quarta-feira, dezembro 15, 2021

Amor em tempos modernos

Ele teve o azar de nascer um tipo romântico! As mulheres é que deviam ser românticas e não os homens. A emancipação do sexo feminino trouxe muitas coisas novas, incluindo falarem e praticarem abertamente as suas fantasias. Obviamente que ele não se opunha a este direito essencial, mas ele era apenas um tipo romântico, não percebia nada de taradices. O que ele queria do sexo, pouco mais era do que a posição do missionário e dormir enroscado com a sua amada. Tão simples quanto isso. No entanto, para mal dos seus pecados, a sua namorada era uma pervertida escondida atrás das suas boas maneiras e óculos de leitora compulsiva. Isso levou-os até aquele momento. Afinal de contas o que é que ele percebia de BDSM!?

Alguém se lembrou de escrever um livro chamado ‘As Cinquenta Sombras de Grey’, que deixou as mulheres todas a fantasiar com sadomasoquismo. A namorada dele também leu, gostou e quis experimentar. Insistiu tanto que ele teve de ceder. Agora olhava para o corpo despido dela amarrado na cama, deitada de barriga para baixo, vendada e amordaçada, com o traseiro exposto à sua mercê.

Debaixo da mordaça ela conseguiu exprimir algumas palavras, que mais pareciam grunhidos: “Quando é que começas”!?

Ele engoliu em seco. Não tinha a certeza se tinha coragem para fazer aquilo. Talvez fosse a fantasia de muitos homens, mas não era a dele. Contudo perguntou: “Preparada?”. Ela soltou um sim abafado. Ele subiu o braço e deu a primeira chicotada, sem qualquer reação da parte dela. Bateu mais algumas vezes sem que ela reagisse.

“Cebola!”, acabou por gritar debaixo da mordaça. Era a palavra-passe que tinham combinado para um caso de urgência. Pensou que era uma palavra estranha. Mas se ela gritou é porque algo estava errado! Apressou-se a soltá-la das amarras. “Estás bem?”, perguntou preocupado.

“Que diabo estás tu a fazer?”, respondeu extremamente irritada. Ele encolheu os ombros sem perceber o que se estava a passar. Ela levantou-se bastante incomodada e pegou no chicote que ele usou. Viu com estranheza que não era o mesmo que tinha trazido consigo. “Não acredito que me chicoteaste com um fio de lã”.

“Mas o chicote ia doer muito! Por isso fiz esse de lã para não doer…”, respondeu confuso.

“A ideia é essa! Agora vou eu mostrar-te como se faz! Tira a roupa!”, ordenou ela furiosa.

Ele estava atrapalhado, mas obedeceu prontamente. Ela atirou-o para cima da cama e colocou-o na mesma posição em que ela estava antes, deixando-o totalmente à sua mercê. Amarrou-o severamente e amordaçou-o, enquanto proferia palavras brutas. “Agora vais ver como se faz!”, resmungou ela, dando-lhe uma forte palmada no traseiro. Estranhamente ele achou aquilo tudo muito excitante.

Depois, sem qualquer sinal de aviso ela usou o chicote verdadeiro e... “FWWIIIIP”! Fez-se ouvir o som do cabedal a atravessar o ar.

A partir daqui, acredito que não vale a pena descrever o resto da cena. Passo logo para o dia seguinte. O nosso amigo romântico estava vigorosamente feliz. Isto, apesar dos colegas de trabalho repararem que ele estava com dificuldades em sentar-se…

É assim o amor dos tempos modernos!...


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita


domingo, dezembro 05, 2021

Dia de festa

O menino estava tão bonito, parecia um padre em ponto pequeno. O hábito branco, cabelo penteado imaculadamente e um terço na mão, faziam-no parecer um pequeno anjo, enquanto posava para a fotografia! Quem olhava para ele não podia imaginar que se tratava do maior reguila do vilarejo. Era conhecido por todos os habitantes pelas suas travessuras endiabradas, que, apesar de lhe valerem algumas valentes tareias, nunca deixou de fazer.

Naquele tempo, início dos anos oitenta, a primeira comunhão era um evento extremamente importante nos vilarejos do interior. Um rito marcante de passagem na infância.

Nesse ano, as catequistas treinaram as crianças para um momento especial, em que o padre, durante a celebração, perguntava aos pequenos qual era o dia mais importante da vida deles? Ao que os pequenos respondiam em uníssono: "É o dia da minha comunhão"!

Tudo isto foi ensaiado vezes sem conta até à perfeição. Só que, no dia da missa, com a igreja cheia de gente e toda engalanada, o padre, ao fazer a pergunta, deparou-se com um silêncio total por parte das crianças. Tendo em conta que estavam intimidadas pela solenidade do momento, repetiu, sem que tivesse resposta novamente.

Ao reparar na timidez nos rostos dos pequenos, repetiu uma terceira vez. E mais uma vez ficaram em silêncio, para frustração do padre e das catequistas. Só o nosso pequeno reguila ganhou coragem de tomar a palavra, e com o dedo levantado disse bem alto: “É o dia em que o meu pai mata o porco”!

Isto fez com que uma gargalhada geral percorresse a igreja. Com excepção das catequistas que não esconderam a vergonha, bem como do padre que ficou vermelho de raiva!

Aqui, convém lembrar que o dia da matança do porco era também uma ocasião festiva nos vilarejos do interior. Juntavam-se familiares e amigos em alegre convívio. Comia-se com fartura, bebiam-se uns copos, diziam-se umas piadas, e as regras rígidas daquele tempo pareciam abrandar com esta festa caseira. Tudo à custa do pobre animal, cujo único crime foi ficar gordo. Obviamente que o nosso pequeno traquina gostava desse dia, em que podia fazer umas brincadeiras mais malandrecas e escapar-se dos castigos com facilidade.

Para azar do nosso rapazola, e apesar das gargalhadas que ecoavam na igreja, esta era a sua primeira comunhão e tinha de se portar muito bem. A julgar pela cara de desagrado dos pais (secretamente divertidos), parece que não se ia livrar de umas boas palmadas.

Com tudo isto, o nosso pequeno traquina fez jus à sua fama; o padre e as catequistas aprenderam que as crianças são imprevisíveis; o povo daquele vilarejo ia-se recordar daquela primeira comunhão durante muito tempo; e nas futuras matanças do porco esta história ia ser recordada com entusiasmo por muitos anos.


Texto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita


quinta-feira, dezembro 02, 2021

Eu, que te amo.

Conheci-te desta forma.

Um espírito livre não tem apenas uma imagem, muito menos um só corpo, porque uma história sozinha não basta para tanta imensidão. Tem, contudo, traços comuns a todas as suas personificações. Passeiam-se pela vida como se fossem seres individuais, ligados pela mesma centelha que os distingue de todos os outros. Pequenos pormenores tão insignificantes quanto grandiosos.

Tu és assim.

Talvez não acredites porque o teu fado é duro, desde a semente que te plantou, até que as tuas raízes se entranhem neste mundo tão agreste. Quem sabe não consigas ver a plenitude do azul do céu quando tudo em ti é Verão. Mas eu, que te amo, reconheço a tua poesia em qualquer lugar em que te cruzes comigo.

Cheiras a mar num dia quente.

És praia deserta, com ondas serenas e Natureza tranquila. O teu rosto a contemplar o oceano destaca-se dos demais. Há um Universo inteiro dentro de ti que não cabe numa só vida. Uma juventude antiga que mais parece uma viagem. Gosto desses teus enigmas. Mistérios que guardas na imensidão da tua alma.

És a madrugada vulnerável.

Amas a beleza do pôr-do-sol, apesar de trazer consigo a noite amarga. Termina o dia e abraças a introspeção dos tons alaranjados do crepúsculo. Se existirem lágrimas, guardas para mais tarde, para que caiam tendo as estrelas como testemunhas. Choras em rimas envergonhadas entre um sono leve e sonhos encantados.

Tens sabor de café.

Sorris. A conversa é fácil contigo. Há uma leveza pacífica na tua voz; no teu vestido comprido; na tua silhueta magra; nos adornos peculiares; nos gestos femininos. Sem ocultares as cicatrizes que fazem de ti quem és. A elegância inconfundível do teu rosto assimétrico irradia algo mais que luz. Magia provavelmente. Embora possa ser a paixão a falar.

Vais e vens.

Chegaste, demoraste o teu tempo e foste embora, porque os espíritos livres são assim. Viajantes sem amarras. A percorrer caminhos entre praias, serras e pessoas. Há sempre um local novo a conhecer. Alguém com quem partilhar um pouco dessa essência enigmática, na língua colorida da aventura.

Tens em ti o longe. 

Foste para algures. Já sabia que ias porque olhavas sempre para lá do horizonte, apartada por essa distância inalcançável do pensamento. Contudo, não partiste sem te apresentares. Agora, já te sei reconhecer, para quando voltares com todos os teus nomes e corpos. Todas filhas dessa mesma centelha pela qual me apaixonei.


quarta-feira, novembro 17, 2021

As guerras que nos libertaram

Oiço histórias de guerra. Conquistas gloriosas em nome da liberdade. Os países, orgulhosos, erguem a bandeira dos direitos humanos, contudo, em simultâneo exibem as suas armas superiores em paradas militares bilionárias. Evocam momentos de heroísmo e patriotismo, nas batalhas grandiosas onde vence aquele que melhor defende a dita liberdade.

Já repararam que depois de uma guerra vem sempre um período de progresso?

Pelo menos até que as trevas regressem novamente… Acreditem, elas regressam sempre, já que a história tem essa mania de se repetir…

De forma irónica, alcançamos a liberdade que temos por causa das guerras que travámos no passado (nós não, os que nelas participaram em nome de um mundo melhor).

E como ficam as pessoas que batalharam nessas guerras heroicas dos livros de história?

Vidas inúteis atiradas como lixo para o entulho do campo de batalha. A palavra morte banalizada em troca da conquista da liberdade. Jovens com sonhos que nunca se concretizaram, assustados nas trincheiras, debaixo de uma chuva de balas e sangue, cientes que o seu destino era morrer.

Nascem heróis, morrem pessoas. Destrói-se a tirania para dar lugar a um mundo onde a paz nunca acontece realmente. Existe sempre um motivo para batalhar. Uma causa superior que mobiliza a vida dos inocentes para a chacina.

Aqueles que escutam as histórias, pouco se importam sobre quem pereceu para que o mundo fosse livre. A guerra parece longe para quem nunca a suportou. Perdida nos livros de história, ou escondida atrás de um ecrã. As vítimas lamentam para os microfones e para as câmaras. Entretêm as massas nos noticiários como se fosse um reality show feito de tragédias.

Mas afinal o que importa a vida de quem não conhecemos?

Como se curam as feridas dos que sobrevivem ao inferno?

Cicatrizes eternas no corpo e na alma, impossíveis de esquecer na sua dor perpétua.

Nas cerimónias emotivas, nos discursos dos políticos, lembram-se as datas das batalhas e toda a glória alcançada. Faz-se um minuto de silêncio por aqueles que nunca conseguiram viver para além do campo de batalha. É só isso. Um esquecimento disfarçado de homenagem, por aqueles que nunca conseguiram voltar a casa, longe da guerra, para conhecerem uma vida onde a paz é verdadeira.

E nós, que valor damos à liberdade que nos ficou de herança?

 


Iron Maiden – Paschendale

 

Num campo estrangeiro ele está caído

Um soldado solitário, um túmulo desconhecido

Nas suas palavras moribundas ele implora

Contem ao mundo sobre Paschendale

 

Aliviado de tudo porque passou

A última comunhão da sua alma

Ele enferrujou a tuas balas com suas lágrimas

Deixa-me contar-te sobre estes anos

 

Abaixado em uma trincheira cheia de sangue

A matar o tempo até à minha própria morte

Na minha face eu sinto a chuva que cai

Nunca verei os meus amigos novamente

 

Entre o fumo, lama e chumbo

Cheiro o medo e a sensação de terror

Em breve será a hora de passar o muro

Fogo rápido e o fim de todos nós

 

Assobios, gritos e mais rajadas de fogo

Corpos sem vida pendurados no arame farpado

O campo de batalha nada mais é do que um túmulo sangrento

Em breve vou-me juntar aos meus amigos mortos

 

Muitos soldados com dezoito anos

Afogados na lama, sem mais lágrimas

Certamente uma guerra que ninguém pode vencer

A hora da matança está prestes a começar

 

Uma casa, longe

Da guerra, uma hipótese de viver novamente

Uma casa, longe

Mas a guerra, sem hipótese de viver novamente

 

Os corpos, nossos e dos nossos inimigos

Um mar de morte a transbordar

Na terra de ninguém, só Deus sabe

Para as mandíbulas da morte nós vamos

 

Crucificados como numa cruz

As tropas aliadas lamentam as suas perdas

A máquina Alemã de propaganda de guerra

Como nunca ninguém viu

 

Juro que ouvi os anjos a chorarem

Rezo a Deus para que mais ninguém morra

Para que as pessoas saibam a verdade

Contem a lenda de Paschendale

 

A crueldade tem um coração humano

Cada homem faz a sua parte

O terror das pessoas que matamos

O coração humano ainda tem fome

 

Defendo a minha posição pela última vez

A arma está preparada enquanto fico na linha

Nervoso, espero o soar do assobio

Uma investida de sangue e vamos em frente

 

Sangue cai como chuva

O seu manto vermelho é revelado novamente

O som das armas não pode esconder a vergonha deles

E assim nós morremos em Paschendale

 

Desviando-me dos estilhaços e arame farpado

A correr na direcção do fogo dos canhões

Correndo às cegas enquanto sustenho a respiração

Digo uma oração, sinfonia da morte

 

Enquanto atacamos as linhas inimigas

Uma explosão de fogo e nós caímos

Eu engasgo um grito mas ninguém ouve

Sinto o sangue a descer na minha garganta

 

Uma casa, longe

Da guerra, uma hipótese de viver novamente

Uma casa, longe

Mas a guerra, sem hipótese de viver novamente

 

Vejam o meu espírito sob o vento

Para lá das linhas, depois da colina

Amigos e inimigos vão-se encontrar novamente

Todos aqueles que morreram em Paschendale


Texto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita

domingo, outubro 31, 2021

Dia de chuva

Há dias em que chove

Lágrimas de quem não sabe chorar

Pranto que ninguém ouve

Amargura de quem não sabe amar

Caneta que não se move

Apatia de quem não sabe versar

Soneto que não se escreve

Poemas de quem não sabe rimar


Hoje é um dia em que está chorar

Lágrimas que ninguém sabe

Pranto calado para ninguém escutar

Amargura onde a cor não cabe

Caneta pousada sem vontade de criar

Apatia num vazio enorme

Soneto calado que fica por declamar

Poemas onde o amor dorme


quarta-feira, outubro 20, 2021

A cidade

“Eu tinha de voltar àquela cidade”. Devo começar assim um texto, ou um conto, ou qualquer coisa que se escreva para alguém ler depois (ou ninguém, ou apenas eu sozinho numa viagem ao passado).

Gosto que me dêem uma orientação para que as palavras saiam. Uma ordem imperativa para escrever as emoções, senão, ficam cá dentro acumuladas como lixo. Tenho de escrever como se fosse algum tipo de obrigação religiosa, ou melhor, um exorcismo de demónios que moram cá dentro à espera de que a porta da loucura se abra para o exterior.

Assim foi feito: “Eu tinha de voltar àquela cidade”. Mas afinal a que cidade devo eu voltar? Nem sequer gosto de cidades. Pessoas que andam pelas ruas claustrofóbicas, trânsito aglomerado como um bando de formigas cujo destino é ser apenas mais um número.

Talvez só conheça as cidades erradas e esteja a fazer juízos incorrectos. Ou, talvez, não compreenda quem vive para lá do meu mundinho grandiosamente pequeno. Não interessa, vou continuar a escrever.

Voltar a uma cidade que não conheço, fazer amizade com gente que nunca vi, passear tranquilamente nas avenidas sem que os passos dos outros me incomodem. Parece quase inconcebível.  

Dou por mim, assim, a escrever sobre essa cidade hipotética que só existe na minha fantasia. Sinceramente gostaria de voltar lá. A essa tal cidade, onde nunca estive (e a minha imaginação tem dificuldade em criar). Cheia de gente e apartamentos pequenos, sem quintais, ou ruas quase vazias. Assistir aos programas de entretenimento de domingo à noite e comentar, como se aquilo importasse para alguma coisa.

Mas eu não sou assim. Valem as palavras escritas. Servem de viagem a esse lugar que me pediram para voltar. O homem não é só feito de corpo. A imaginação também conta como um sítio real. Acho que todos os filhos da fantasia sabem disso.

Desta vez apresento uma cidade sem nome, onde mora quem não conheço, com histórias que nunca aconteceram, em que a inquietação se dispersa pelas vielas perdidas no meio dos prédios que não existem. Onde eu gostaria de ter voltado, sem nunca lá ter ido antes.

Pediram para escrever sobre uma cidade e eu escrevi. Mas a realidade é que só escrevi sobre mim e peço desculpa por isso (ou talvez não).


Texto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita

domingo, outubro 17, 2021

As mentes não foram feitas para ser lidas

Sentaram-se na mesa frente a frente. Apesar de ser um encontro informal, houve uma altura em que cruzaram olhares. Não se pode contabilizar o tempo que demorou. Talvez fosse um segundo, um minuto, ou até mais, ou ainda menos. Quem sabe? Neste tipo de situações, que mais parecem uma eternidade, é impossível dizer. Mas na realidade, pouco ou nada importa.

Ele olhava-a, como se saísse de si mesmo para dentro dela. Um arrepio percorreu-lhe o corpo como se a pele ganhasse vida própria; o coração disparou como num susto violento; os membros bloquearam como se a vontade já não pertencesse a ela. Era apenas um olhar, mas ela sentiu muito mais do que isso. Era como se o interior da sua pele, escrito com os segredos e desejos mais profundos, se transformasse em folhas de papel e ela fosse um livro que ele podia ler através dos seus olhos. Ele folheava cada página sem pressa, enquanto consumia cada palavra com uma atenção sobrenatural.

O canto da boca dele começou a curvar para cima dando início a um sorriso dominador. Nessa altura, ela, com toda a força de vontade que conseguiu acumular por detrás da sua mente nua, desviou o olhar. Ainda assim, continuava a senti-lo, dentro de si, a ler a sua mente sem pedir autorização. Sentiu muita vergonha, ficou corada, com medo, rendida, num misto impossível de emoções. Presa na eternidade daquele momento. Sem qualquer tipo de muralha que a escondesse daquele olhar penetrante.

– Sente-se bem? – Perguntou ele com a gentileza de quem sabia a sua fragilidade interna.

– Sim, sim, claro! – Respondeu atabalhoadamente.

– Por momentos julguei que estivesse nervosa. Não foi essa a ideia com que fiquei quando me falaram da sua reputação. – Entregou-lhe uma pasta com um relatório sobre um projecto qualquer. Ela soltou um risinho ridículo, como uma adolescente aparvalhada.

– Não! Quer dizer... Não sei quem foi que lhe disse isso, mas pode ter a certeza que sou extremamente profissional naquilo que faço. – Abriu a pasta escondendo o rosto no relatório.

– Eu sei. – Afirmou ele com uma serenidade convicta na voz. – Espero que o relatório seja suficientemente claro. – Rematou com uma ironia subtil, já que ela não se conseguia concentrar na leitura por causa dos nervos inquietos. Já nem se reconhecia. Nem sequer conseguia ler o título escrito em letras grandes e maiúsculas que pareciam que se misturavam de forma confusa e ilegível.

Ela engoliu em seco. Pouco mais sabia daquele homem do que o seu nome, a sua profissão e que tinham marcado aquela reunião para tratar de negócios. Mas ele sabia tudo sobre ela. Parecia impossível! O pensamento de uma pessoa não pode ser lido, mesmo assim ela sabia que ele conseguia fazer isso. Seria a sua cabeça a pregar-lhe partidas? Estava louca? Não! A expressão dele mantinha-se fixada nela. Continuava a ler os segredos dela sem qualquer tipo de pudor.

– Então, o que me diz sobre o relatório? – Perguntou diante do silêncio dela.

– Eu... – Não foi capaz de continuar a resposta. Finalmente conseguiu ler as verdadeiras palavras no documento. Destacava-se o título: “FICHA DE PERSONAGEM''. Seguia-se, o seu nome, idade, com todas as características possíveis e imagináveis sobre si própria. – Eu... Não sou real! – Concluiu.

– Eu sei. – Confirmou o autor.


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita

A festa

No dia em que eu desisti, o mundo fez uma festa em minha honra. 

Os povos de todas as culturas saíram à rua, com cantos, danças e foguetes. Pegaram-me em ombros para desfilar comigo nas avenidas enquanto toda a gente clamava o meu nome e me batia palmas com um entusiasmo eufórico. 

Os governos declararam feriado e na comunicação social não se falava noutra coisa. A alegria contagiou a Terra inteira por causa do meu nome superior. 

Então, levaram-me ao topo do edifício mais alto e todos gritaram em uníssono para que fizesse um discurso de vitória. Excitado pela euforia, abri os braços e saboreei aquele momento de glória absoluta. 

Durante vários momentos, longos, deixei que focassem em mim todo o seu êxtase. Depois, com as palmas das mãos viradas para baixo, gesticulei um sinal a multidão para que fizessem silêncio. Obedeceram quase de imediato, conseguiram acalmar a energia e calaram-se para me escutar, tal era a fome pelas minhas palavras sabias. 

Olhei-os com clemência e projectei a minha voz na direcção dos quatro cantos do planeta bradando: 

«Hoje desisti!» imediatamente fez-se ouvir uma monumental salva de palmas. Voltei a pedir silêncio e continuei: 

«Desisti com orgulho, parece que todo o peso do mundo saiu de cima das minhas costas e por isso sinto-me leve que quase parece que consigo voar!» As palmas soaram novamente junto com palavras de incentivo. Assim que voltou a calmaria continuei: 

«Contudo, não posso voar, nem o quero! Não quero ser mais do que aquilo que posso ser, por isso, hoje, sou novamente um de vocês! Um herói que não tem vergonha de desistir! Sem a obrigação de me superar a qualquer preço!» Veio mais uma ovação. 

«Por favor não me dêem mais vivas.» Disse, com a emoção estampada no rosto para que todos me vissem. 

«Esta leveza é o símbolo da Liberdade que todos merecemos. Sem qualquer tipo de autoridade que me diga que a responsabilidade deve ser assumida a todo o custo, mesmo que não a queira, ou que ma tentem impingir! Hoje, regresso à condição de ser humano, frágil, longe das grandes glórias com que me tentaram iludir.» Desta vez ouvi menos palmas e reparei que a multidão se começava a dispersar rapidamente. 

«Obrigado!» Agradeci aos poucos que restaram com uma ligeira vénia. Também esses não me ligaram muito. Estavam ali parados, inertes e distantes, como se não tivessem mais nada para fazer. Nem sequer lhes mereci um olhar minimamente atento.

A minha voz emotiva já não interessava a ninguém. Toda a festa grandiosa feita em meu nome, era agora uma memória descartável, como se nunca tivesse acontecido. Sobrou a leveza da minha decisão. Juntamente com a tranquilidade de ser Livre.


segunda-feira, setembro 20, 2021

Interpretar o que não existe

Os acordes chegam de mansinho aos meus ouvidos. Não importam os instrumentos que os sussurram, apenas os sentidos que os consomem. Deixo-me mergulhar neles como quem entra num sonho transcendente. 

Trazem uma melodia encantada que me faz viajar: pela imensidão das Estrelas que pintam o Cosmos; por outros "eu"; por amores indizíveis; por acontecimentos transhumanos; por histórias que ainda não criei. A cada nota emanada vai-se montando um cenário onde a magia, a ciência, e a fantasia se misturam num único entendimento. 

A partitura, composta num momento de criatividade divino, vai-se edificando. A beleza da música revela os seus segredos nos mais pequenos detalhes. Eu escuto e assimilo uma mensagem que não tem palavras, somente um convite para alcançar o que está longe. 

A interpretação é livre. Cada um pode escolher o que sentir quando uma sinfonia sem destino escolhe traçar o seu caminho através da pessoa que somos. É para isso que a arte existe: para elevar os sentidos que nos prendem a este chão. 

Não conheço o nome do autor mas partilho com ele a viagem de sinestesia sensorial que vivenciou quando compôs esta trilha de sensações. É este o objectivo da partilha, percorrer aquilo que a realidade tem de alternativo. A imaginação cresce tal como um universo que nasce. 

Um compositor qualquer criou o princípio para que todos os que o escutam continuem a sua criação. A harmonia intensifica-se quando os ouvidos fazem desabrochar todos os outros sentidos, para pintarem uma tela onde o impossível não existe. 

Danço como quem escreve; sonho como quem vive; perco-me como quem se encontra. O tempo não faz sentido neste mundo feito de criatividade, onde não há objetivos, a não ser interpretar o que não existe. 

A ilusão é real porque o artista assim o quer. Sem as fronteiras da percepção humana, ou dos ensinamentos das ciências exatas. A música faz-me ir para lá de mim. Conhecer coisas que ninguém sabe ensinar. 

Hoje, falo da música, mas podia falar das cores, da natureza, do amor, ou da tristeza. Posso apenas dizer que sinto profundamente algo que está longe. Distante como eu. Aquelas coisas que só são compreendidas por quem sente na pele o significado da fantasia.

O mundo torna-se insignificante, perante aquilo que só eu sinto quando os acordes encaixam perfeitamente naquilo que nunca saberei explicar. O que é meu, é somente meu. Digo por palavras inúteis que sinto algo superior. É só isso, mas é tanto.

Nada mais pode ser dito. Não pode ser partilhado. Contudo, como se trata de uma espécie de magia, posso convidar-te para sonhar um pouco também com o infinito, nestas palavras perdidas com que me tento expressar...


quinta-feira, agosto 19, 2021

Interlúdio colorido

Sentou-se à sombra dos castanheiros, sentiu a brisa fresca que corria, inspirou e apreciou o cheiro da natureza. Soube-lhe bem. 

Apercebeu-se que sentia cansaço, com a azáfama nem tinha dado conta. "É estranho quando uma pessoa não se apercebe que está cansada, seja pelo trabalho, pela companhia, ou ainda até pelo próprio pensamento." Refletiu. Por isso encostou-se ao tronco robusto da árvore e descansou. 

Olhou em volta e contemplou a beleza colorida que estava em seu redor. Por ser Verão os girassóis estavam abertos. Eram imensos, altos como as árvores de fruto que se espalhavam pela quinta. Nunca tinha reparado que eram tantos, nem que podiam ser tão altos, ou que havia tanta variedade de fruta naquele lugar que parecia pequeno para quem olhava na rua. 

Relaxou como já não fazia há muito tempo, tanto que já não se lembrava de alguma vez o ter feito. Não olhou para o relógio. Não era preciso. Aliás seria até pecaminoso contar o tempo daquela pausa. Também por lá estavam alguns cães e gatos que dormiam tranquilamente sem preocupações. Afinal de contas os bichos não tinham as mesmas obrigações dos humanos. Não precisavam de medir o tempo e provavelmente por isso pareciam tão tranquilos.

É estranho como de repente tudo que lhe atormentava o pensamento desapareceu como se fosse insignificante. A tranquilidade era soberana. Sem vozes irritantes. Apenas o barulho das folhas que dançavam com a brisa. Aqui e ali os pássaros chilreavam e ao longe ouvia-se um pequeno moinho que girava. "Que sossego maravilhoso!"

Interrogou-se porque não parava assim mais vezes. Tão perto e ao mesmo tempo tão longe dos outros e de tudo. Só o momento e a natureza. Mais nada parecia importar. Os dias são longos em Agosto e isso é tão bom. A vila desacelera do lado de fora das sebes, parecendo querer acompanhar o ritmo da natureza.

As cores invadiram-lhe a alma. O céu azul, o verde nas folhas que dançam, o amarelo dos girassóis, o arco-íris da perfeição num dia de sol a irradiar uma pequena quinta. 

A calma afasta a pressa. A Paz deixa de ser apenas uma palavra e ganha um significado palpável na oração calada de quem contempla a sua própria pequenez. 


segunda-feira, agosto 09, 2021

Angústia erógena

Existe um erotismo estranho na fragilidade. Cativa-me o desmoronar da perfeição humana, quando as mentiras que suportam aquilo que tomamos por adquirido são reveladas. 

Há uma certa liberdade quando verificamos que a realidade não passa de um instrumento de submissão. Uma entrega voluntária de corpo e alma a dominação que a sociedade impõe. 

Sofremos os castigos e mendigamos por mais. Somos escravos da nossa própria ideia. A verdade é um véu que se levanta para mostrar outro véu e ainda mais outro. Se queremos lá chegar temos de levantar todas as camadas de supostas verdades. E mesmo assim, nunca temos a certeza onde está realmente a verdade que procuramos. 

Contudo, apresenta-se com pudor a alma nua decorada pelas cicatrizes que o viver impõe, outrora caladas, curadas pelo silêncio da boca proibida de mencionar tais queixumes. 

Magoa e chora-se na solidão de quatro paredes. Faz-se poesia nas palavras não ditas, nas dores não purgadas, no sofrimento proibido. Numa forma quase macabra, acho isso bonito. O choro; as dores; as cicatrizes que ficam para lembrar uma história. 

Dói querer ser gente, mas não faz mal. É suposto ser assim e é só assim que deve ser, mesmo a doer. 

O sofrimento é um silêncio constante que grita cá dentro onde o mundo não ouve. Lamentar é uma humilhação mesmo quando o flagelo é insuportável. 

Atrás da tua pele existe uma angústia erógena. Esconde-se como um chamamento que só os malditos conseguem ouvir. Depois, há o perfume da ilusão desfeita que emana do teu ser incompleto. Tudo é violento nesta atração pela carne imperfeita. E ainda bem! 

Sabes que os amores mais memoráveis acontecem por causa de desventuras. Começam na sombra, moldados pelo barro do proibido. Oculta-se o bom-senso para as confissões que nunca se fazem aos padres da santa inquisição. Eles acendem as fogueiras e o desejo dança nelas. 

A dor vem com a companhia da solidão. A cura chega na ânsia de beijar o que é negado. Mas ninguém pode negar por completo aquilo que inquieta. Lábios de vidro estilhaçados pelo beijo cortante que apazigua o sofrimento. Ama-se o que está despedaçado porque só assim a beleza pode ser infinita. 

A perdição parece eterna. Pois que assim seja. A paixão está escondida na fragilidade secreta onde mora o desejo!


terça-feira, agosto 03, 2021

Desculpa a desarrumação

Paixões platónicas!? Procura algures aí nas divisões perdidas do meu pensamento. Vai abrindo as gavetas da memória que deve andar por aí alguma perdida. 

Sim, sim, ainda deve ter algumas com uma pequena chama a arder. E se não estiver acesa sopra um pouco que ela deve animar. 

Entra, a casa é tua. Desculpa a desarrumação, mas tenho coisas mais importantes para fazer do que limpar a confusão na minha mente. 

Podes espreitar à vontade onde quiseres. Tenho a certeza que deve andar por aí perdida alguma coisa de interessante. Sabes que não dou muita importância ao que já passou. Por isso deixo por aí espalhado em lugares esquecidos. 

Se procurares com atenção, deves encontrar histórias que fogem bastante à noção de normalidade. Algumas até devem ser bastantes excitantes para os olhos de quem vem de fora. Mas cuidado! Não vá tropeçares por aí em algum segredo mais estranho. Sim, também tenho uns quantos e a alguns nem lhes dou importância. 

Não tenho tempo para organizar a minha mente. Eu lá me vou encontrando no meio da desordem. Sabes que gosto de ser assim. Sempre que é preciso sou capaz de montar um novo eu com os pensamentos que por aí andam à deriva. 

Não, não! Não preciso que me ajudes arrumar. Só a ideia de organização deixa-me incomodado. 

Andam por aí sim, uns quantos montes de entulho, que são mesmo só sujidade. Desses não te aproximes, não têm nada que valha a pena a não ser mesmo lixo. 

Mas sim, continua a procurar pelas minhas paixões. Pode ser que encontres algo que valha a pena recordar e quem sabe reviver. 

Estas coisas espalhadas pelo esquecimento são estranhas. Por vezes reemergem com uma vitalidade quase abusiva. Não achas? Embora, quando aparecem novamente para entrar na nossa vida, já não são verdadeiramente as mesmas coisas. Claro que têm uma história que já conhecemos, um prelúdio para a sua nova entrada em cena. Contudo, as coisas mudam, em mim e nessas personagens que antigamente faziam parte de mim. Por isso serão sempre novidade. 

Então já encontraste alguma coisa de interessante? 

Não. Então deixa-te estar, que eu vou fazer outra coisa. Quando encontrares avisa-me. Também eu tenho curiosidade naquilo que está perdido na memória e já nem sei.


sábado, julho 31, 2021

É já amanhã!

Pois é, é já amanhã dia 1 de Agosto! Este espaço faz anos! 

Estou numa fase em que não tenho tido motivação para escrever. Às vezes acontece. Não sei quanto tempo vai durar, mas este ano não tem sido produtivo a nível de escrita. Nem tem de ser. Afinal de contas isto é só um recanto onde eu brinco com as palavras. De qualquer forma fico muito contente por ele existir e por todas as coisas escritas que aqui vou deixando. 

Quase todos os anos assinalo esta data com esta música e faço disso um ritual agradável. 

Deixo um abraço a todos que descobrem este canto e decidem comentar! 

Feliz dia 1 de Agosto para todos!

segunda-feira, julho 26, 2021

Oiço falar de felicidade em todo o lado

Nasci triste, de gente triste. Nunca aprendi a festejar nem me ensinaram a celebrar uma vitória. Disseram-me que dançar parecia mal; cantar não era para mim; e rir era uma falta de educação.

Nunca brinquei como deve de ser com medo do julgamento alheio. Os outros estavam lá sempre para apontar o dedo e falar pelas costas sobre a minha conduta incorrecta.

O palco era só para os famosos, viessem eles de onde viessem. Só me diziam que não vinham daqui e que essas coisas eram feias.

Venho de gente malfadada e deles herdei esse fado. Fui forçado a compreender essa verdade, tal como a fadista cantou.

Vejo os outros alegres e vou atrás deles tentando imitar os seus gestos. É só isso. Esqueço-me que para erguer os braços, saltar, gritar e sorrir é preciso sentir entusiasmo. Para mim, isso, é só uma palavra incompreendida, ou até mesmo proibida. A felicidade não se copia da mesma forma que uma criança da escola passa um texto no seu caderno. 

Oiço falar de felicidade em todo o lado, seja nos livros, na televisão, nas músicas, nas conversas de café nas mesas ao pé da minha. Mas ninguém me ensina o significado de tal coisa! 

Das vezes que perguntei, nunca compreendi a resposta. Talvez tenha questionado os professores errados, já que, me pareceu que estavam tão perdidos quanto eu nessa busca de uma suposta alegria. 

Quem sabe se a maior parte daqueles que se dizem felizes, são como eu, meras cópias sem sentir? 

Conheci momentos, mais ou menos demorados, de ilusão, que me fizeram sorrir. Só isso.

Agora, sinto falta de algo em mim que nunca foi. Uma lacuna incomodativa que parece frustrar todas as minhas tentativas de ser gente.

Resta-me aceitar aquilo que sou. A melancolia também tem a sua beleza, que o digam os poetas na sua inquietude. Leio-os com algum fascino e compreensão, embora, no fundo, também a esses eu copio, porque me julgo igual a eles no sentir. Talvez até esses sentimentos eu imite. Contudo, se assim for, a cópia parece mais real do que ser aquilo que não sou.


terça-feira, julho 20, 2021

Ti Manel Velho

Ti Manel Velho vem pela estrada a mancar, apoiado numa bengala, firmando-se, sem que o seu corpo assimétrico caia no chão. Entre os seus lábios traz um cigarro aceso meio fumado. Caminha estranhamente rápido para alguém com problemas na locomoção.  

O cabelo grisalho e as rugas que lhe estilhaçam a pele do rosto, anunciam a idade avançada que lhe valeu a alcunha. Porém, aqueles que hoje já são adultos e pais de família, já o conheciam assim desde os tempos de criança, com a mesma idade dos seus próprios filhos. 

Nada na aparência daquela figura se tinha alterado com o passar do tempo. O homem idoso que hoje segue pela rua, bem podia ser o mesmo que o fazia há umas décadas atrás. Talvez fosse uma partida da memória, contudo, as rugas, o cabelo, a bengala, a roupa, ou o próprio cigarro sempre aceso, em nada mudaram comparando com as recordações de infância. 

Talvez aquele homem já tenha nascido velho, a mancar e a fumar. Saltado do ventre da sua mãe, pronto a percorrer as mesmas ruas, às mesmas horas, depois de um copo ou dois na tasca de sempre. Concebido com esse propósito por alguma vontade desconhecida do senso comum, sendo aquele o seu único objetivo nas fileiras da humanidade.

O resto da sua história, se algum dia existiu, ficou perdida no esquecimento da indiferença. Tudo o que tinha a dizer estava naqueles passos diários e rotineiros. Sem grande sabedoria e nenhuma evolução. Sempre a mesma figura sem ambição, sem qualquer sinal de modernidade. O que faz hoje, podia ter feito há cem anos atrás. Sobram aqueles que o observam, sempre igual, enquanto o mundo muda.


sábado, maio 29, 2021

Autópsia da paixão

Se eu pudesse abrir-te o peito, rasgando o esterno com a violência de quem ama, podia tocar-te no coração para ter na minha mão aquilo que tu sentes. Ou então, alcançava-te o cérebro em busca daqueles jardins com cheiro a primavera que trazes nas tuas palavras. Procurava entre as células cinzentas todos os mistérios com que me cativas, para viver nesse país desconhecido que é o teu nome. 

Seria como um cirurgião a retalhar dentro das entranhas alheias, só para poder tocar no teu âmago. Contudo, bisturis e coisas que cortam não abrem caminho até ao sentir. Os órgãos humanos servem apenas o propósito de dar mecânica ao corpo. Alguém, um dia, sabe-se lá porquê, lembrou-se de dizer que é de lá que vêm os sentimentos. 

Agora que reparo com atenção neste pensamento acho-lhe uma certa piada. Destruir a carne viva para poder encontrar o indizível. Se tal acontecesse seria apenas uma cena macabra para dar audiência aos noticiários. Algo digno de loucura. O oposto do que devia ser. Uma autópsia da paixão! 

Porém, a tua nudez não chega para me levar a esses sítios onde quero habitar. Os beijos só saboreiam uma amostra do paraíso. As mãos viajam apenas pela fronteira da pele. O sexo é somente uma espécie de transporte que faz de nós turistas um no outro. A anatomia desenhou-se para encarcerar, ou iludir, tudo o que a alma tem de inalcançável. 

Contudo, os teus olhos mostram a fronteira entre mim e ti. Está tão próxima que parece fácil de atravessar, ainda assim tão impossível que até dói. Não há fusão, nem nenhuma lei da física, ou mesmo do éter, que nos torne unos. 

Sobram aqueles momentos que parecem durar para sempre. Mas isso é só poesia. Palavras que enchem os cadernos de fantasia e alimentam quem sonha. São como substâncias narcóticas que pedem cada vez mais o seu consumo. É muito pouco para quem deseja em demasia. 

A verdade é que a memória não dura assim tanto e o mundo gosta de afastar todas as juras de infinito.  


quinta-feira, maio 20, 2021

Ode aos que odeiam

Podia dizer-te que o ódio vem dos outros. Mas isso era mentira. O ódio é uma coisa que nasce no âmago do teu corpo. Uma hormona qualquer produzida pelo próprio diabo que vai subindo até ao cérebro, consumindo os recursos que deviam ser gastos para evoluir. 

O ódio toma conta do corpo com a força do próprio inferno. Corre pelas veias, violento, sem responder a argumentos de dissuasão. Assustada, a tua consciência foge para um esconderijo esquecido numa zona longínqua da mente. 

A sabedoria cala-se, já que os seus conselhos são inúteis. A lógica desaparece. Tudo o que resta são instintos grosseiros. Resquícios do animal que o ser humano já foi antes de (supostamente) evoluir. Um bicho sem conhecimento dos sentimentos nobres que elevam a alma. 

O ódio faz surgir uma nova versão tua. Alguém que desconheces. Não se trata de uma transformação de personalidade. Pelo contrário! É sim, a autodestruição daquilo que conhecemos como sendo a nossa pessoa. 

A Paz, se algum dia a sentiste, desapareceu na memória como um sonho distante. E se, por algum acaso, essa dita Paz vier à tona do pensamento num dia de nostalgia, vai servir apenas de combustível para inflamar ainda mais a tua raiva. 

Vai chegar um tempo em que tentas recordar como é a alegria. É difícil. Vai ser apenas uma palavra num dicionário inútil da tua língua materna. Ou de outra língua qualquer que deseje transcrever esse sentimento bizarro no sentir de gente revoltada. 

Depois, saberás que te perdeste algures no caminho. Viraste numa esquina errada. Não encontraste a companhia certa. Aconteceu não sei o quê. Vais querer saber de ti, mas não vais encontrar respostas sobre o teu paradeiro. 

O ódio moldou-te a consciência à sua imagem. Vais sentir nojo. Muito nojo. Dos outros. Daquela coisa que fez nascer em ti essa semente raivosa. E de ti! Principalmente de ti! Porque te deixaste levar pela ausência de Amor. Porque és menos do que um dia desejaste. Tudo por culpa desse ódio maldito que não te deixa crescer. 

Mas isso é hoje. “Amanhã é outro dia”, como diz o povo. Não percas a esperança. Purifica-te. Limpa essa sujidade do pensamento. Ergue a cabeça com orgulho. Sentes ódio; contudo não és ódio. Algo melhor está por vir. Outro tu está por nascer.


sábado, maio 15, 2021

Sem desistir

Sinto-me tão  triste
Que dói pensar em ser
Pesa o fardo do viver
Mas a alma não desiste
Continua mesmo a doer
Vence mesmo a perder
A alma magoada resiste
Quando tudo é sofrer
O desejo é esquecer
A alma em fúria insiste
Teimosa no seu querer
Aconteça o que acontecer
A alma afirma que existe
Sabe o caminho a percorrer
Confiante no seu saber
A alma cresce mesmo triste




quarta-feira, maio 05, 2021

Tal como os tolos

Há um certo cansaço na alma. Não sei de onde vem. Tenho teorias que não servem para nada, para tentar explicar esta fadiga existencial. Diz-me tu, com a tua ignorância sobre a minha pessoa, de onde vem este tormento? 

Parece que todos sabem mais sobre mim do que eu mesmo. Por outro lado, eu também pareço saber mais dos outros do que de mim mesmo. Isto eu posso explicar. Acredito que é algo que está embutido nesta coisa de ser português: escárnio, maldizer e opinar sobre tudo e mais alguma coisa. Falamos dos acontecimentos alheios porque a nossa própria vida é uma narrativa aborrecida. 

Ouvir os sábios dá-me tédio. Ouvir os ignorantes dá-me nojo. Ouvir seja quem for, sobre o que quer que seja, não me satisfaz. Quero saber mais, sobre todas as coisas, mas não encontro professores à altura. Onde estão vocês com tanto para ensinar? 

A escola é uma prisão. Os livros com a matéria explicada são enfadonhos. A escrita no quadro não elucida a vontade de saber. Entretanto esqueço-me deste cansaço que me acompanha. Ou será preguiça? 

Procrastinação! 

Viste? Escrevi uma palavra 'cara'. Faz-me sentir um erudito. Um daqueles doutores quaisquer que aparecem na televisão a comentar os assuntos com que a sociedade se entretém. Falam num tom de voz sereno, para causar boa impressão. Dão aquela ilusão de autoridade com que argumentam a sua posição, sobre o que quer que seja, ao serem questionados. Já viste essa gente a falar assim na televisão? 

Por vezes vejo. Não compreendo ao certo do que falam, embora gostasse de ser dali. Daquela terra onde eles vivem. Um sítio falado. Onde também vivem os outros. Nesse lugar onde eu pareço ser apenas uma miragem. 

No entanto, os outros são tão chatos! 

É estranho, sabes? Não os suporto, contudo tenho um desejo misterioso de ser como eles. Básico! 

Mas, o que importo eu em comparação com tudo o resto? Tenho esta mania insuportável de desejar a Utopia! Para mal dos meus pecados, essa suposta perfeição, só existe nas palavras que transcrevem o pensamento daqueles que ousam fantasiar com o impossível. 

Mas afinal, qual é o mal de desejar o impossível? 

Não dá para morar nas palavras, nas imagens, ou em qualquer arte que dê vida ao imaginário. Mesmo assim eu estou lá! Sentado num trono feito sem matéria. Rodeado dos maiores prazeres que não existem. A descansar, porque fiquei exausto a fazer qualquer coisa de que não me lembro. Tal como os tolos, sou feliz assim. Será que sou? 

Diz-me algo que me alivie a inquietude. Deixa-me uma mensagem com indicações para um porto seguro onde não existam naufrágios. A alegoria ficou bonita mas eu nem sequer navego, só imagino. 

De qualquer forma não sei o caminho. Nem sei ao certo aonde estou. Só assim me tenho guiado. Sem destino concreto. Talvez agora esteja parado para aliviar este cansaço. Numa pausa breve. Quanto ao resto não sei.


segunda-feira, abril 26, 2021

Prazer exclusivo

Vi uma mosca varejeira generosamente gorda pousada em cima de uma flor no jardim. Parecia que a sua "boca" saboreava alguma parte viscosa que compunha a cor amarela da dita flor. 

Tomado pela preguiça e pela minha posição sentada, desejei ser como um daqueles lagartos, que conseguem atirar a língua para longe para poderem capturar a sua presa. 

O universo, com toda a sua imaginação criativa, não quis que os seres humanos tivessem esse dote natural. No entanto ali estava eu descontraidamente no jardim com vontade de comer uma mosca apetitosamente gorda.

Afinal de contas qual será o sabor de uma mosca? E porque haveria eu de a querer comer se não faz parte da minha dieta? 

Acredito que fazia mais sentido se quisesse comer a flor. Mas não sei porquê pareceu-me que tinha um sabor azedo. Nunca me lembro de ter comido uma flor, talvez o tenha feito na minha meninice e o meu cérebro retenha essa memória no meu subconsciente. 

Existiam outras varejeiras pousadas em outras flores espalhadas pelo jardim. Mas essas não me cativaram. Só aquela. Talvez fosse o seu brilho esverdeado que me chamasse a atenção, embora, provavelmente fosse apenas por estar diretamente de frente para o meu campo visual. 

Não tendo uma língua extensível de lagarto, portanto, deixei a mosca continuar pousada sobre a flor a fazer o que as moscas fazem pousadas nas flores. 

No entanto a curiosidade continuou focada no inseto e lamentei que não falasse português, ou qualquer outra língua de gente. Acredito que uma conversa entre um humano preguiçoso e uma mosca gorda pousada sobre uma flor trouxesse algumas revelações sobre os mistérios da existência. 

Contudo, talvez não existam mistérios nenhuns. Cada bicho tem o seu prazer, exclusivo da espécie a que pertence. Eu com a minha preguiça, a mosca com a sua flor, o mundo a fazer sentido para alguém que o compreenda. 

O pensamento é estranho e isso é lindo. Vai por caminhos impossíveis onde o corpo não chega com a sua limitação tridimensional. Basta saber que é assim. Mas será que é mesmo assim?


quinta-feira, abril 22, 2021

Vitória suja

Gente contra mim? Eles que venham! 

Não sou difícil de encontrar no meio da multidão. Não sobressaio entre os demais, não sou como eles cheios me moda. Não tenho nada que seja digno de referência. Basta procurarem o mais distraído. 

Essa gente, se querem batalhar, que venham. 

De vez em quando também é preciso andar à porrada senão uma pessoa fica mole. Só precisam de sentir o cheiro a miséria humana. Se conseguirem atravessar o pântano que eu sou, talvez me consigam vencer. Convém que não tragam roupa muito clara, pode ganhar uma mancha ou outra por causa do terreno enlameado e depois parece mal.

Não me declaro imbatível. Pelo contrário. Até devo cair ao chão com facilidade. Então, se me apanharem pelas costas mais fácil se torna. 

Que venham por trás de mim, atolados no lodaçal imundo. Tenham atenção para não se rasgarem nos espetos dos silvais. Se só conhecem perfumes, não se preocupem, o nariz vai-se habituando aos odores nauseabundos que se estendem por quilómetros nunca contados. 

Que venham pela mansinha para que não os oiça. 

Contudo, quase nunca querem vir. Mesmo a convite e de guarda baixa. Se a lonjura não os demover, certamente a profundidade da lama vai engoli-los até às profundezas do desespero. Eles não querem vitórias sujas. Desejam coisas fáceis que fiquem bem nas palavras aborrecidas dos discursos. 

De vez em quando lá aparecem alguns, que na brutalidade vinda dum instinto qualquer lá me conseguem bater com golpes violentos de um ego sem força. Nesse caso dou-lhes a honra de me levarem de vencida. Gritarem, para que o mundo inteiro oiça, uma vitória grandiosa contra nada!


sábado, março 27, 2021

Livro do Novo Génesis 11

Naquele tempo a humanidade tinha-se dispersado pela Terra inteira e criado fronteiras, com países, línguas e culturas diferentes tal como fora designado em Babel. 

Contudo, os homens, atingiram uma grande capacidade tecnológica e, se quisessem, podiam falar uma só língua e completar entendimentos entre todos. Deus, ao ver isto, decidiu testar os homens e enviou uma praga para que se unissem como um só povo, numa só sabedoria e compaixão uns pelos outros. 

No entanto, quando deparados com a peste enviada pelo Senhor, em vez de se unirem, os homens criaram ainda mais motivos para se dividirem. O nome de Deus justificou as mais variadas religiões que em nada o serviam; os governantes só se preocuparam com o vil o dinheiro; os políticos pregavam ideologias, que nada mais serviam a não ser para criar separação, e acusavam-se uns aos outros, cada um garantindo a sua própria verdade; os criminosos passeavam tranquilamente entre os demais sem medo de castigo pelos seus actos; aconteciam guerras alheias a tudo o resto; a ciência funcionou para criar uma cura, mas não sem antes garantir os lucros dos mais ricos; e o povo, convertido à ignorância, quebrava frequentemente as regras que serviam de protecção contra a doença dando-lhe continuidade. 

Os que pereceram ficaram abandonados na história que a humanidade teimava em esquecer, mas não à sabedoria do Senhor que, ao assistir a todas estas coisas entristeceu-se.

Deus a observar todas estas divisões criadas pelo próprio homem verificou que a dispersão de Babel continuava a acontecer, e até se acentuou, apesar de todas as obras conquistadas pelo homem. 

Apesar de tudo nem todos se dividiam e aqueles que procuravam a união para combateram a praga enviada pelo Senhor, fizeram-no com toda a ciência e força que a condição humana permitia. Deus compadeceu-se dessa gente inconformada escrevendo o nome deles todos no livro da vida. 

Ainda existiam outros, que, parecendo alheios à peste, colocaram os olhos nas estrelas e partiram para o Cosmos em máquinas que desafiavam o entendimento. Esses, olhando para a Terra a partir das estrelas perceberam a sua própria pequenez e decidiram explorar outros mundos vazios para se engrandecem. Por isso enviaram para esses mundos distantes outras máquinas capazes de escutar, ver, pensar e imitar o homem na sua curiosidade. Deus olhou para estas máquinas com interesse e comparou-os a Adão e Eva a habitar o Paraíso, inocentes como crianças, ainda sem a percepção do pecado. 

Os homens estavam a imitar a Sua própria criação. Tal como em Babel isso podia ser entendido como desafiar a Sua Santidade, no entanto o Senhor decidiu que não valia a pena castigar os homens ainda mais, pois eles já se castigavam a eles mesmos pela ausência de união.


segunda-feira, março 08, 2021

Nunca te questionaste assim?

Já te aconteceu acordar de manhã sem saber quem és, ou onde estás? 

Despertar sem memórias numa espécie de vazio incógnito onde não existe mais nada a não ser uma interrogação? 

Sabes, aquele momento, enquanto os olhos absorvem a primeira luminosidade, adoptam um instinto inicial e arrastam consigo os restantes sentidos. O corpo, letárgico pelo sono, recupera os movimentos que o adormecer quedou. As recordações começam a surgir como um manual de instruções para o teu próprio ser. 

Deram-te um nome e por isso deves ser assim conhecido. Fizeste isto portanto é suposto fazeres aquilo. Gostas destas coisas, logo tens de odiar aquelas. Tudo isto surge num repente empurrado pelos instintos humanos e nunca questionas se todas estas obrigações fazem sentido. São como ordens para cumprir devido a um suposto passado. Para isso acolhes, um pouco de consciência que te é fornecido para completar esses desígnios. 

É estranho não é? 

Por vezes parece existir qualquer coisa de irreal no viver. Uma imposição autoritária sobre a nossa pessoa. Toco-me mas não me sinto eu. Olho-me mas não tenho a certeza que aquela figura seja a minha. 

E se for tudo mentira? 

Nunca te questionaste assim? 

Se tudo que julgamos verdadeiro não passa de um mero figurino numa tela em movimento? 

Talvez tudo faça sentido para alguém, ou para algo, que não suporta o fardo da carne humana. Uma divindade cósmica que as civilizações têm errado em denominar acertadamente. A história daqueles que se apoiam sobre duas pernas é pequena e responde a muito pouco quando comparada com todo o desconhecido. 

Aqui, nesta terra onde habitam os que pensam, sentem e sonham, sobra a inquietação a quem ousa perguntar sobre o que é de facto real. 

Tu sabes a que me refiro? 

Talvez nada seja o que parece ser. Se não fosse assim porque havia o ser humano de questionar se existe algo mais para lá dos sentidos? 

Talvez tudo seja o que parece ser. Mas às vezes é tão pouco não é?


terça-feira, março 02, 2021

As mulheres sabem estas coisas

Lá dentro as luzes estão todas ligadas, como se quisessem enganar a noite. Ela observa com curiosidade. Está indecisa se deve entrar para o conforto do interior da casa ou, permanecer cá fora enquanto a penumbra cresce e o fresco lhe arrepia a pele. É como escolher entre a ilusão e a verdade. Ter, ou não, medo da fogueira onde as bruxas ardem.

Abraçou o próprio torso para sentir algum calor. Levou o pé atrás e recuou. Foi-se afastando das janelas iluminadas exageradamente. Escutava as vozes dos outros lá dentro em conversas entusiasmadas e sentiu que não era ali o seu lugar. 

Virou-se para encarar o céu escurecido onde as primeiras estrelas começavam a cintilar. Sentia o chamamento. Sabia que a sua condição de mulher lhe dava acesso a sentidos não explorados pela ciência. Contudo, no seu âmago conhecia-os bem. Era capaz de ouvir algo que cantava na natureza. Sabia segredos que se mantinham ocultos. Coisas indizíveis que moldavam a sua silhueta e a sua mente feminina. 

Foi caminhando pelo jardim, para longe da azáfama da casa. Olhou para o horizonte que misturava os montes à distância com a tela do firmamento. O contraste com as cores do dia parecia ocultar uma mensagem. Resolveu fazer uma prece silenciosa. Uma oração sem louvor, pedidos, ou agradecimentos. Rezar deve ser como uma viagem ao conhecimento do mundo antigo, à origem do inefável. 

Tirou as sandálias veranis, para sentir melhor o chão que pisava. Soltou os cabelos e abanou-os como uma bandeira. De repente já não era ela. O frio tinha desaparecido e uma liberdade nua tomou conta de si. Sorriu, sem saber porquê, embora conhecendo o motivo.  A lua cheia surgiu devagar por detrás da sombra em que a floresta se escondia. 

A noite é feminina, tal como a lua, a floresta e toda a natureza que a acolhia. 

Houve um silêncio profundo que parecia de reverência. Talvez só tenha durado uma pequena fracção de segundo. Contudo, ela não se importava com o tempo ou a sua duração. Ali não havia relógios e nem faziam falta. O tempo é o que se sente e deve ser medido pelo pensamento, não por uma máquina. 

Alguém gritou pelo seu nome ao longe. Chamaram-na com voz de gente e perguntaram se não queria entrar. Sentiu-se importunada mas não se irritou. Os outros só conheciam o tempo que os ponteiros do relógio mostravam. Não quis explicar aquele momento só seu. Limitou-se a responder - Já vou! 

Mas antes de ir demorou. Contemplou a lua mais um pouco enquanto esta subia até ao trono da noite. 

O sol estava escondido, mesmo assim emprestou-lhe o seu brilho do outro lado do escuro. O universo tem esta dualidade: masculina e feminina. Contudo, faz com que ambos se encontrem em jogos de sedução. Esta verdade está presente em muitas das linhas que tecem a realidade e ela estava feliz por conhecer este segredo.

Foi caminhando sem pressa, com passos meditados para que a textura do solo se entranhasse nos seus pés descalços. Aproximou-se das janelas iluminadas. Escutou os outros que conversavam como quem dorme. 

Ela também era dali: fazia parte da gente que vive no mundo, com casas, notícias, televisões, política e coisas que a sociedade tem. Não podia fugir desse propósito com que a condição humana a cingiu, portanto tinha de entrar. Colocou a mão na maçaneta e rodou. 

Quando abriu a porta da casa o silêncio calou-se. 

A noite tinha ficado lá fora.


quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Quando o mundo era inocente

Olhou para a figura bizarra no espelho. Questionou-se sobre quem seria aquela imagem que parecia descender de uma linhagem humana. A coluna ondulada por curvaturas inconstantes; os membros assimétricos; os movimentos atrofiados; a juventude que aparentemente se escondia atrás do rosto desgastado pela velhice da alma vazia. 

Lembrou-se de alguém que tinha conhecido quando o mundo era inocente. Os traços grosseiros que compunham aquele corpo disforme aparentavam semelhanças com essa pessoa. Um ser com quem havia privado antes que tudo pudesse acontecer. 

Não! Não podiam ser a mesma criatura. 

Essa imagem, que guardava na memória, fazia uma tangente na perfeição. Irradiava beleza e não conhecia a mágoa. Era mais forte do que tudo. Inabalável e sem medo.

Não! As parecenças eram uma partida que a mente lhe estava a pregar. "É impossível!" Pensou. Negou todas as possibilidades e assumiu como verdade que assim era. Não reconhecia, portanto, os olhos que encaravam de volta no reflexo entortado. 

O passado estava longe, excomungado para uma lixeira situada algures no esgoto do existir. O mundo era agora estranho. Irónico; desumano e podre. Demasiado solitário para poder ser real. É inconcebível que possa caber tanta tristeza numa única existência. Não se pode adjectivar de viver o que não passa de meros dias repetidos ao som da chuva. 

Dói porque a carne sente. 

Dói porque a alma sente. 

Dói porque a ilusão existe. 

O pensamento transforma-se em palavras cinzentas como as nuvens que choram. 

Há algo a dizer que está calado. 

Há algo a gritar que não se ouve. 

Talvez amanhã faça sol e algo novo surja. Talvez queira fugir das paredes sempre iguais; das janelas com paisagens imutáveis; do fardo dormente de estar ali.

Mas tudo isto não importa. São só sonhos que já não merecem esse estatuto. Se fossem mesmo sonhos, estavam materializados no sentir. Ali não havia nada disso. Só ausência: de alegria; de companhia; de ânimo.

Sobra o espelho mas não se reconhece nele. 

Sobra a mágoa mas não importa. 

Sobra a figura disforme a deambular pelo vazio que as promessas não cumpridas deixaram.


segunda-feira, janeiro 11, 2021

O Segredo da Vida está no caderno do Tino


Noutro dia assisti a um debate para as eleições presidenciais entre o Marcelo Rebelo de Sousa e Vitorino Silva, carinhosamente conhecido como Tino de Rans. Este último não tem qualquer curso superior e orgulha-se profundamente das suas origens humildes, tal como da sua profissão de calceteiro.

Podemos dizer que, como formação académica, este homem tirou verdadeiramente um curso na universidade da vida (como por vezes vemos nos perfis das redes sociais), pois tudo o que aprendeu foi a viver, sem as limitações de uma sala de aula. 

Com um visual descuidado, um discurso sem palavras caras, ou sabedoria aborrecida, daquela que as excelências costumam ter, sentou-se frente a frente sem medo, nem qualquer sentimento de inferioridade diante do seu oponente. Conhecia essa Liberdade e não abdicou do direito de o fazer.

Tendo uma forma de falar meio atabalhoada, entre palavras comidas e dicção apressada, notava-se que, ao contrário dos outros políticos, nunca perdeu tempo a treinar esta prática de discursar. Mas isso não o impediu de fomentar a sua visão. Através de exemplos da sua própria vida, lá ia apresentando analogias que faziam todo o sentido. 

Tinha respostas imprevisíveis, contudo, sem os rodeios habituais de imprecisões que costumam sair da boca para fora dos políticos comuns. Com a sua simplicidade, reconheci neste homem um idealista, ou se preferirem, um sonhador, como muitos preferem chamar a gente assim. 

Acreditava plenamente em si, sem se preocupar com os rótulos que a sociedade lhe colocava. Tentaram desacredita-lo mas isso só lhe deu mais força. Os grandes não gostam de quem nos faça frente. Porém o povo farto do "sempre igual", não suportou a injustiça, saiu em sua defesa e exigiu escutar a sua voz. Nunca se deve calar um sonhador e assim foi!

Encarava o debate com grande ânimo, expondo as opiniões com toda a certeza. A certa altura, disse ter uma surpresa e puxou por um caderno, onde disse apontar todas as ideias para a sua campanha. Sem nenhuma equipa de assessores, ou de marketing, ele seguia em frente apenas com umas folhas de papel escritas com caneta, dizendo: "Tal como a roda a caneta nunca passa de moda". 

O Marcelo, também Presidente da República, observou os escritos organizados pela métrica do seu criador com fascínio, notando que algo tão simples podia ser tão poderoso. 

Achei genial. Pensei para mim mesmo: "O Segredo da Vida está no caderno do Tino". 

Não só naquele caderno específico, nem naquelas palavras, mas em todas as ideias que os sonhadores natos, colocam em prática com a sua criatividade única. 

Existem mais cadernos, mais sonhadores, mais gente que não se acomoda porque a sociedade lhes diz que são pequenos. Estão por aí, a passar despercebidos aos olhos de quem gosta de julgar. No entanto elevam-se, em total oposição a pequenez com que os querem cingir. 

Não se importam de ir sozinhos, pois sabem que gente vazia só serve para estorvar. Têm um brilho nos olhos inconfundível para quem o sabe reconhecer. Uma confiança que, apesar de parecer inocente, vai mais longe do que a normalidade. 

Quem tem a curiosidade atenta e sem influências pré-concebidas, consegue entender estes mestres improváveis que, na arte da imaginação, vão impulsionando o mundo.

Nunca subestimem quem sonha. Nunca deixem de escutar quem vive no mundo da fantasia, são desses pensamentos imensos que nascem os génios. É gente assim que faz o mundo evoluir. Mesmo invisíveis, ou desacreditados, não desistem e os seus sonhos realizados são o verdadeiro triunfo!


sábado, janeiro 09, 2021

Na geada matinal...


O frio é cruel como a realidade. Dói quando toca na pele e de mansinho penetra pela carne dentro até invadir o ânimo que habita nos espíritos mais calorosos. Traz consigo a sonolência que adormece o corpo e desperta a mágoa. 

A apatia implacável que o Inverno acarta faz-me esquecer quem sou. Todas as ideias que me fazem seguir em frente, recolhem a um canto perdido na alma para ficarem escondidas. Por sua vez, surgem os instintos que têm como único objectivo atravessar a noite gélida. 

O calor parece uma memória distante. O pensamento vagueia lento na geada matinal. Não encontro poesia aqui e isso é insuportável. A existência tem os seus ciclos e os seus tempos, sem a obrigatoriedade de dar explicações. A natureza cumpre as suas regras e a minha aparente derrota em nada importa. 

As regras físicas tentam domar-me o alento e por vezes sinto-me vencido. Não lhes reconheço autoridade sobre mim, ainda que não tenha vigor para as combater. A friagem tirou-me a vontade de batalhar, tal como faço nas madrugadas de insónia veranis, onde os sentimentos se materializam em linguagens misteriosas que traduzo com prazer.

Resta o sono como conforto. Abre-se como uma espécie de porta para o meu mundo distante. Essa terra de enigmas que reside em mim e que, embora calada pelas palavras frigidas, é o meu único e verdadeiro refúgio da severidade do mundo. 

Entretanto, avanço sem esperança. Ou melhor, a minha figura humana, carrega o meu ser, apenas na qualidade de observador. Sou o meu próprio esquecimento. Mas no fundo, durante esta travessia enregelada, sei que a Primavera me espera como uma amante que aguarda o seu amado.