quinta-feira, junho 22, 2017

Infinita ironia


Ali estava ele cheio de expectativas para o futuro, momentos antes do espectáculo começar. Era jovem, cheio de ideias, de planos e projectos para concretizar, carregado de energia. Pronto para ser o herói daquela encenação magnífica. Nada podia destruir a sua vitalidade. O seu momento de glória estava próximo.
No entanto, Deus, na  sua infinita ironia estalou nos dedos esboçando um sorriso malandro. Então, com a Sua ordem, todo o palco ruiu  em segundos, transformando o cenário em escombros.
A sua inocência caiu por terra. Vieram as lágrimas, a dor, a mágoa, a tristeza e a desilusão. O espectáculo ficou adiado. Para  breve disseram os homens na sua ignorância (ou hipocrisia). Ele acreditou e aguardou. Afinal que mais podia fazer? Restava-lhe acreditar na mentira.
O tempo passou. O breve que lhe haviam prometido teimava em tardar mais e mais. E atrás dos tempos vieram mais tempos, longos e insípidos. A audiência cansou-se de esperar e rapidamente abandonaram a sala. Um após outro. Sem hesitarem, sem interesse e sem vontade de voltarem.
O guião da peça já há muito que tinha ficado esquecido. Ou melhor, destruído pela revolta, o ódio, a raiva e a fúria. De nada servia, já que o cenário foi erradicado para sempre devido a um capricho divino.
Ele, o outrora futuro herói, ficou sozinho. Até as emoções o abandonaram. Restou a esperança, como é seu dever, para lhe fazer companhia nas longas horas de vazio. Mas mesmo essa o abandonou. Afinal porque havia de o acompanhar, se já nem na mentira acreditava?
Então, sem esperança, tudo desapareceu. Até a solidão deixou de doer, também foi embora como tudo o resto. Ele ficou vazio, desprovido de ambição, desejo ou vontade. Para o resto das pessoas ele ficou esquecido para gáudio delas. Arrumado, ocultado, demasiado longe das suas memórias. Ele tornou-se nada.
Foi então que, no meio da nulidade em que tornara, se apercebeu que estava livre. Solto de sentimentos humanos que nada mais causam do que mágoa. Sem o peso da consciência a acusa-lo dos pecados humanos. Sem a ganância a pressiona-lo. Liberto dos grilhões que o prendem à existência mundana.
E também estava rico, pois o vazio podia ser preenchido a seu bel-prazer e por isso tornou-se o seu novo palco. Transformou-se, então, num artista, guerreiro, poeta, criador, a preencher a sua nova existência apenas com a sua vontade… De certa forma rival de Deus, que na Sua infinita ironia, foi derrotado! Ou, com tanto sofrimento, teceu o destino que sempre desejou àquele homem. Quem saberá dizer?

quinta-feira, junho 15, 2017

As palavras da alvorada


Brinca poeta, com as tuas palavras a versar
Inquietação que nasce ao anoitecer
Caneta que implora para escrever
Devaneios soltos até o amanhecer
Perde-te poeta, nesse teu sonho a rimar
Deste mundo está longe o teu viver
Para outros sentidos todo o querer
Além do pensamento o engrandecer
Viaja poeta, por essas paisagens a imaginar
Mágoa sombria que não deixa esquecer
Amante melancolia com corpo de mulher
Escritos nascidos do silêncio do teu dizer
Acredita poeta, que um dia a tristeza vai acabar
Ao longe onde o destino está acontecer
Olha para lá com ânsia de o conhecer
Sem medo do trilho incerto a percorrer
Caminha poeta, essa estrada tem muito a mostrar
Letras que pintam de cor o alvorecer
Enigmas decifrados nesse transcender
Entrega-te à fantasia com todo o teu ser
Rima poeta, conta a todos o segredo de amar

terça-feira, junho 06, 2017

A metáfora do abismo


Por vezes, quando me aproximo perigosamente da berma do abismo, entre as minhas vertigens, gosto de encarar as suas profundezas infinitas!
Nesses momentos, juro que consigo ouvir o sussurro da sua voz gutural e sedutora a chamar o meu nome. Desdenho do perigo e deixo esse chamamento traduzir-se em tonturas que me tomam o corpo, assim como uma sudorese anestesiante, que me unta a pele.
Sonho em saltar. Mas sei bem que se o fizer, nunca iria tocar violentamente o fundo numa queda impiedosa. Em vez disso, abriria umas asas, tão negras que toda a luz que as ousasse desafiar seria ofuscada pela sua escuridão.
Voava entre as escarpas com a mestria de um anjo (ou de um demónio). Cruzava sem incertezas as paisagens frias dos escombros da vida, para depois voltar novamente a esta berma onde me encontro agora, sem qualquer tipo de medo que me tolde a coragem.
Entretanto, amaldiçoo esta metáfora do abismo… Quem, de entre os poetas deste mundo que cantam a melancolia, nunca a usou?
Todos!
Todos quiseram saltar!
Todos quiseram voar!
Todos assim o rimaram!
Todos se repetiram!
Tal como eu!
Assim declaro que maldito seja o abismo e o desejo de o sentir…

sexta-feira, junho 02, 2017

O sabor


Foi acordado por uma fada que dançava alegremente no seu rosto. Deixou-se ficar com os olhos fechados. Não tanto por preguiça, mas para que ela continuasse a sua dança e fizesse da sua face um palco para a magia, enquanto o julgava adormecido.
Passeava em rodopios e em saltos pelas suas feições, animada pelo chilrear de um pássaro pela manhã e o sol primaveril que irradiava da janela. Ele estava agradecido por aquela minúscula criatura, filha da fantasia, o tivesse escolhido para o pouso do seu bailado.
Tinha tempo de despertar. Momentos em que o mistério desce ao mundo dos homens são raros. Por isso, manteve-se imóvel, como espectador da sua própria alegria.
A certo momento decidiu levantar as pálpebras para que observasse a pequena fada. No entanto, ela, com enorme rapidez, transformou-se numa mosca! Não podia cometer a indecência de ser vista por um olhar humano, na sua verdadeira forma elemental.
A sua dança parou. Em vez disso, na sua forma varejeira, percorria-lhe a face com pequenas espetadelas provocadas pelas suas patas agrestes. Chupava a gordura pegajosa que lhe cobria a pele. Restos da transpiração nocturna provocada pelos pesadelos que lhe assombravam o sono.
Aquele suor sabe a sal. Ele conhece bem o sabor. Prova-o a cada grito de tormento que o faz saltar da cama em absoluto terror. A fada, agora na sua forma grotesca, parecia deliciar-se com aquela viscosidade, como se também ela quisesse provar o seu medo!
Sacudiu-a como a qualquer outra mosca. Ainda a tentou matar, mas a dita, com eximia mestria de voo, escapou-se por entre os dedos. Olhou em volta e nada mais restava a não ser a manhã. Sem fadas, sem danças na pele, sem magia. Apenas o gosto vazio da rotina…