quarta-feira, fevereiro 12, 2025

São Valentim no Admirável Mundo Novo

Nunca tinha visto tal coisa na vida! Os meus olhos estavam completamente fixos na cena! Sabem aquelas pessoas estarrecidas quando vêm alguém numa cadeira de rodas? Era essa a minha cara a olhar para aquilo!

Um estalar de dedos diante do meu rosto chamou-me de volta à realidade.

– Hey! Estou aqui! – Resmungou a minha namorada.

– Desculpa, mas estás a ver aquilo!? – Apontei com subtileza para a mesa ao lado, onde um homem de cabelo branco apreciava um belo jantar romântico com um robô feminino.

– E depois!? Não te chega a visão mesmo à tua frente? – Empinou o peito. Um decote bem generoso fazia sobressair o seu par de mamas irrepreensível. As quais fez questão de realçar com as mãos abertas de lado.

– Calma. Não precisas insinuar-te tanto! – Exclamei envergonhado. – Mas não achas bizarro o homem ter trazido um robô para um jantar romântico?

– Se ele gosta de chapa e hidráulicos, é problema dele. Não sejas preconceituoso, já não estamos em 2025, está no direito de o fazer. – Bufou-me amuada. – Já eu, sou de carne e osso. Se gostas disto, espero bem que a tua atenção se vire para mim!

– Certo. Certo. Tens razão. – Resignei-me.

Tinha gasto uma pequena fortuna ao reservar a noite de São Valentim naquele restaurante chique. Não era para qualquer um. Pagava-se bem caro, acreditem. Queria dar um jantar de sonho à minha namorada. A sério, a ideia era essa. Não tenho culpa se a curiosidade levou a melhor.

O homem com a acompanhante robótica estragou-me os planos. Nem imaginam como era difícil ignorar algo tão fora do comum. Tinha de admirar a capacidade dos engenheiros ao concederem a máquina. Apesar de manter o aspecto mecânico, o design era incrível, com as curvas do corpo a manterem linhas femininas. Para não falar na linguagem corporal, a imitar os gestos de uma dama digna da alta sociedade. 

Só não compreendi porque não preferia uma mulher verdadeira!? Não me julguem. Vocês questionavam o mesmo, isso eu sei!

Fomos servidos com todo o luxo. Nada a reclamar nesse sentido. O jantar continuou, embora o romantismo nem tanto. De vez em quando lá me escapava o olhar, para ser imediatamente repreendido pelo pigarrear chateado da minha companheira.

Paguei e fomos embora. Não sem antes de dar mais um longo reparo no casal improvável ao meu lado. Obviamente, quando cheguei a casa tive de me esforçar mesmo bastante para recuperar o romantismo desejado. Foi difícil, mas lá consegui.

Uns dias depois, no trabalho, todos os funcionários estavam empolgados pois íamos receber a visita do chefe internacional da firma. Colocamo-nos em fila para cumprimentar a comitiva estrangeira. Queríamos fazer excelente figura para mostrar a nossa eficiência e organização. Afinal quem nunca quis impressionar os maiorais?

Um grupo de pessoas, com visual executivo, entrou na sala. O diretor da minha sucursal mostrava-se orgulhoso das instalações e dos funcionários. Indicou o caminho a um homem cuja aparência acusava ser o patrão. Qual não é o meu espanto quando o reconheço do restaurante!? A seu lado estava o robô feminino.

Falavam alemão. Mas eu tinha a certeza de os ter ouvido falar português no restaurante. Logo alemão! Uma língua da qual não percebia patavina. Riam-se numa conversa animada. Ou pelo menos parecia.

Ao conhecerem os meus colegas, o homem falava alemão e o robô servia de intérprete. Cumprimentava e seguia para o próximo. Bolas! Sabia falar português e a mim não me enganava. Não precisava de tradução nenhuma. Aquela encenação era só para intimidar.

Chegaram ao pé de mim. O meu diretor apresentou-me como chefe de projetos. Suponho eu, pois o meu cargo era esse. Das palavras arranhadas só compreendi o meu nome.

– Já conheço o senhor. – Traduziu o robô com o seu rosto a imitar as feições humanas. – Estávamos no mesmo restaurante, na outra noite.

Havia um grande ecrã na parede do salão, usado para fazer apresentações. Pela graça da tecnologia moderna o robô usou-o para mostrar uma imagem daquele jantar no restaurante:

A minha namorada a gesticular junto às mamas, enquanto eu fazia um ângulo de noventa graus com a cabeça na direção da mesa do suposto chefe ‘alemão’. 

Depois fez zoom na minha cara. O filme do momento era composto de milhares de frames, contudo escolheu propositadamente aquele onde parecia mais parvo. Olhos esbugalhados, boca aberta e aparência de matarruano. Uma careta digna dum episódio do ‘Mr. Bean’.

Os meus colegas tentavam conter o riso. Dividiam a atenção entre mim e o ecrã. Alguns sussurravam entre si. Ia sofrer uma avalanche de piadas. Já podia imaginar o suplicio.

Engoli um sorriso forçado. Cumprimentei o homem e de seguida o robô como se fosse gente. – Muito prazer. Sinto-me honrado. – Disse, a tentar disfarçar o embaraço.

– O prazer é todo nosso. – Respondeu o robô. 

Ao saírem, deu-me um aceno de despedida e piscou o olho. A sério, piscou mesmo o olho! 

Amaldiçoei os engenheiros capazes de criar aquela máquina maquiavélica, com cara, olhos e boca como gente. Já não bastava ser a companhia romântica do patrão, ainda era um supercomputador com pernas e braços. Pior ainda, capaz de compreender e usar a ironia contra mim.

Fui gozado pelo algoritmo de um ser artificial. De igual modo pelo seu proprietário, o qual, também era meu chefe. De certa forma meu proprietário igualmente, pois pagava-me um bom ordenado. Por isso era capaz de comprar jantares em restaurantes de luxo. Tudo não passava de um círculo vicioso.

Enfim. A vida continuava. Restou-me suportar as piadas dos colegas e aceitar as coisas como são. É um ‘Admirável Mundo Novo’, concluí.


Nota: a ação ocorre em 2035, num futuro muito próximo.



Informação: Este conto é propriedade intelectual de António Silva, no caso do seu conteúdo ser publicado noutros lugares sem os devidos créditos ou autorização, serão tomadas medidas segundo o Código do Direito de Autor.

2 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Aplaudo e elogio o talento e a inspiração. Belo texto.
.
“” Votos de muita Saúde e Paz ““
.

Jaime Portela disse...

Excelente história e muito bem contada.
Também gostei dos poemas que li mais abaixo. Talento não lhe falta.
Por incrível que pareça, não conhecia o seu blog. Voltarei, por isso, de vez em quando.
Boa semana Caro António.
Um abraço.