas com o espírito pejado de vontade e prontamente iniciou o trabalho.
Já eram dois.