terça-feira, dezembro 29, 2020

Este aqui é para desejar Boas Festas sinceras :)


Sabes aquelas mensagens de Natal que vemos na internet, todas iguais, todos os anos? 

Copiar e colar. Talvez com umas pequenas alterações pessoais para fingir algum tipo de originalidade. 

Estás a ver? Já reparaste na quantidade de lixo electrónico que é gasto com essas porcarias, que não querem dizer nada, a não ser uma simples prática de desejar votos de Boas Festas, porque simplesmente toda a gente o faz e é suposto ser assim. 

Agora existe uma nova moda da família tirar uma foto junto à árvore de natal numa pose de felicidade. Pelo menos já é algo diferente. Mesmo assim os votos são vazios. É apenas um motivo para tirar uma foto e colocar nas redes sociais em troca de interacções. 

Juro que é extremamente aborrecido andar pela internet na época das festas sem ter nenhuma informação interessante que consiga fugir ao tema. Este ano sinto-me particularmente crítico. Pareço um velho ranzinza! 

Na realidade até tive uma surpresa agradável e por isso estou aqui. Alguém se lembrou de me enviar um postal pelo correio. Daqueles que se mandavam antigamente, escritos à mão, antes de haver internet e telemóveis. Onde dispensávamos alguns minutos a escolher as palavras certas e a ter cuidado com a caligrafia para que fosse legível. Sim! Recebi um desses!

Quem se dá ao trabalho de colocar no correio um postal deste tipo, certamente tem alguma sinceridade! Por isso devo dizer que fiquei muito feliz! 

Não sou uma criança mas aquilo soube-me como uma prenda trazida pelo Menino Jesus. Note-se que não sou velho mas no meu tempo o pai natal não tinha a fama que tem agora. Quem trazia as prendas era o Deus Menino. 

Podia contar como era, mas era uma história igual a tantas outras que andam para aí, a única diferença é que era sobre mim e não tenho nada assim de especial para partilhar. 

De qualquer maneira, o postal no correio trouxe-me um sorriso genuíno, que me deu vontade de sentir o espírito natalício. Achei bonito e fiquei feliz! Por isso quis partilhar com o mundo esse presente verdadeiro! 

Dedicar algumas palavras é o mínimo que posso fazer para retribuir. São autênticas, espontâneas e ocuparam-me algum tempo, que ofereço de bom grado, para desejar a quem aqui vier ler estas linhas umas Boas Festas sinceras :)


sábado, dezembro 26, 2020

A conversa que eu tive com um gajo qualquer ao pé do fim do mundo


Era uma esplanada situada no cimo de uma falésia alta. De frente podia-se ver a imensidão de um mar sem fim. Estava um dia ameno que convidava a fazer uma pausa no exterior. O cheiro fresco da água salgada trazia uma tranquilidade imensa e um cafezinho vinha mesmo a calhar. 

Havia algumas dezenas de mesas, todas vazias, com excepção de uma, onde se sentava um homem. Era um tipo pálido, de barba mal semeada e com cabelo negro. Usava óculos de sol e um casaco de cabedal, ambos escuros, que faziam realçar ainda mais o tom de pele pouco saudável. Na sua frente tinha um copo com uma bebida alcoólica que não consegui identificar. Fumava um cigarro, enquanto ia escrevinhando coisas num caderno. Por vezes fazia pausas, daquelas que se fazem quando queremos atiçar a criatividade. A linguagem corporal indicava que estava completamente absorto do que se passava a sua volta, mergulhado nos próprios pensamentos. Nem deu por mim a passar. Não o cumprimentei para não interromper o seu raciocínio interior. 

Sentei-me numa mesa afastada e relaxei. Quase de imediato surgiu o "garçom". Um homem bem-falante, vestido com camisa branca, um lacinho muito bem feito, colete e calças pretas imaculadamente engomadas, a condizer com os sapatos bem espelhados. Trazia na sua frente um avental igualmente bem-apresentado. Chamou-me, acima de tudo, a atenção o seu grande bigode, perfeitamente enrolado nas pontas. Juro que é a pessoa mais limpa que vi até hoje.

– Em que posso servir Vossa Excelência? – Perguntou com uma tremenda educação e mansidão na voz, algo como nunca tinha escutado antes, atrevo-me a dizer. Tal forma de falar tinha lido apenas nos livros de antigamente.

– Era um cafezinho, se faz favor. – Pedi com a maior educação que consegui encontrar em mim. Creio que até me encolhi com vergonha da minha própria rudeza.

– Pois não, é para já caro senhor. – Respondeu, recolhendo de imediato para o interior. 

Olhei em frente para o mar imenso. Sem conseguir calcular distâncias, concentrei-me no gigantesco redemoinho que se encontrava lá no meio antes da linha do horizonte, ainda assim suficientemente perto para que pudesse reparar nos pormenores. No seu rodopiar levava detritos de todo o tipo de tralhas. Desde casotas de cão, a balizas de futebol, um palco onde ocorreu um discurso político; e até um autocarro, que nunca percebi como se conseguia manter à tona de água a flutuar como se fosse um barco. 

Também lá estavam pessoas a bracejar. Pediam socorro como se fosse possível tal coisa. Toda esta gente caia ali juntamente com todas as coisas através de um enorme buraco no céu, que, apesar de estar completamente azul, encontrava excepção naquele local onde um grupo de nuvens se aglomerou para formar uma espécie de esfíncter cósmico onde todos os detritos deste mundo eram defecados. Depois, as águas turbulentas do redemoinho, engolia-os para as profundezas. Era uma cena curiosa. Não sei porquê mas, apesar da estranheza, todos aqueles acontecimentos bizarros e grotescos não me incomodavam. Em vez disso, observava, com a curiosidade de quem contempla uma atracção natural. 

– Aqui tem caro Senhor. – O “garçom” educado regressou com o café, colocando a xícara com os cuidados mais meticulosos em cima da mesa.

– Muito obrigado. – Agradeci, mais uma vez tentei ao máximo puxar pela boa educação. Levei a mão ao bolso e tirei uma nota. Pertencia a uma moeda da qual desconhecia a origem e o valor, no entanto sabia que era o suficiente para cobrar a despesa e oferecer uma gorjeta digna ao “garçom” mais atencioso que tinha conhecido até hoje. – Pode ficar com o troco. 

O homem agradeceu-me com uma ligeira vénia e foi embora. Levei a xícara ao nariz para sentir aquele aroma de café acabado de fazer. As máquinas modernas nunca vão conseguir copiar este cheirinho dos cafés de antigamente. Provei e o gole sabia a perfeição. 

Voltei a contemplar o que se passava no redemoinho. Coisas caiam em abundância, eram mais do que eu conseguia enumerar, por isso concentrava-me nos objectos mais estranhos: enxadas; motas; vestidos de noiva; carros alegóricos…

– Ei, você também está aqui para assistir ao espectáculo? – Olhei para o lado de onde veio a voz, era o outro cliente que já parecia ter acordado da sua própria ausência.

– Sim! Não! Quer dizer, não sei! – De repente percebi que não sabia como fui ali parar.

– Pela sua resposta devo concluir que também não sabe como aqui chegou. – Disse, para depois dar uma passa exagerada no cigarro. – Não faz mal, também me aconteceu o mesmo.

– Sabe onde estamos? – Perguntei, sem ter grande esperança na resposta. Supus que talvez se tratasse de um sonho. Mas não tive certezas, já que a minha memória não estava clara. 

– Não. Mas desconfio que tenha sido uma “trip” das boas. – Riu-se, com o fumo a escapar-se entre os dentes.

– Eu não consumo dessas coisas. – Lancei-lhe um olhar de desdém. – Drogas servem apenas para destruir a dignidade humana.

Ele riu-se. – Ou para mostrar outros mundos... – Concluiu. 

Fiquei um pouco desagradado com a sua presença. Preferia quando estava calado.

– Relaxe homem. Aqui ninguém faz mal a ninguém. É apenas um sítio estranho, nada mais. – Encolheu os ombros como quem se resigna sem precisar de explicações e deu mais uma forte passa no cigarro. Fez também mais algumas anotações no seu caderno.

Não lhe respondi. Por momentos ponderei as várias possibilidades que me levariam a estar ali. Podia ser um devaneio, mas não fiquei convencido com essa explicação.

– Você precisa descontrair. Nem tudo tem de fazer sentido. Isto há que viver à grande: Sexo Drogas e muito Rock and Roll! Carpe Diem! Está a perceber? 

Olhei com atenção para a sua figura descuidada e não tive dúvidas que o homem estava pedrado.

– Essa conversa é muito bonita no momento. Quando chega a altura de pagar as consequências, a conversa já é outra! – Contrapus.

– Você é que sabe. Não sou nenhum padre para o tentar converter à minha religião. – Bebeu um grande gole para cimentar o seu argumento.

A certa altura um navio de cruzeiro surgiu pelo portal. Era enorme! A sério, mesmo gigantesco! Atravessou com alguma dificuldade. Parecia até que o esfíncter cósmico estava com prisão de ventre. Enquanto pendia na direcção do abismo alguns dos seus passageiros e tripulantes escorregavam pelo convés do navio inclinado com a proa para baixo. Sem local onde se agarrarem, ou simplesmente cansados pela luta, deixavam-se ir, para a queda inevitável. 

Por fim, a enorme estrutura lá passou, entre barulhos de metal a ranger e caiu com violência na água, para se afundar logo de seguida rapidamente. Em contrapartida o autocarro, feito para circular em terra firme, mantinha-se a flutuar nas voltas no redemoinho como se fintasse o destino daquele lugar. 

Ambos ficamos a olhar com perplexidade. Ele continuou a escrevinhar e acendeu mais um cigarro.

– Posso perguntar de onde você vem? – Olhou-me com curiosidade.

– 2020, o ano da peste... – Mostrei-lhe a máscara e coloquei-a. – Todos temos de usar máscara e não nos podemos aproximar uns dos outros, senão podemos transmitir ou apanhar uma doença... 

– Está a falar a sério? – Mostrou-se algo incrédulo e até um pouco assustado.

– Infelizmente sim. Tem sido um ano complicado… – Optei por não dar mais explicações. – Mas e você, de onde vem? 

– Início dos anos 80. – Respondeu acenando ligeiramente com a cabeça e abrindo os braços, como se soubesse, sem margem para dúvida, que vinha duma época interessante. 

Compreendi então os seus excessos despreocupados. Foram anos de experimentação de coisas novas onde tudo era permitido em nome da Liberdade. Como podia ele saber das consequências? Os prazeres do mundo estavam disponíveis para todos e era suposto aproveitá-los. Dei-lhe algum desconto por isso.

– Bons tempos! – Confirmei. 

– Então você deve ter vindo até aqui com uma nave espacial? 

Ri-me da ingenuidade da pergunta. 

– Nada disso. Ainda estamos longe dessa parte. Mas antes que me possa fazer mais alguma pergunta, não! Não temos carros voadores nem sequer pusemos os pés em Marte ainda! 

– Oh... Está mesmo a falar a sério? – Rematou com alguma desilusão na voz.

Lembrei-me de como a ficção científica estava em alta naquele tempo. “Star Wars”, “Star Trek”, “Back to the Future”, “Battlestar Galactica”, entre tantas obras que nos levavam a sonhar que aquele futuro estava para breve. Todos julgavam que por esta altura já andávamos a conquistar o espaço, a conviver com robôs e até a viajar no tempo. Parvoíces inocentes, quase infantis, de quem acha que evoluir é fácil.

– Pois é meu amigo, lamento desapontá-lo, mas esse futuro ainda vai demorar um pouco a chegar. Existem outras preocupações que não aconteciam no seu tempo. 

– Estou a ver que sim. Confesso que estava à espera de algo mais.

– No entanto, temos estas coisas. – Levei a mão ao bolso e mostrei-lhe o “smartphone”, mesmo sem me aproximar.

– Uma televisão portátil? – Levantou os óculos para ver melhor. 

– Muito mais do que isso. É um computador de bolso. Podemos fazer muitas coisas: falar com outros; tirar e ver fotografias ou vídeos; ouvir música; fazer uma pergunta e procurar a resposta num sítio chamado internet, etc. Aliás, podemos encontrar de tudo neste sítio chamado internet. Espere mais uns dez anos e vai ficar a perceber do que estou a falar. 

Mexi um pouco no aparelho para lhe demonstrar o que aquilo era capaz de fazer. Ele mostrou-se extremamente interessado. Olhava com atenção o ecrã e ia apontando no seu caderno cada pormenor que eu falava. Ou pelo menos achava eu que era isso que ele escrevia.

Ouvimos alguns gritos a sair do portal e a nossa atenção virou-se imediatamente para lá. Ao contrário dos outros, tratavam-se de vocais agressivos que se traduziam em coragem desmedida. De imediato aguçou-nos a curiosidade. Eram umas boas centenas de soldados, medievais talvez, que empunhavam as suas espadas e batalhavam entre si com toda a ferocidade, ignorando por completo que estavam em queda livre na direcção de um fim inevitável. 

A forma como continuavam a combater em pleno ar e em queda livre era hilariante, quase digna de um “sketch” dos Monty Python. Tentavam planar simulando o voo na direcção do inimigo. Mas atenção! Eram eficazes na sua ofensiva. Rivalizavam até com os melhores para-quedistas com a perícia improvisada do momento. 

As espadas cruzavam-se no céu soltando sons metalizados quando as lâminas se tocavam. Parecia uma acrobacia retirada de um filme de Hollywood onde os efeitos especiais se exageram face à realidade. Alguns chegaram mesmo a perecer, golpeados pelo inimigo, antes de caírem na água.

Não conseguimos evitar de soltar umas boas gargalhadas. Afinal, que tipo de guerra justificava aquele comportamento que obrigava a existir um vencedor, mesmo quando já não havia nada para ganhar? 

Senti-me até um pouco culpado por achar aquela situação divertida. Afinal de contas, eram vidas humanas que estavam ali. A pelejar sob as ordens de algo que não compreendiam. Como acontece em tantas guerras, seja qual for a sua era. De qualquer maneira, não consegui resistir à piada, apesar de mórbida. Era demasiado cómica para que a entendesse de outra forma.  

Talvez, para nosso entretenimento, ou pela sua perícia audaz em conseguir pairar no ar, a queda destes guerreiros destemidos, foi mais vagarosa do que todo o resto. Mais parecia um filme em câmara lenta. Podíamos assim reparar nos pormenores mais detalhados na arte de manejar uma espada pelo ar em queda livre.

Depois, nenhum escapou à queda. O redemoinho não mostrava misericórdia e engoliu-os como a tudo resto. Excepto o autocarro, que continuava a flutuar sem apresentar sinais de querer afundar.

– Acho que isto foi a situação mais surreal que assisti aqui! – Comentei enquanto me recuperava de tanto rir.

– Temos de lhes dar mérito. Estes eram gajos de tomates. Mesmo a caminho do abismo nunca desistiram de batalhar e isso é sem dúvida a coisa mais corajosa que vi. – Voltou a anotar qualquer coisa no caderno com entusiasmo.

– Peço desculpa pela curiosidade, mas posso perguntar o que tanto escreve no seu caderno? 

– Não tens que pedir desculpa. – A sua expressão corporal mudou, anunciando excitação. As próprias palavras demonstraram mais intimidade ao tratar-me por tu. – São poemas, pensamentos, ideias, quem sabe até futuras músicas!

– Posso ver?

– Claro, a arte é para partilhar! – Levantou-se sem hesitar e veio até mim colocando o caderno em cima da mesa sem se preocupar com a proximidade. 

Quando o abri não consegui perceber o que estava escrito. Os caracteres eram incompreensíveis. Não me refiro apenas à caligrafia cheia de gatafunhos. Tratava-se mesmo de um alfabeto completamente diferente. Foi nessa altura que compreendi que estávamos a falar num idioma totalmente desconhecido. Permitia que nos comunicássemos verbalmente. Nada mais. Tudo o resto tornava-se indecifrável.

Ele levou a mão à cabeça e coçou o cabelo. – Pois... Temos esse problema. Estamos a falar uma língua que não aprendemos em lado nenhum e pensamos ser a nossa. Dei conta desse pormenor quando ali o finório veio trazer o meu pedido. – Apontou para o “garçom”. – Mas posso traduzir se quiseres?

– É claro que sim! – Respondi. 

Depois já não me recordo do que conversamos. Creio que foi por causa do mesmo efeito da caligrafia. Eram coisas que aquele lugar, situado algures numa pequena loucura, não queria que eu soubesse. 

Lembro-me, no entanto, dos gestos entusiasmados que o homem fazia enquanto explicava não sei o quê. Era um daqueles entusiasmos contagiantes. Daqueles em que não precisamos de conhecer a história para saber que é grandiosa. Pelo menos para o seu orador. 

Também não sei o que lhe disse. Trocamos pensamentos certamente. Coisas que moram algures na nossa imaginação e só partilhamos com quem compreende essa realidade interior. Palavras que para muitos são insignificantes. Não passam de mera fantasia inútil que não serve para alimentar ninguém.

Recordo-me, contudo, que, durante a conversa, um fulano gordo e peludo, todo nu, caiu. Vinha de braços e pernas abertos enquanto gritava "Jerónimo"! Antes mesmo de atingir a água, cerrou os punhos e levantou os dedos do meio, para logo a seguir se ouvir um enorme "chapão" ao chocar com o mar. 

Sei que o meu companheiro de conversa, ao observar o sujeito disse: – Lá vai um tipo que sabe aproveitar a vida! – Para se rir logo de seguida. Creio que essa afirmação resumia a sua forma de estar. Concordando ou não com isso, ele era alguém fora do comum e isso bastava para o escutar.

Acho que lhe perguntei o nome, embora também não me lembre qual era. No entanto gostava de associar um nome àquela cara. Afinal de contas, não conhecemos pessoas assim todos os dias. Seja onde for. Gente rara!

A tralha continuava a cair. Árvores, um pelotão de ciclistas, camiões do lixo... Todos comidos pelo redemoinho, fosse qual fosse o tamanho. Excepto o autocarro. Ele lá continuava a navegar em cima da água como se fosse um barco. Quem sabe se era esse o seu trajecto, para entreter os turistas lá dentro. De tudo aquilo que me lembro, foi o que mais me intrigou. Mas, como posso eu compreender as leis da física onde elas não existem?

Nunca cheguei a saber que lugar era aquele. Se lhe tivesse de dar um nome chamaria "fim do mundo", embora sem acreditar que o fosse apesar de todo aquele aparato surreal. 

Gostava de pelo menos ter uma explicação que não parecesse loucura. Todavia, se me vierem com aquela conversa científica de que o cérebro é capaz de imaginar certo tipo de acontecimentos, e coisas assim do género, também não desejo essa explicação para nada. Prefiro o mistério. Acreditar que participei numa jornada interdimensional com a própria consciência.

Outra coisa que não sei explicar é o “quando” aconteceu. A bem da verdade também não me interessa. Os “como” e “porquês” são irrelevantes. Prefiro a dúvida. Sei apenas que foi real e isso basta. Quanto ao resto, não sei se era sonho ou lembrança...


Notas: 

- A ideia para este texto já tem mais de dez anos, andava por aqui guardada e só agora decidir pegar-lhe. Fiz algumas alterações ao esboço inicial. 

- Queria escrever um texto para o blog, mas como tinha bastantes elementos e o texto se alongando muito decidi escrever em formato de conto. 

- Apesar de não costumar publicar contos ou textos tão longos aqui, decidi colocar este, já que a intenção inicial era essa. 

- Publiquei também o conto na plataforma "Smashwords" onde podemos publicar um e-book gratuitamente. Podem aceder através deste link: www.smashwords.com/books/view/1060621

- Já agora, leiam os meus outros contos também lá publicados por mim. Visitem o meu perfil em: www.smashwords.com/profile/view/antoniosilva 


quinta-feira, dezembro 17, 2020

O triunfo


Línguas, flexíveis como tentáculos, em busca do sabor húmido da boca, do sexo, para dançarem na viscosidade. 

Lábios que percorrem a pele e brincam como crianças onde o corpo em tumulto chama por eles. 

Dentes que mordem porque querem matar a fome e desafiar a dor. 

Gemidos que saltam sem ordem, na liberdade que o prazer ordena. 

As mãos despem o corpo porque a vontade assim o pede. Sentem as curvas desenhadas nos músculos, as imperfeições talhadas pelo viver, o tempo que se quer intenso. Seguram com força o prémio do desejo. 

Os olhos observam a anatomia humana como arte. Seguem nela o mapa erógeno, porque conhecem o destino sempre diferente a cada chegada. 

Depois, há a guerra. Os membros que lutam para manter o seu domínio até à entrega final de quem se rende na vitória. 

Os movimentos conhecem bem a sua função, automática, sem qualquer comando consciente. Acontecem, quase sem lógica, porque é assim que deve ser. Cru. Bruto. Sem pudor. 

O combate intensifica-se até que todos desistam para comemorar o triunfo. 

A derrota não conhece o seu nome aqui, neste lugar, onde a força se manifesta até à explosão dos sentidos de quem se anula. 

Não há um fim verdadeiro. Recomeça logo após, ou então mais tarde, mas recomeça sempre. Batalhas gloriosas onde os heróis não pertencem a nenhum exército, nem obedecem a nenhum general. Eles e elas, são as próprias armas e o campo do conflito. 

Por fim, o descanso faz algum sentido. A serenidade não precisa de dizer nada para acontecer. O acto consumado. O desejo saciado. Os corpos calados unidos por toques frágeis. A alma engrandecida pela essência de ser gente renovada.


sábado, dezembro 12, 2020

No breu da noite


Quando tentas adormecer sentes algo lá fora, a observar-te por trás das portadas fechadas. O mundo está recolhido, como se não existisse. Sobras tu e o que entendes por real. O medo que quase se pode tocar com as mãos quietas do horror. A irracionalidade é mais forte que tu.

Naquelas noites de insónia, em que o sono teima em não chegar, essa presença sombria é ainda mais forte. Chega-se ao pé de ti, escondida no breu da noite. Não sabes explicar o que é. Apenas que está lá parada a olhar para dentro de ti a penetrar na solidão. Como se estivesse prestes a interromper pelo teu ânimo com as suas mãos gélidas e invisíveis. 

Por vezes, quando já dormes, parece que se senta na tua cama com o peso da sua inexistência. Acordas entre gritos desesperados que a garganta parece soltar instintivamente, buscando por um auxílio que não chega. Não tens a certeza que tenha tenha sido um sonho ou os sentidos a pregarem-te partidas de mau gosto, embora o teu nome seja sussurrado pelo silêncio. 

É uma coisa obscura, sempre lá, mesmo de dia quando o sol raia alegremente. A luz, ajuda a esquecer a sua existência, embora, em certas sombras que surgem de repente tu vês a sua figura incorpórea. O seu negrume sem nome, consegue deturpar todas as cores vivas e iluminadas que compõem os teus segredos. 

Vai, na sua voz calada, convidando aos pensamentos mais perversos que a maldade humana pode consumar. Não sabes o seu nome e assusta sabe-lo. Tens medo de o pronunciar, pois, pode tomar isso como um chamamento e vir a ti mais rapidamente. Com ele, trazer também a sua presença gélida para dentro da tua pele. 

Em vez disso tentas chamar a alegria, numa tentativa de o mandar embora para outro lugar. Procuras salvação numa fé que não tens. A mesma a que recorres nas noites de invernia entre orações inúteis, que, por fazerem passar o tempo, te dão a ilusão de companhia e adensam o cansaço. 

A noite vai longa e há silêncio. O mundo dorme e tu não. Lá fora, sabes que algo te observa, sem forma, ou explicação. És frágil e tens medo. Muito medo. Os teus olhos cerrados não expulsam o seu interesse e muito menos trazem o sono para te salvar. Aquela coisa não se pode ver, nem iluminar ou descrever. Simplesmente é.  

Todas as justificações para a sua existência são tão válidas como inúteis. Mas no fundo, tu sabes que lá fora não há nada. O terror que sentes não vem de qualquer acção exterior. Muito menos de um mito folclórico que o possa descrever. Tu conheces bem a verdade, contudo, como quem se habitua a mentir a si mesmo com todas as suas forças, não consegues admitir que a maleficência está dentro de ti.


quarta-feira, dezembro 09, 2020

O conforto da distância


Está frio e como sempre estou sozinho. Mas não sinto saudades e isso é estranho. 

Os outros, querem sempre alguém ou alguma coisa. Vão-se perdendo nesses sentimentos inebriados. Eu não sou assim, embora os compreenda. 

O vento sopra e a solidão fala. A chuva cai e a interrogação cresce. O que procuro não está aqui, nem depois do horizonte. A companhia é sempre algo temporário, fruto do caminho que se percorre. A carne é só minha. A dos outros pertence a eles, tal como os seus pensamentos. O máximo que podemos fazer é partilhar estas jaulas cobertas por aparência e anatomia. 

Ninguém criou uma ciência que funda todos num só. Inventaram religiões para explicar o inefável. Depois justificaram correntes políticas para negar o indizível e controlar as mentes mais pequenas (que são tantas). Não deixam crescer a curiosidade em nome de um bem maior que não passa de egoísmo. Humanidade, não é mais que uma palavra bonita para ditar nos discursos sem sentido. 

Mas eles já não me importam. Fazer-lhes frente é uma luta desigual. Cansa-me a revolta inútil. Perdi o encanto por causas nobres. 

Existe algo escondido neste mundo e em todo o mistério da existência. Não conheço essa verdade e isso incomoda-me. Fujo para o conforto da distância. A multidão não tem nada para me oferecer para lá do que é banal. Já não procuro rostos que tenham escrito no olhar a inquietação de ser diferente. 

Aqui, ao lado de todos, apresento-me longínquo, num lugar em que nenhum toque me alcança. Há um desinteresse crescente em mim sobre a vida alheia. Acho isso fascinante. 

Quem sabe esteja numa direcção que me leve à Gnose. Embora, provavelmente, a fronteira com a loucura seja demasiado ténue. Ou pelo menos seja vista assim por aqueles que não compreendem, nem querem compreender e atacam com todas as forças aqueles que o tentam fazer. 

Já fui como eles. Talvez, por vezes, ainda seja. Intolerante. Afinal de contas, cada um defende a sua verdade por mais ridícula que seja. 

Não posso afirmar que haja algo extraordinário em mim. O que entendo por diferente deve ser só ilusão. Estou aqui também, a desabafar com frases feitas. 

Está frio e eu não me entendo. Possivelmente também seja como os outros e isso é estranho.