Noutro dia, enquanto vasculhava uns ficheiros antigos, encontrei os primeiros capítulos de uma história que comecei a escrever há uns 25 anos, mais ou menos (sei que naquela altura ainda não se usavam telemóveis. As pessoas comuns pelo menos).
Infelizmente, por preguiça, talvez, não lhe dei continuidade. Contudo gostei de recordar estas primeiras ideias concretas, passadas para o papel. Decidi partilhar o primeiro capítulo aqui, visto também ainda não existirem blogs.
Não alterei o texto e deixei tal como escrevi. Pessoalmente acho estranhamento bom para a idade e principalmente falta de experiência.
Quem quiser passar algum tempo a ler, pode dar a sua opinião. Aqui fica:
Vejo agora o caixão a descer à terra. Bem para o fundo, onde ficará esquecido. Lá dentro o corpo morto do meu pai. Mas ao contrário do seu corpo, as suas lembranças que eu julgava há muito esquecidas e enterradas, vêm agora ao de cima, criando em mim um sentimento desagradável. Não sei se são remorsos ou se são pena. Pena de não ter sido de outra maneira. A minha mãe morreu quando eu ainda era pequeno. O meu pai sempre me tentou proteger. Tentou fazer os dois papeis de mãe e de pai. Por isso era duro para mim. Por isso também eu vivia em conflito com ele. Mas agora é tarde. Tarde para remediar o que está feito. Enquanto o caixão desce à terra as lembranças continuam a vir ao de cima atormentando-me. Mas porque é que eu me estou a sentir assim? Desde cedo lhe declarei guerra. Aquela guerra que os adolescentes declaram aos pais. Ele nunca me tentou compreender. Nunca me deu a liberdade que eu queria. Por isso quando cheguei à idade adulta sai de casa, ignorando totalmente os conselhos dele. Deixando-o numa grande solidão. A culpa foi dele. Ele nunca tentou compreender-me. Mas agora me apercebo que eu também não o tentei compreender a ele. Mas agora já é tarde. O caixão já está no fundo e começa agora a ser coberto por terra. Já é tarde para ter uma conversa com ele. Por um momento quase me deu vontade de chorar, como as minhas tias. Por que é que elas choram assim? Afinal também o deixaram sozinho. Também devem estar com remorsos. Mas eu não vou chorar. Afinal ele era meu inimigo. Desde cedo lhe declarei guerra, e ninguém chora a morte de um inimigo. Por isso mantenho a minha postura rígida e inabalável. Estão agora a tapar a cova. Quero sair dali mas ainda tenho de aturar os abraços das minhas tias. Grandes chatas. Choram tanto. Porquê?
- Estás bem?
- Sim estou. - A pergunta da Joana quebrou os meus pensamentos de raiva. Tinha de sair dali rápido.
- Vamos embora daqui.
- Já? Tens a certeza?
- Sim. Ainda quero passar por casa do meu pai e chegar à cidade cedo. – A Joana era minha namorada. Nunca lhe tinha falado muito acerca do meu pai, embora estivéssemos praticamente noivos e eu partilhasse todos os meus segredos com ela, esse era um aspecto da minha vida que ignorava. Provavelmente já se tinha apercebido que o meu relacionamento com ele não era dos melhores, mas não imaginava que isto pudesse acontecer e me fosse deixar tão abalado. Procurava não mostrar qualquer tipo de sentimento mas ela sabia que naquele momento, eu estava a lutar com os meus fantasmas. Com certeza queria falar comigo fazer com que desabafasse com ela, queria evitar isso a todo custo. – Vamos.
Entramos no meu carro, ainda tinha de passar pela casa do meu pai, a casa da minha infância que agora era minha. Ele vivia numa vila calma, afastada da cidade. Grande parte da minha família vivia ali. Eu tinha nascido, tinha crescido ali, mas contam-se pelos dedos as vezes que lá voltei depois que vim para a cidade estudar. Acabei o curso, arranjei um emprego e sem saber como passaram-se seis anos. Seis anos que devem ter sido de terrível solidão para o meu pai. Lá estão eles outra vez, os sentimentos de culpa. Agora já é tarde, mas não os consigo afastar. Vou calado enquanto conduzo pelas ruas da vila. A Joana também vai calada, ainda bem. E eis que lá está ela, a casa do meu pai. Mais um fantasma que tinha de enfrentar. Era uma vivenda grande de dois andares, qualquer habitante da cidade a acharia fantástica para passar as férias e o fim de semana, mas a mim só me trazia más recordações.
- É aqui? – Pergunta a Joana com ar admirado. Aquele ar de pessoa nascida na cidade.
- Sim. – Respondo com ar de quem não quer muitas perguntas.
É espantoso como nada tinha mudado desde que eu sai dali. Era uma casa tão grande. Não sei o que irei fazer com ela. Vende-la? Deve ser a melhor solução. Mas também não a queria vender a qualquer um, talvez alguém de família a queira comprar. A Joana continua admirada. Provavelmente acha estranho eu não lhe ter dito que o sitio onde cresci era assim. Logo a ela que achava a vida na cidade tão acelerada. Pela cara dela, até aposto que era capaz de se mudar para aqui. É melhor ver-me livre da casa enquanto é tempo, senão depois de ficarmos noivos ainda me convence a ficar com ela, para passarmos os fins de semana e coisas do género.
- Que casa fantástica!
- Sim. É uma boa casa. – É obvio que ela está ansiosa por entrar. Por explorar todos os recantos. De certeza que vai fazer tudo ao seu alcance para me impedir de a vender.
Ao abrir a porta senti logo aquele seu cheiro característico, que me trás de volta sentimentos amargos. Continuava tudo inquietamente na mesma.
- Bem. Não me vens mostrar o sitio onde cresceste.
- Porque não vais tu sozinha. Eu sei que gostas de explorar. Eu quero ficar só por uns momentos. Depois vou ter contigo.
- De certeza que posso?
Fiz-lhe um sinal afirmativo com a cabeça e logo ela subiu as escadas para explorar o 1º andar. Estava agora sozinho na sala de estar. Estava tudo na mesma. Exactamente como me lembrava desde a mais tenra infância. Os sofás, as paredes, as pinturas, a mesa, a lareira e por cima a espada que a adornava. Incrível. A espada do meu pai. Desde sempre que ali esteve, por cima da lareira. Guardada como se fosse um objecto sagrado. Gostava de saber a sua história, acho que nunca a vou saber. Sempre achei aquela espada fantástica, sempre me senti atraído por ela. Mas por alguma razão que desconheço o meu pai nunca me deixou tocar-lhe. Lembro-me que várias vezes em criança a ia buscar, ou para brincar, ou para mostrar aos meus amigos, ou simplesmente para apreciar a sua beleza. Sempre que o meu pai descobria que tinha pegado nela era uma bronca dos diabos. Cheguei a apanhar várias tareias por causa disso. Ele nem gostava que eu olhasse para a ela. Não sei qual era a sua obsessão pela espada mesmo que valesse uma fortuna, não havia razão para agir daquela maneira. Mas agora ele não estava ali. Estava morto. Já não me podia dizer nada. Por isso vou pegar-lhe. Sem hesitar peguei-lhe, já não me parecia tão pesada como em criança. Agora já era adulto e tinha força suficiente para a manejar. Lentamente comecei a tirá-la para fora da bainha, era realmente bela. Mais bela e fascinante do que me lembrava. Já devia de ser bastante antiga, dois ou três séculos talvez? Mas continua bela e afiada, devia valer uma pequena fortuna. Gostava de saber a sua história. Quem sabe pertenceu a um cavaleiro? Quem sabe quantas pessoas já matou? Em quantas guerras já participou? Quem sabe se pertenceu a um rei? Quem sabe? São só fantasias. Já pareço outra vez criança, a olhar para aquela fantástica espada por cima da lareira e a imaginar. Possivelmente nem era tão antiga quanto eu pensava. Mas não deixava de estar fascinado, ali, com aquela fantástica espada na minha mão. Engraçado, desde que lhe peguei, todos os sentimentos de culpa que me atormentavam desapareceram. De repente fui invadido por uma felicidade quase insana. Não sei de onde é que ela veio. Mas sentia-me bem. Sentia-me agora poderoso, invencível, com aquela espada na mão. Sentia-me capaz de dominar o mundo. Foi então, que, num acto, quase sem pensar, ergui a espada no ar com as duas mãos. Nesse momento todos os meus sentimentos de raiva, ódio e culpa vieram juntar-se ao sentimento de euforia que estava a sentir. Nesse momento, enlouqueci! Então com toda a minha força, dei um golpe na mesa. Esta ficou dividida em dois. A lâmina da espada atravessou a madeira como manteiga no Verão. E eu, sentia-me bem, tão bem!
- Jorge?! Que se passa? Que barulho foi esse? – O meu momento de felicidade foi interrompido bruscamente. A Joana, atraída pelo som da mesa a partir desceu as escadas completamente apavorada. – Meu deus! Que fizeste? – Eu fiquei parado, a olhar para a cara assustada dela. Quase me deu vontade de rir, tentando adivinhar os seus pensamentos. Ao ver-me ali, com uma espada na mão, depois de ter cortado uma mesa a meio com um só golpe. Sempre me conheceu como sendo uma pessoa calma. E agora ao ver-me ali naquela figura. Possivelmente pensa que a vou atacar a seguir.
- Tem calma. Não se passa nada.
- Tenho calma! Tenho calma, dizes tu?! Para é que fizeste isso? E essa espada? Onde é que arranjaste essa espada? – Coitada. Estava completamente apavorada. Mas não sei o que a assustava mais? Se a minha acção? Se a minha aparente descontracção?
- Sim, tem calma. Estou só a despejar a minha raiva.
- A despejar a tua raiva?! Partiste a mesa a meio! A espada. Dá-me a espada, antes que faças mais alguma tolice. – A cara dela estava fantástica. Quase que não conseguia conter o riso, ao vê-la assim, tão assustada.
- Acalma-te. – Voltei a embainhar a espada e dirigi-me a ela. Abracei-a e dei-lhe um beijo na testa. Todo o seu corpo tremia. Coitada. Não consegui deixar de esboçar um sorriso. - Acalma-te. Agi sem pensar. Desculpa. Não queria assustar-te. – Depois das minhas palavras e da minha manifestação de afecto, ela acalmou-se um pouco.
- Pregaste-me um susto tão grande. Olha, eu sei que isto tudo está a ser difícil para ti. Eu compreendo-te. Podes falar comigo se quiseres. Vai fazer-te bem. Porque fizeste isso? – Sim, estava agora mais calma. Abraçou-se também a mim.
- Olha. Esta era a espada do meu pai. – Dei-lhe a espada, para ela ver. Um pouco a medo pegou-lhe e lentamente começou a desembainha-la. - Não tenhas medo, toca-lhe. Vê como é bela. Quando era pequeno, o meu pai não me deixava tocar-lhe. Agora, quando a vi… Vieram-me ao de cima algumas recordações. Agi sem pensar. Foi uma idiotice. Desculpas me?
- Desculpo. Claro que desculpo. Mas que foi uma idiotice, foi. – Aquela cara de susto já lhe tinha passado. Olhava agora, também fascinada, a espada. – Esta espada era do teu pai? É muito bonita. E também deve ser bastante antiga.
- Sim. Deve ser. Mas o meu pai nunca me contou nada acerca dela. A única coisa que sei, é que ele não me deixava tocar-lhe.
- É compreensível. Esta espada é fantástica. Deve valer bastante dinheiro. E além disso, é perigoso para uma criança tocar numa coisa destas. Vê só como é afiada.
De facto. Depois de um golpe daqueles, a lâmina continuava extremamente afiada, como uma espada nova. Aliás toda ela brilhava, como se tivesse acabado de ser construída. Era realmente muito bela. Era uma espada digna de um rei. Digna mesmo de um deus. De um deus da guerra.
- Vamo-nos embora. Voltas cá noutro dia. Esta casa traz-te recordações amargas. E hoje não me parece que estejas preparado para lidar com elas.
- Sim, vamos. - A Joana tinha razão. Era melhor ir-me embora. Mas a espada vai comigo.
- Que fazes? Não me digas que levas a espada contigo? Não achas melhor deixá-la ai.
- Não. Vou levá-la comigo. Agora é minha. – A Joana achou aquilo estranho, mas não me disse mais nada.
A viagem até à cidade correu normalmente. Passamos quase todo o tempo calados, fingindo esquecer o sucedido. Mas eu notava na Joana ainda uma certa inquietação. Já eram umas 11 horas da noite quando chegamos a casa dela.
- Ficas bem? – Pergunta-me. – Não queres que fique contigo?
- Não te preocupes. Eu fico bem. Vai tu para casa. Os teus pais já devem estar preocupados.
- Está certo. Mas se precisares de alguma coisa, se precisares de falar, não hesites. Telefona-me. E outra coisa, tem cuidado com a espada. Não mates ninguém pelo caminho. – Disse ela. Tentando mostrar que o incidente em casa do meu pai não a tinha afectado. Mas a espada veio todo o caminho no banco de trás do carro, a lembrar-lhe o sucedido . Por certo vai ter dificuldades em dormir hoje à noite.
Prossigo a viagem em direcção a minha casa. Não consigo deixar de pensar no dia de hoje. Como começou. Com todos aqueles sentimentos amargos a atormentar-me. Como me senti quando segurei a espada, completamente louco. E como me sinto agora. Como se nada de especial tivesse acontecido. Ainda bem. Se continuasse a sentir remorsos, acho não iria conseguir dormir à noite. Mas não consigo de deixar de achar estranho. Mudar de sentimentos assim tão rápido. Nem parece meu.
Passo agora por uma rua morta. Ainda não é muito tarde, mas já não se vê ninguém. Nunca tinha reparado como a cidade parece tão calma à noite. Está tudo tão sossegado! Mas no meio da calmaria, algo me chama a atenção. Três indevidos com cara de poucos amigos, rodeiam uma rapariga que parece estar muito assustada. O local não estava muito iluminado, o que o tornava perfeito para um assalto. - Vejam só a minha sorte. No meio da calmaria, fui deparar com um assalto. – As luzes do meu carro assustaram os bandidos. Certamente pensavam estar sozinhos. Porém este facto não os fez desistir. Continuaram a cercar a rapariga, certamente convencidos que eu ia seguir o meu caminho, fingindo não ter visto nada. O que é que eu vou fazer? A rapariga olhava para mim com esperança que a ajudasse. Os bandidos continuavam empenhados. O que é que eu vou fazer? Se eu sair do carro para a ajudar, eles podem estar armados. Além disso são três. O que podia eu fazer contra eles. O melhor é seguir o meu caminho e esquecer. Não. Não posso fazer isso. Não me posso acobardar dessa maneira. Parei o carro e apaguei as luzes. Os bandidos olhavam agora para mim, mas continuavam no mesmo sitio. Peguei na espada, segurando-a atrás das costas, e sai do carro. Não havia luz suficiente na rua para me poderem ver em condições. Com a espada sinto-me protegido.
- Hei? O que é que se passa aqui? Estes homens estão a importuna-la, senhora? – Perguntei. Foi o acto mais corajoso que tinha feito, até hoje.
- Por favor. Ajude-me. – Pediu-me a rapariga, apavorada.
- Hê pá. Vai-te embora se não queres morrer hoje. – Disse um dos bandidos puxando por uma navalha, dando uma risada. – Mata-o. – Diz outro.
- Por favor. Ajude-me. – Voltou a pedir a rapariga.
Nesse momento, o bandido que empunhava a navalha, saltou sobre mim. Então novamente num acto sem pensar, desembainhei a espada. E sem o mínimo de piedade desfrutei um golpe no homem. Um golpe tão violento, que lhe abriu o peito e lhe cortou a mão, tudo de uma só vez. O que fez jorrar sangue, como se fosse uma fonte. Um dos companheiros veio em seu socorro, não se mostrando impressionado. Com a ponta da lâmina fiz-lhe um golpe nos olhos.
- Os meus olhos! Os meus olhos! Estou cego! Não vejo nada! – Gritou em agonia. Levando as mãos às vistas todas ensanguentadas, caindo de joelhos.
- Estás cego? Compra um cão. – Respondi-lhe. E num acto completamente sádico, sem mostrar um único sentimento. Enterrei-lhe a espada na cabeça. Jorrando novamente um rio de sangue.
O terceiro tentou fugir. Mas tropeçou e caiu no chão, de barriga para baixo. Espetei-lhe várias vezes a espada nas costas. Foi o que teve a morte mais clemente. Ao acabar de executar os bandidos, olhei para a rapariga. Estava perplexa com o acontecido. Sorri-lhe e perguntei. – Está bem? – Ela olhou para mim, ainda tentou dizer qualquer coisa. Mas fugiu, assustada. Vejam só! Fugiu! Acabei de a salvar. E é assim que me agradece. Então reparei nos corpos mortos e mutilados dos bandidos. E no sangue que escorria da lâmina da espada. E na enorme poça, na calçada. Parecia um rio. Fantástico. Nunca tinha visto tanto sangue na minha vida. Só então ai me apercebi verdadeiramente do que tinha feito. Tinha acabado de matar três homens, de uma maneira tão violenta, que ainda me custa a acreditar que o tivesse feito. Não admira que a rapariga fugisse. Depois de ver tanta carnificina. Meu Deus! O que é que eu vou fazer? Vou ser preso e acabar os meus dias na prisão. Não. Não. Não pode ser. Ao ver aquele cenário de morte e pior, ao saber que fui eu que o provoquei, começou-me a dar vómitos. Tinha de sair dali. Meti-me no carro e arranquei. Só pensava em chegar a casa, limpar completamente o sangue da espada e tentar esquecer. Se isso fosse possível.