domingo, outubro 31, 2021

Dia de chuva

Há dias em que chove

Lágrimas de quem não sabe chorar

Pranto que ninguém ouve

Amargura de quem não sabe amar

Caneta que não se move

Apatia de quem não sabe versar

Soneto que não se escreve

Poemas de quem não sabe rimar


Hoje é um dia em que está chorar

Lágrimas que ninguém sabe

Pranto calado para ninguém escutar

Amargura onde a cor não cabe

Caneta pousada sem vontade de criar

Apatia num vazio enorme

Soneto calado que fica por declamar

Poemas onde o amor dorme


quarta-feira, outubro 20, 2021

A cidade

“Eu tinha de voltar àquela cidade”. Devo começar assim um texto, ou um conto, ou qualquer coisa que se escreva para alguém ler depois (ou ninguém, ou apenas eu sozinho numa viagem ao passado).

Gosto que me dêem uma orientação para que as palavras saiam. Uma ordem imperativa para escrever as emoções, senão, ficam cá dentro acumuladas como lixo. Tenho de escrever como se fosse algum tipo de obrigação religiosa, ou melhor, um exorcismo de demónios que moram cá dentro à espera de que a porta da loucura se abra para o exterior.

Assim foi feito: “Eu tinha de voltar àquela cidade”. Mas afinal a que cidade devo eu voltar? Nem sequer gosto de cidades. Pessoas que andam pelas ruas claustrofóbicas, trânsito aglomerado como um bando de formigas cujo destino é ser apenas mais um número.

Talvez só conheça as cidades erradas e esteja a fazer juízos incorrectos. Ou, talvez, não compreenda quem vive para lá do meu mundinho grandiosamente pequeno. Não interessa, vou continuar a escrever.

Voltar a uma cidade que não conheço, fazer amizade com gente que nunca vi, passear tranquilamente nas avenidas sem que os passos dos outros me incomodem. Parece quase inconcebível.  

Dou por mim, assim, a escrever sobre essa cidade hipotética que só existe na minha fantasia. Sinceramente gostaria de voltar lá. A essa tal cidade, onde nunca estive (e a minha imaginação tem dificuldade em criar). Cheia de gente e apartamentos pequenos, sem quintais, ou ruas quase vazias. Assistir aos programas de entretenimento de domingo à noite e comentar, como se aquilo importasse para alguma coisa.

Mas eu não sou assim. Valem as palavras escritas. Servem de viagem a esse lugar que me pediram para voltar. O homem não é só feito de corpo. A imaginação também conta como um sítio real. Acho que todos os filhos da fantasia sabem disso.

Desta vez apresento uma cidade sem nome, onde mora quem não conheço, com histórias que nunca aconteceram, em que a inquietação se dispersa pelas vielas perdidas no meio dos prédios que não existem. Onde eu gostaria de ter voltado, sem nunca lá ter ido antes.

Pediram para escrever sobre uma cidade e eu escrevi. Mas a realidade é que só escrevi sobre mim e peço desculpa por isso (ou talvez não).


Texto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita

domingo, outubro 17, 2021

As mentes não foram feitas para ser lidas

Sentaram-se na mesa frente a frente. Apesar de ser um encontro informal, houve uma altura em que cruzaram olhares. Não se pode contabilizar o tempo que demorou. Talvez fosse um segundo, um minuto, ou até mais, ou ainda menos. Quem sabe? Neste tipo de situações, que mais parecem uma eternidade, é impossível dizer. Mas na realidade, pouco ou nada importa.

Ele olhava-a, como se saísse de si mesmo para dentro dela. Um arrepio percorreu-lhe o corpo como se a pele ganhasse vida própria; o coração disparou como num susto violento; os membros bloquearam como se a vontade já não pertencesse a ela. Era apenas um olhar, mas ela sentiu muito mais do que isso. Era como se o interior da sua pele, escrito com os segredos e desejos mais profundos, se transformasse em folhas de papel e ela fosse um livro que ele podia ler através dos seus olhos. Ele folheava cada página sem pressa, enquanto consumia cada palavra com uma atenção sobrenatural.

O canto da boca dele começou a curvar para cima dando início a um sorriso dominador. Nessa altura, ela, com toda a força de vontade que conseguiu acumular por detrás da sua mente nua, desviou o olhar. Ainda assim, continuava a senti-lo, dentro de si, a ler a sua mente sem pedir autorização. Sentiu muita vergonha, ficou corada, com medo, rendida, num misto impossível de emoções. Presa na eternidade daquele momento. Sem qualquer tipo de muralha que a escondesse daquele olhar penetrante.

– Sente-se bem? – Perguntou ele com a gentileza de quem sabia a sua fragilidade interna.

– Sim, sim, claro! – Respondeu atabalhoadamente.

– Por momentos julguei que estivesse nervosa. Não foi essa a ideia com que fiquei quando me falaram da sua reputação. – Entregou-lhe uma pasta com um relatório sobre um projecto qualquer. Ela soltou um risinho ridículo, como uma adolescente aparvalhada.

– Não! Quer dizer... Não sei quem foi que lhe disse isso, mas pode ter a certeza que sou extremamente profissional naquilo que faço. – Abriu a pasta escondendo o rosto no relatório.

– Eu sei. – Afirmou ele com uma serenidade convicta na voz. – Espero que o relatório seja suficientemente claro. – Rematou com uma ironia subtil, já que ela não se conseguia concentrar na leitura por causa dos nervos inquietos. Já nem se reconhecia. Nem sequer conseguia ler o título escrito em letras grandes e maiúsculas que pareciam que se misturavam de forma confusa e ilegível.

Ela engoliu em seco. Pouco mais sabia daquele homem do que o seu nome, a sua profissão e que tinham marcado aquela reunião para tratar de negócios. Mas ele sabia tudo sobre ela. Parecia impossível! O pensamento de uma pessoa não pode ser lido, mesmo assim ela sabia que ele conseguia fazer isso. Seria a sua cabeça a pregar-lhe partidas? Estava louca? Não! A expressão dele mantinha-se fixada nela. Continuava a ler os segredos dela sem qualquer tipo de pudor.

– Então, o que me diz sobre o relatório? – Perguntou diante do silêncio dela.

– Eu... – Não foi capaz de continuar a resposta. Finalmente conseguiu ler as verdadeiras palavras no documento. Destacava-se o título: “FICHA DE PERSONAGEM''. Seguia-se, o seu nome, idade, com todas as características possíveis e imagináveis sobre si própria. – Eu... Não sou real! – Concluiu.

– Eu sei. – Confirmou o autor.


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita

A festa

No dia em que eu desisti, o mundo fez uma festa em minha honra. 

Os povos de todas as culturas saíram à rua, com cantos, danças e foguetes. Pegaram-me em ombros para desfilar comigo nas avenidas enquanto toda a gente clamava o meu nome e me batia palmas com um entusiasmo eufórico. 

Os governos declararam feriado e na comunicação social não se falava noutra coisa. A alegria contagiou a Terra inteira por causa do meu nome superior. 

Então, levaram-me ao topo do edifício mais alto e todos gritaram em uníssono para que fizesse um discurso de vitória. Excitado pela euforia, abri os braços e saboreei aquele momento de glória absoluta. 

Durante vários momentos, longos, deixei que focassem em mim todo o seu êxtase. Depois, com as palmas das mãos viradas para baixo, gesticulei um sinal a multidão para que fizessem silêncio. Obedeceram quase de imediato, conseguiram acalmar a energia e calaram-se para me escutar, tal era a fome pelas minhas palavras sabias. 

Olhei-os com clemência e projectei a minha voz na direcção dos quatro cantos do planeta bradando: 

«Hoje desisti!» imediatamente fez-se ouvir uma monumental salva de palmas. Voltei a pedir silêncio e continuei: 

«Desisti com orgulho, parece que todo o peso do mundo saiu de cima das minhas costas e por isso sinto-me leve que quase parece que consigo voar!» As palmas soaram novamente junto com palavras de incentivo. Assim que voltou a calmaria continuei: 

«Contudo, não posso voar, nem o quero! Não quero ser mais do que aquilo que posso ser, por isso, hoje, sou novamente um de vocês! Um herói que não tem vergonha de desistir! Sem a obrigação de me superar a qualquer preço!» Veio mais uma ovação. 

«Por favor não me dêem mais vivas.» Disse, com a emoção estampada no rosto para que todos me vissem. 

«Esta leveza é o símbolo da Liberdade que todos merecemos. Sem qualquer tipo de autoridade que me diga que a responsabilidade deve ser assumida a todo o custo, mesmo que não a queira, ou que ma tentem impingir! Hoje, regresso à condição de ser humano, frágil, longe das grandes glórias com que me tentaram iludir.» Desta vez ouvi menos palmas e reparei que a multidão se começava a dispersar rapidamente. 

«Obrigado!» Agradeci aos poucos que restaram com uma ligeira vénia. Também esses não me ligaram muito. Estavam ali parados, inertes e distantes, como se não tivessem mais nada para fazer. Nem sequer lhes mereci um olhar minimamente atento.

A minha voz emotiva já não interessava a ninguém. Toda a festa grandiosa feita em meu nome, era agora uma memória descartável, como se nunca tivesse acontecido. Sobrou a leveza da minha decisão. Juntamente com a tranquilidade de ser Livre.