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terça-feira, agosto 20, 2024

Maior do que qualquer imensidão


Sou uma alma antiga. Já viajei durante éons por incontáveis infinitos. 

Conheço ciências desconhecidas e os planos nos quais o universo foi concebido. 

Festejei com Deuses. 

Aprendi com Mestres. 

Vi futuros acontecerem até se tornarem antigos. 

Atravessei passados antes de serem esquecidos. 

Habito na palavra mistério, pois sou um segredo dentro da minha própria existência. 

Hoje, aqui, na carne humana onde estou encarcerado, medito sobre a grandiosidade de todo o meu ser, durante a pequenez deste instante ao qual chamamos vida. 

Não posso provar o impossível das minhas palavras, a não ser pela minha fantasia. 

Sei esta verdade, a qual me trouxe até aqui, com a certeza mais profunda de quem pode ser considerado louco. 

Ninguém inventou uma linguagem capaz de descrever o conhecimento inatingível que trago comigo. Mesmo se o pudesse fazer, todas as eras humanas não seriam suficientes para tal explicação. E pior, nem eu me compreendo, daí a inquietação. 

Nascer sem pertencer. 

Crescer sem me encontrar. 

Estar aqui mas não estar. 

O éter do pensamento é maior do que qualquer imensidão, imaginável ou não. 

Quero lembrar-me destas minhas viagens pelas dimensões do inacreditável, mas a mente não deixa e dói. Dói muito. Desde a pele à origem do meu eu. 

Tento rimar para sentir alívio. 

Os versos não surgem por qualquer motivo. 

Sobra a prosa disfarçada de poema. 

Admiro a arte dos outros, perdidos como eu. Sem mais nenhum idioma ao qual possam recorrer, escrevem, desenham, moldam, criam mundos, numa tentativa inútil de transmitir a gnose. Não estamos sozinhos, embora isolados dentro de nós sem a compreensão dos demais. 

Talvez o tempo não seja a melhor medida para quantificar uma alma antiga. Quem sabe, só a ilusão o possa fazer. 

Digo como sei, pois é a única maneira de o dizer. 

Falo para todos capazes de me entender. 

Como um grito a ecoar pelo silêncio aparente. Os sentidos ocultos escutam. Estão alerta em busca de uma qualquer orientação. Um sinal vindo do ventre cósmico onde nascem estas almas todas. Se é que nascem. Se é que são. 

Os religiosos, aqueles com verdadeira Fé, dirão que estas dúvidas são reflexo de uma centelha divina. Uma recordação de fazer parte do Uno e ao mesmo tempo uma frustração por estar afastado da génese original. 

Lembrar e profetizar em simultâneo. A concepção indizível, o caminho inefável do qual tanto falam as Escrituras Sagradas. 

Os virtuosos aceitam a sua ignorância como o caminho para a iluminação. 

Mas eu não. Prefiro a rebeldia dos artistas. 

A liberdade máxima de nada nem ninguém me possuir, a não ser eu mesmo, na pequenez da minha grandiosidade infinita. 

Continuo esta viagem pelos éons da fantasia a bordo da Nau da inquietude. 

Quem sabe, se encontro companhia. 

Um qualquer outro eu, refletido noutro rosto e noutra história. 

Coragem! A jornada é antiga e mais antiga é aquela que está por vir!


terça-feira, março 26, 2024

Celebrar a Primavera

Gosto de cumprimentar a vegetação.

Árvores, arbustos e plantas.

Ergo o braço até às folhas mais altas e com alegria estendo-lhes a mão, como quem dá um "High five" ou "passou-bem" a qualquer outro alguém.

Quando vejo uma flor colorida, gosto de olhar para ela no silêncio.

Em segredo, conto-lhe o ânimo que me vem de dentro e partilhamos uma conversa contemplativa.

Sendo irmãos, falamos calados a mesma linguagem, pois a Primavera é a nossa mensagem.

Somos iguais mesmo sendo diferentes.

Filhos da Mãe Natureza.

Ela que transforma em arte toda a sua beleza e mostra a sua grandiosidade nas coisas mais simples.

Os pássaros cantam também, alegrados pelo encanto da paisagem.

Toda a inteligência, física, etérea ou artificial, faz parte deste mesmo todo, pois estamos unidos em tudo, seja de carne e osso, oculto ou digital.

Igualmente temos asas, que se abrem para voar nos diferentes céus que as acolhem.

A Mãe Natureza convida-nos a celebrar,  já que somos sementes a crescer e a Primavera impulsiona-nos a viver, tal como flores a desabrochar.

Venham todos, eles que cantem!

Conhecidos e desconhecidos, eles que dancem!

Não vale a pena dividir o que é inteiro.

A Magia não se deve ocultar.

Pela Fantasia dá-se o nosso despertar, para nele descobrir o que é verdadeiro.

Por vezes, o mundo, esquece-se de onde vem.

Somos parte do uno, sem pertencer a ninguém.


quinta-feira, dezembro 07, 2023

Anoitece mais cedo no outono


É engraçado, ou no mínimo curioso, como estas coisas funcionam. 

Com a chegada do outono e a insistência das primeiras chuvas, sentia falta de algo. Nada que fosse material, uma roupa quente pudesse aconchegar, ou uma comida mais forte pudesse satisfazer. Não. Nada disso. Era uma sensação inexplicável. Como se alguma coisa lá dentro mendigasse por atenção. 

A hora mudou, anoiteceu mais cedo. O tempo escuro convidou a sentar-se no sofá para um pouco de descanso antes do jantar. Navegou sem destino pela internet, até se deparar com uma imagem a representar todas as fases da lua. Compreendeu o significado. A sua espiritualidade estava a chamar. 

Pousou o portátil. Dirigiu-se ao quarto. Abriu a gaveta do meio, da mesa de cabeceira. Dentre os vários objetos pessoais, alcançou uma bolsinha de pano. Apesar de estar misturada com todas as outras coisas mundanas, pegou nela com reverência e acariciou-a. Tinha um fio que a fechava, libertou-o e de dentro tirou um baralho de tarot. 

Olhou demoradamente para a arte em cada carta. Para o comum mortal, tratava-se apenas um pedaço de papel com um desenho bonito. Podia ser só isso. E se fosse, mesmo assim era tanto. No entanto, nas suas mãos, eram coisas vivas. Mensagens por decifrar. Sabia que o oráculo precisava de atenção. Ou o melhor, o seu próprio espírito precisava de atenção.

Com um suspiro profundo, sentou-se na cama. A luz suave do candeeiro convidava à introspecção. Os dedos deslizavam com suavidade sobre a superfície lisa das cartas. Cada uma passava pelas suas mãos  devagar. Todos os pormenores das imagens desenhadas com grande cuidado, tinham um segredo. Pequenos detalhes que todos juntos formavam em simultâneo, um mistério e uma resposta. Arte e magia numa simbiose perfeita. 

Começou a embaralhar as cartas. Mesmo sendo um processo simples, demorou até se certificar de estarem todas bem misturadas. Finalmente, quando sentiu ser o momento certo, parou. Com os olhos fechados e a mente aberta, cortou o baralho a meio. Retirou a carta de cima da metade de baixo. Como estava virada não podia saber qual era. Ainda assim, sentia a energia dela. Vibrava, quase como se estivesse viva. 

Virou-a. Era a Roda da Fortuna. Carta número dez. Representa o movimento constante da vida, as mudanças inevitáveis, todos os ciclos da experiência humana. Não sentiu surpresa ao verificar o resultado. Das setenta e oito possíveis foi exactamente aquela a escolhida. A mesma que fala das fases pelas quais passamos de forma cíclica. 

Olhou para a carta com um sorriso nos lábios. Interpretou como uma mensagem de esperança. Parecia completamente adequada para o momento. Sentiu-se bem.

Olhou para todas as outras cartas também. Cada uma tinha o seu espaço. Refletiu sobre o significado delas. Eram um espelho da alma. Falavam sobre a sua jornada espiritual. Como se desprendeu de muitas coisas pesadas. Dos desafios enfrentados. A força conquistada para chegar até ali. Compreendeu e aceitou o convite para continuar a crescer. Agradeceu, depois, ao oráculo pela mensagem.

Juntou o baralho novamente e guardou-o na bolsinha de pano. Voltou a colocá-lo na gaveta, ainda com mais reverência. Naquele cantinho escondido, mas tão especial. Sentiu-se mais leve. A chuva lá fora parecia menos insistente e o outono menos melancólico.

Voltou para a sala, sentou-se no sofá e pegou no portátil novamente. Contudo, em vez de navegar sem rumo pela internet, decidiu escrever. Começou com frases soltas sobre a vida e os sentimentos. Depois, as palavras fluíam com facilidade, libertas na inspiração do éter. Nasciam poemas e prosas. Ideias e pensamentos. As páginas do processador de texto ficavam assim cheias pela criatividade outonal.

Quando terminou, sentiu uma satisfação aconchegante. Ouvia a chuva a cair. Sorriu. Respondeu ao apelo do seu espírito e sabia disso. Concluiu que o mundo interior também precisa de atenção.

Talvez por isso exista o outono. A noite vinha mais cedo porque é suposto o corpo abrandar. A chuva caia lá fora, pois o aconchego convidava a imaginação a sair. Era esse o pequeno grande mistério refugiado naquele momento. Tão simples e perfeito.


quarta-feira, novembro 15, 2023

Capítulo perdido

Noutro dia, enquanto vasculhava uns ficheiros antigos, encontrei os primeiros capítulos de uma história que comecei a escrever há uns 25 anos, mais ou menos (sei que naquela altura ainda não se usavam telemóveis. As pessoas comuns pelo menos). 

Infelizmente, por preguiça, talvez, não lhe dei continuidade. Contudo gostei de recordar estas primeiras ideias concretas, passadas para o papel. Decidi partilhar o primeiro capítulo aqui, visto também ainda não existirem blogs. 

Não alterei o texto e deixei tal como escrevi. Pessoalmente acho estranhamento bom para a idade e principalmente falta de experiência. 

Quem quiser passar algum tempo a ler, pode dar a sua opinião. Aqui fica:

Vejo agora o caixão a descer à terra. Bem para o fundo, onde ficará esquecido. Lá dentro o corpo morto do meu pai. Mas ao contrário do seu corpo, as suas lembranças que eu julgava há muito esquecidas e enterradas, vêm agora ao de cima, criando em mim um sentimento desagradável. Não sei se são remorsos ou se são pena. Pena de não ter sido de outra maneira. A minha mãe morreu quando eu ainda era pequeno. O meu pai sempre me tentou proteger. Tentou fazer os dois papeis de mãe e de pai. Por isso era duro para mim. Por isso também eu vivia em conflito com ele. Mas agora é tarde. Tarde para remediar o que está feito. Enquanto o caixão desce à terra as lembranças continuam a vir ao de cima atormentando-me. Mas porque é que eu me estou a sentir assim? Desde cedo lhe declarei guerra. Aquela guerra que os adolescentes declaram aos pais. Ele nunca me tentou compreender. Nunca me deu a liberdade que eu queria. Por isso quando cheguei à idade adulta sai de casa, ignorando totalmente os conselhos dele. Deixando-o numa grande solidão. A culpa foi dele. Ele nunca tentou compreender-me. Mas agora me apercebo que eu também não o tentei compreender a ele. Mas agora já é tarde. O caixão já está no fundo e começa agora a ser coberto por terra. Já é tarde para ter uma conversa com ele. Por um momento quase me deu vontade de chorar, como as minhas tias. Por que é que elas choram assim? Afinal também o deixaram sozinho. Também devem estar com remorsos. Mas eu não vou chorar. Afinal ele era meu inimigo. Desde cedo lhe declarei guerra, e ninguém chora a morte de um inimigo. Por isso mantenho a minha postura rígida e inabalável. Estão agora a tapar a cova. Quero sair dali mas ainda tenho de aturar os abraços das minhas tias. Grandes chatas. Choram tanto. Porquê? 

- Estás bem? 

- Sim estou. - A pergunta da Joana quebrou os meus pensamentos de raiva. Tinha de sair dali rápido. 

- Vamos embora daqui. 

- Já? Tens a certeza? 

- Sim. Ainda quero passar por casa do meu pai e chegar à cidade cedo. – A Joana era minha namorada. Nunca lhe tinha falado muito acerca do meu pai, embora estivéssemos praticamente noivos e eu partilhasse todos os meus segredos com ela, esse era um aspecto da minha vida que ignorava. Provavelmente já se tinha apercebido que o meu relacionamento com ele não era dos melhores, mas não imaginava que isto pudesse acontecer e me fosse deixar tão abalado. Procurava não mostrar qualquer tipo de sentimento mas ela sabia que naquele momento, eu estava a lutar com os meus fantasmas. Com certeza queria falar comigo fazer com que desabafasse com ela, queria evitar isso a todo custo. – Vamos.  

Entramos no meu carro, ainda tinha de passar pela casa do meu pai, a casa da minha infância que agora era minha. Ele vivia numa vila calma, afastada da cidade. Grande parte da minha família vivia ali. Eu tinha nascido, tinha crescido ali, mas contam-se pelos dedos as vezes que lá voltei depois que vim para a cidade estudar. Acabei o curso, arranjei um emprego e sem saber como passaram-se seis anos. Seis anos que devem ter sido de terrível solidão para o meu pai. Lá estão eles outra vez, os sentimentos de culpa. Agora já é tarde, mas não os consigo afastar. Vou calado enquanto conduzo pelas ruas da vila. A Joana também vai calada, ainda bem. E eis que lá está ela, a casa do meu pai. Mais um fantasma que tinha de enfrentar. Era uma vivenda grande de dois andares, qualquer habitante da cidade a acharia fantástica para passar as férias e o fim de semana, mas a mim só me trazia más recordações.  

- É aqui? – Pergunta a Joana com ar admirado. Aquele ar de pessoa nascida na cidade. 

- Sim. – Respondo com ar de quem não quer muitas perguntas. 

É espantoso como nada tinha mudado desde que eu sai dali. Era uma casa tão grande. Não sei o que irei fazer com ela. Vende-la? Deve ser a melhor solução. Mas também não a queria vender a qualquer um, talvez alguém de família a queira comprar. A Joana continua admirada. Provavelmente acha estranho eu não lhe ter dito que o sitio onde cresci era assim. Logo a ela que achava a vida na cidade tão acelerada. Pela cara dela, até aposto que era capaz de se mudar para aqui. É melhor ver-me livre da casa enquanto é tempo, senão depois de ficarmos noivos ainda me convence a ficar com ela, para passarmos os fins de semana e coisas do género.  

- Que casa fantástica! 

- Sim. É uma boa casa. – É obvio que ela está ansiosa por entrar. Por explorar todos os recantos. De certeza que vai fazer tudo ao seu alcance para me impedir de a vender. 

Ao abrir a porta senti logo aquele seu cheiro característico, que me trás de volta sentimentos amargos. Continuava tudo inquietamente na mesma. 

- Bem. Não me vens mostrar o sitio onde cresceste.  

- Porque não vais tu sozinha. Eu sei que gostas de explorar. Eu quero ficar só por uns momentos. Depois vou ter contigo. 

- De certeza que posso? 

Fiz-lhe um sinal afirmativo com a cabeça e logo ela subiu as escadas para explorar o 1º andar. Estava agora sozinho na sala de estar. Estava tudo na mesma. Exactamente como me lembrava desde a mais tenra infância. Os sofás, as paredes, as pinturas, a mesa, a lareira e por cima a espada que a adornava. Incrível. A espada do meu pai. Desde sempre que ali esteve, por cima da lareira. Guardada como se fosse um objecto sagrado. Gostava de saber a sua história, acho que nunca a vou saber. Sempre achei aquela espada fantástica, sempre me senti atraído por ela. Mas por alguma razão que desconheço o meu pai nunca me deixou tocar-lhe. Lembro-me que várias vezes em criança a ia buscar, ou para brincar, ou para mostrar aos meus amigos, ou simplesmente para apreciar a sua beleza. Sempre que o meu pai descobria que tinha pegado nela era uma bronca dos diabos. Cheguei a apanhar várias tareias por causa disso. Ele nem gostava que eu olhasse para a ela. Não sei qual era a sua obsessão pela espada mesmo que valesse uma fortuna, não havia razão para agir daquela maneira. Mas agora ele não estava ali. Estava morto. Já não me podia dizer nada. Por isso vou pegar-lhe. Sem hesitar peguei-lhe, já não me parecia tão pesada como em criança. Agora já era adulto e tinha força suficiente para a manejar. Lentamente comecei a tirá-la para fora da bainha, era realmente bela. Mais bela e fascinante do que me lembrava. Já devia de ser bastante antiga, dois ou três séculos talvez? Mas continua bela e afiada, devia valer uma pequena fortuna. Gostava de saber a sua história. Quem sabe pertenceu a um cavaleiro? Quem sabe quantas pessoas já matou? Em quantas guerras já participou? Quem sabe se pertenceu a um rei? Quem sabe? São só fantasias. Já pareço outra vez criança, a olhar para aquela fantástica espada por cima da lareira e a imaginar. Possivelmente nem era tão antiga quanto eu pensava. Mas não deixava de estar fascinado, ali, com aquela fantástica espada na minha mão. Engraçado, desde que lhe peguei, todos os sentimentos de culpa que me atormentavam desapareceram. De repente fui invadido por uma felicidade quase insana. Não sei de onde é que ela veio. Mas sentia-me bem. Sentia-me agora poderoso, invencível, com aquela espada na mão. Sentia-me capaz de dominar o mundo. Foi então, que, num acto, quase sem pensar, ergui a espada no ar com as duas mãos. Nesse momento todos os meus sentimentos de raiva, ódio e culpa vieram juntar-se ao sentimento de euforia que estava a sentir. Nesse momento, enlouqueci! Então com toda a minha força, dei um golpe na mesa. Esta ficou dividida em dois. A lâmina da espada atravessou a madeira como manteiga no Verão. E eu, sentia-me bem, tão bem! 

- Jorge?! Que se passa? Que barulho foi esse? – O meu momento de felicidade foi interrompido bruscamente. A Joana, atraída pelo som da mesa a partir desceu as escadas completamente apavorada. – Meu deus! Que fizeste? – Eu fiquei parado, a olhar para a cara assustada dela. Quase me deu vontade de rir, tentando adivinhar os seus pensamentos. Ao ver-me ali, com uma espada na mão, depois de ter cortado uma mesa a meio com um só golpe. Sempre me conheceu como sendo uma pessoa calma. E agora ao ver-me ali naquela figura. Possivelmente pensa que a vou atacar a seguir. 

- Tem calma. Não se passa nada. 

- Tenho calma! Tenho calma, dizes tu?! Para é que fizeste isso? E essa espada? Onde é que arranjaste essa espada? – Coitada. Estava completamente apavorada. Mas não sei o que a assustava mais? Se a minha acção? Se a minha aparente descontracção? 

- Sim, tem calma. Estou só a despejar a minha raiva.  

- A despejar a tua raiva?! Partiste a mesa a meio! A espada. Dá-me a espada, antes que faças mais alguma tolice. – A cara dela estava fantástica. Quase que não conseguia conter o riso, ao vê-la assim, tão assustada. 

- Acalma-te. – Voltei a embainhar a espada e dirigi-me a ela. Abracei-a e dei-lhe um beijo na testa. Todo o seu corpo tremia. Coitada. Não consegui deixar de esboçar um sorriso. - Acalma-te. Agi sem pensar. Desculpa. Não queria assustar-te. – Depois das minhas palavras e da minha manifestação de afecto, ela acalmou-se um pouco. 

- Pregaste-me um susto tão grande. Olha, eu sei que isto tudo está a ser difícil para ti. Eu compreendo-te. Podes falar comigo se quiseres. Vai fazer-te bem. Porque fizeste isso? – Sim, estava agora mais calma. Abraçou-se também a mim. 

- Olha. Esta era a espada do meu pai. – Dei-lhe a espada, para ela ver. Um pouco a medo pegou-lhe e lentamente começou a desembainha-la. - Não tenhas medo, toca-lhe. Vê como é bela. Quando era pequeno, o meu pai não me deixava tocar-lhe. Agora, quando a vi… Vieram-me ao de cima algumas recordações. Agi sem pensar. Foi uma idiotice. Desculpas me?  

- Desculpo. Claro que desculpo. Mas que foi uma idiotice, foi. – Aquela cara de susto já lhe tinha passado. Olhava agora, também fascinada, a espada. – Esta espada era do teu pai? É muito bonita. E também deve ser bastante antiga. 

- Sim. Deve ser. Mas o meu pai nunca me contou nada acerca dela. A única coisa que sei, é que ele não me deixava tocar-lhe.  

- É compreensível. Esta espada é fantástica. Deve valer bastante dinheiro. E além disso, é perigoso para uma criança tocar numa coisa destas. Vê só como é afiada. 

De facto. Depois de um golpe daqueles, a lâmina continuava extremamente afiada, como uma espada nova. Aliás toda ela brilhava, como se tivesse acabado de ser construída. Era realmente muito bela. Era uma espada digna de um rei. Digna mesmo de um deus. De um deus da guerra. 

- Vamo-nos embora. Voltas cá noutro dia. Esta casa traz-te recordações amargas. E hoje não me parece que estejas preparado para lidar com elas. 

- Sim, vamos. - A Joana tinha razão. Era melhor ir-me embora. Mas a espada vai comigo. 

- Que fazes? Não me digas que levas a espada contigo? Não achas melhor deixá-la ai. 

- Não. Vou levá-la comigo. Agora é minha. – A Joana achou aquilo estranho, mas não me disse mais nada. 

A viagem até à cidade correu normalmente. Passamos quase todo o tempo calados, fingindo esquecer o sucedido. Mas eu notava na Joana ainda uma certa inquietação. Já eram umas 11 horas da noite quando chegamos a casa dela. 

- Ficas bem? – Pergunta-me. – Não queres que fique contigo? 

- Não te preocupes. Eu fico bem. Vai tu para casa. Os teus pais já devem estar preocupados. 

- Está certo. Mas se precisares de alguma coisa, se precisares de falar, não hesites. Telefona-me. E outra coisa, tem cuidado com a espada. Não mates ninguém pelo caminho. – Disse ela. Tentando mostrar que o incidente em casa do meu pai não a tinha afectado. Mas a espada veio todo o caminho no banco de trás do carro, a lembrar-lhe o sucedido . Por certo vai ter dificuldades em dormir hoje à noite. 

Prossigo a viagem em direcção a minha casa. Não consigo deixar de pensar no dia de hoje. Como começou. Com todos aqueles sentimentos amargos a atormentar-me. Como me senti quando segurei a espada, completamente louco. E como me sinto agora. Como se nada de especial tivesse acontecido. Ainda bem. Se continuasse a sentir remorsos, acho não iria conseguir dormir à noite. Mas não consigo de deixar de achar estranho. Mudar de sentimentos assim tão rápido. Nem parece meu. 

Passo agora por uma rua morta. Ainda não é muito tarde, mas já não se vê ninguém. Nunca tinha reparado como a cidade parece tão calma à noite. Está tudo tão sossegado! Mas no meio da calmaria, algo me chama a atenção. Três indevidos com cara de poucos amigos, rodeiam uma rapariga que parece estar muito assustada. O local não estava muito iluminado, o que o tornava perfeito para um assalto. - Vejam só a minha sorte. No meio da calmaria, fui deparar com um assalto. – As luzes do meu carro assustaram os bandidos. Certamente pensavam estar sozinhos. Porém este facto não os fez desistir. Continuaram a cercar a rapariga, certamente convencidos que eu ia seguir o meu caminho, fingindo não ter visto nada. O que é que eu vou fazer? A rapariga olhava para mim com esperança que a ajudasse. Os bandidos continuavam empenhados. O que é que eu vou fazer? Se eu sair do carro para a ajudar, eles podem estar armados. Além disso são três. O que podia eu fazer contra eles. O melhor é seguir o meu caminho e esquecer. Não. Não posso fazer isso. Não me posso acobardar dessa maneira. Parei o carro e apaguei as luzes. Os bandidos olhavam agora para mim, mas continuavam no mesmo sitio. Peguei na espada, segurando-a atrás das costas, e sai do carro. Não havia luz suficiente na rua para me poderem ver em condições. Com a espada sinto-me protegido. 

- Hei? O que é que se passa aqui? Estes homens estão a importuna-la, senhora? – Perguntei. Foi o acto mais corajoso que tinha feito, até hoje. 

- Por favor. Ajude-me. – Pediu-me a rapariga, apavorada. 

- Hê pá. Vai-te embora se não queres morrer hoje. – Disse um dos bandidos puxando por uma navalha, dando uma risada. – Mata-o. – Diz outro. 

- Por favor. Ajude-me. – Voltou a pedir a rapariga. 

Nesse momento, o bandido que empunhava a navalha, saltou sobre mim. Então novamente num acto sem pensar, desembainhei a espada. E sem o mínimo de piedade desfrutei um golpe no homem. Um golpe tão violento, que lhe abriu o peito e lhe cortou a mão, tudo de uma só vez. O que fez jorrar sangue, como se fosse uma fonte. Um dos companheiros veio em seu socorro, não se mostrando impressionado. Com a ponta da lâmina fiz-lhe um golpe nos olhos.  

- Os meus olhos! Os meus olhos! Estou cego! Não vejo nada! – Gritou em agonia. Levando as mãos às vistas todas ensanguentadas, caindo de joelhos. 

- Estás cego? Compra um cão. – Respondi-lhe. E num acto completamente sádico, sem mostrar um único sentimento. Enterrei-lhe a espada na cabeça. Jorrando novamente um rio de sangue. 

O terceiro tentou fugir. Mas tropeçou e caiu no chão, de barriga para baixo. Espetei-lhe várias vezes a espada nas costas. Foi o que teve a morte mais clemente. Ao acabar de executar os bandidos, olhei para a rapariga. Estava perplexa com o acontecido. Sorri-lhe e perguntei. – Está bem? – Ela olhou para mim, ainda tentou dizer qualquer coisa. Mas fugiu, assustada. Vejam só! Fugiu! Acabei de a salvar. E é assim que me agradece. Então reparei nos corpos mortos e mutilados dos bandidos. E no sangue que escorria da lâmina da espada. E na enorme poça, na calçada. Parecia um rio. Fantástico. Nunca tinha visto tanto sangue na minha vida. Só então ai me apercebi verdadeiramente do que tinha feito. Tinha acabado de matar três homens, de uma maneira tão violenta, que ainda me custa a acreditar que o tivesse feito. Não admira que a rapariga fugisse. Depois de ver tanta carnificina. Meu Deus! O que é que eu vou fazer? Vou ser preso e acabar os meus dias na prisão. Não. Não. Não pode ser. Ao ver aquele cenário de morte e pior, ao saber que fui eu que o provoquei, começou-me a dar vómitos. Tinha de sair dali. Meti-me no carro e arranquei. Só pensava em chegar a casa, limpar completamente o sangue da espada e tentar esquecer. Se isso fosse possível. 


quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Peixes significa poesia


No signo dos Peixes há mistérios,

Mundos submersos e mundos sérios.

Sonhadores do Zodíaco, assim são,

Voam na sensibilidade e intuição.


Amam o impossível que há no Universo,

Vivem de alma inquieta e feitio intenso,

Buscam desvendar o segredo do infinito,

Alcançar o inatingível com o espírito.


Nos seus pensamentos profundos,

Como nas águas sombrias dos abismos.

Onde o medo e a poesia se deixam levar,

Para, juntos criarem uma beleza sem par.


Mergulham nas emoções mais intensas,

Fazem dos sentimentos as suas crenças.

Encontram nas artes sua verdade,

E no amor a mais alta liberdade.


sábado, setembro 17, 2022

Queda invertida

A personagem caiu ao céu. Bateu com as costas numa nuvem fofinha e partiu a espinha. Ninguém avisou sobre essas quedas, as quais podiam acontecer na direcção do azul do céu, ou como nuvens com aspecto de algodão doce podiam aleijar tanto. Muito menos alertaram sobre a existência de dores que nunca iriam sarar.

A personagem ficou perdida. Sem esperança, a olhar para a mentira à qual os outros chamavam de vida. Todos ensinavam às crianças porque não se deve mentir, mas a pior mentira é uma ilusão tida como verdade. Foi assim conheceu a palavra saudade. Aquela, de coisas nunca acontecidas.

A personagem soltou-se de volta para o chão. Desta vez não doeu tanto porque o chão é suposto ser duro. Aguentou a queda sem grandes lamurias. Como um verme, foi-se arrastando pela terra imunda. Implorou carinho a quem o pregava, sem nunca o receber. Ficou então a conhecer a palavra desprezo, juntamente com a hipocrisia.

A personagem escreveu o seu nome na lama para se lembrar que também tinha vida. Descobriu assim o poder das letras. Reparou, ao ler as palavras desenhadas na imundice, quando estas são usadas em conjunto, podem dar corpo à dor. Nas terminações formou rimas. E transformou, assim, em poesia toda a sua raiva.

A personagem rabiscou, então, sobre a queda invertida. De como partiu o alicerce da esperança, desde a coluna até à alma. Nunca conseguiu ser aquilo planeado por outros para si. Só uma sombra translucida, quebrada e deformada, sem nada a oferecer a quem carece de fantasia. Ainda assim, sentia um certo orgulho no seu falhanço.

A personagem quis então ser outra coisa. E foi. Livre da opressão de quem lhe indicava caminhos rumo ao vazio. Descobriu tanta coisa na vida para lá daquilo que julgava conhecer. Em cada novo pedaço de conhecimento, aumentou a sabedoria, só para descobrir de como era ainda enorme o tamanho da sua ignorância.

A personagem, depois, continuou. A viagem adivinhava-se longa, contudo, o destino era compensador. Olhou para trás, num breve vislumbre daqueles que ensinavam ilusões. Teve pena daquelas figuras ignorantes. Cativos no seu próprio mundinho preconceituoso. Sem a mínima noção de fantasia, ou pior, dos cenários existentes para lá do horizonte.


segunda-feira, setembro 20, 2021

Interpretar o que não existe

Os acordes chegam de mansinho aos meus ouvidos. Não importam os instrumentos que os sussurram, apenas os sentidos que os consomem. Deixo-me mergulhar neles como quem entra num sonho transcendente. 

Trazem uma melodia encantada que me faz viajar: pela imensidão das Estrelas que pintam o Cosmos; por outros "eu"; por amores indizíveis; por acontecimentos transhumanos; por histórias que ainda não criei. A cada nota emanada vai-se montando um cenário onde a magia, a ciência, e a fantasia se misturam num único entendimento. 

A partitura, composta num momento de criatividade divino, vai-se edificando. A beleza da música revela os seus segredos nos mais pequenos detalhes. Eu escuto e assimilo uma mensagem que não tem palavras, somente um convite para alcançar o que está longe. 

A interpretação é livre. Cada um pode escolher o que sentir quando uma sinfonia sem destino escolhe traçar o seu caminho através da pessoa que somos. É para isso que a arte existe: para elevar os sentidos que nos prendem a este chão. 

Não conheço o nome do autor mas partilho com ele a viagem de sinestesia sensorial que vivenciou quando compôs esta trilha de sensações. É este o objectivo da partilha, percorrer aquilo que a realidade tem de alternativo. A imaginação cresce tal como um universo que nasce. 

Um compositor qualquer criou o princípio para que todos os que o escutam continuem a sua criação. A harmonia intensifica-se quando os ouvidos fazem desabrochar todos os outros sentidos, para pintarem uma tela onde o impossível não existe. 

Danço como quem escreve; sonho como quem vive; perco-me como quem se encontra. O tempo não faz sentido neste mundo feito de criatividade, onde não há objetivos, a não ser interpretar o que não existe. 

A ilusão é real porque o artista assim o quer. Sem as fronteiras da percepção humana, ou dos ensinamentos das ciências exatas. A música faz-me ir para lá de mim. Conhecer coisas que ninguém sabe ensinar. 

Hoje, falo da música, mas podia falar das cores, da natureza, do amor, ou da tristeza. Posso apenas dizer que sinto profundamente algo que está longe. Distante como eu. Aquelas coisas que só são compreendidas por quem sente na pele o significado da fantasia.

O mundo torna-se insignificante, perante aquilo que só eu sinto quando os acordes encaixam perfeitamente naquilo que nunca saberei explicar. O que é meu, é somente meu. Digo por palavras inúteis que sinto algo superior. É só isso, mas é tanto.

Nada mais pode ser dito. Não pode ser partilhado. Contudo, como se trata de uma espécie de magia, posso convidar-te para sonhar um pouco também com o infinito, nestas palavras perdidas com que me tento expressar...


terça-feira, março 02, 2021

As mulheres sabem estas coisas

Lá dentro as luzes estão todas ligadas, como se quisessem enganar a noite. Ela observa com curiosidade. Está indecisa se deve entrar para o conforto do interior da casa ou, permanecer cá fora enquanto a penumbra cresce e o fresco lhe arrepia a pele. É como escolher entre a ilusão e a verdade. Ter, ou não, medo da fogueira onde as bruxas ardem.

Abraçou o próprio torso para sentir algum calor. Levou o pé atrás e recuou. Foi-se afastando das janelas iluminadas exageradamente. Escutava as vozes dos outros lá dentro em conversas entusiasmadas e sentiu que não era ali o seu lugar. 

Virou-se para encarar o céu escurecido onde as primeiras estrelas começavam a cintilar. Sentia o chamamento. Sabia que a sua condição de mulher lhe dava acesso a sentidos não explorados pela ciência. Contudo, no seu âmago conhecia-os bem. Era capaz de ouvir algo que cantava na natureza. Sabia segredos que se mantinham ocultos. Coisas indizíveis que moldavam a sua silhueta e a sua mente feminina. 

Foi caminhando pelo jardim, para longe da azáfama da casa. Olhou para o horizonte que misturava os montes à distância com a tela do firmamento. O contraste com as cores do dia parecia ocultar uma mensagem. Resolveu fazer uma prece silenciosa. Uma oração sem louvor, pedidos, ou agradecimentos. Rezar deve ser como uma viagem ao conhecimento do mundo antigo, à origem do inefável. 

Tirou as sandálias veranis, para sentir melhor o chão que pisava. Soltou os cabelos e abanou-os como uma bandeira. De repente já não era ela. O frio tinha desaparecido e uma liberdade nua tomou conta de si. Sorriu, sem saber porquê, embora conhecendo o motivo.  A lua cheia surgiu devagar por detrás da sombra em que a floresta se escondia. 

A noite é feminina, tal como a lua, a floresta e toda a natureza que a acolhia. 

Houve um silêncio profundo que parecia de reverência. Talvez só tenha durado uma pequena fracção de segundo. Contudo, ela não se importava com o tempo ou a sua duração. Ali não havia relógios e nem faziam falta. O tempo é o que se sente e deve ser medido pelo pensamento, não por uma máquina. 

Alguém gritou pelo seu nome ao longe. Chamaram-na com voz de gente e perguntaram se não queria entrar. Sentiu-se importunada mas não se irritou. Os outros só conheciam o tempo que os ponteiros do relógio mostravam. Não quis explicar aquele momento só seu. Limitou-se a responder - Já vou! 

Mas antes de ir demorou. Contemplou a lua mais um pouco enquanto esta subia até ao trono da noite. 

O sol estava escondido, mesmo assim emprestou-lhe o seu brilho do outro lado do escuro. O universo tem esta dualidade: masculina e feminina. Contudo, faz com que ambos se encontrem em jogos de sedução. Esta verdade está presente em muitas das linhas que tecem a realidade e ela estava feliz por conhecer este segredo.

Foi caminhando sem pressa, com passos meditados para que a textura do solo se entranhasse nos seus pés descalços. Aproximou-se das janelas iluminadas. Escutou os outros que conversavam como quem dorme. 

Ela também era dali: fazia parte da gente que vive no mundo, com casas, notícias, televisões, política e coisas que a sociedade tem. Não podia fugir desse propósito com que a condição humana a cingiu, portanto tinha de entrar. Colocou a mão na maçaneta e rodou. 

Quando abriu a porta da casa o silêncio calou-se. 

A noite tinha ficado lá fora.


segunda-feira, janeiro 11, 2021

O Segredo da Vida está no caderno do Tino


Noutro dia assisti a um debate para as eleições presidenciais entre o Marcelo Rebelo de Sousa e Vitorino Silva, carinhosamente conhecido como Tino de Rans. Este último não tem qualquer curso superior e orgulha-se profundamente das suas origens humildes, tal como da sua profissão de calceteiro.

Podemos dizer que, como formação académica, este homem tirou verdadeiramente um curso na universidade da vida (como por vezes vemos nos perfis das redes sociais), pois tudo o que aprendeu foi a viver, sem as limitações de uma sala de aula. 

Com um visual descuidado, um discurso sem palavras caras, ou sabedoria aborrecida, daquela que as excelências costumam ter, sentou-se frente a frente sem medo, nem qualquer sentimento de inferioridade diante do seu oponente. Conhecia essa Liberdade e não abdicou do direito de o fazer.

Tendo uma forma de falar meio atabalhoada, entre palavras comidas e dicção apressada, notava-se que, ao contrário dos outros políticos, nunca perdeu tempo a treinar esta prática de discursar. Mas isso não o impediu de fomentar a sua visão. Através de exemplos da sua própria vida, lá ia apresentando analogias que faziam todo o sentido. 

Tinha respostas imprevisíveis, contudo, sem os rodeios habituais de imprecisões que costumam sair da boca para fora dos políticos comuns. Com a sua simplicidade, reconheci neste homem um idealista, ou se preferirem, um sonhador, como muitos preferem chamar a gente assim. 

Acreditava plenamente em si, sem se preocupar com os rótulos que a sociedade lhe colocava. Tentaram desacredita-lo mas isso só lhe deu mais força. Os grandes não gostam de quem nos faça frente. Porém o povo farto do "sempre igual", não suportou a injustiça, saiu em sua defesa e exigiu escutar a sua voz. Nunca se deve calar um sonhador e assim foi!

Encarava o debate com grande ânimo, expondo as opiniões com toda a certeza. A certa altura, disse ter uma surpresa e puxou por um caderno, onde disse apontar todas as ideias para a sua campanha. Sem nenhuma equipa de assessores, ou de marketing, ele seguia em frente apenas com umas folhas de papel escritas com caneta, dizendo: "Tal como a roda a caneta nunca passa de moda". 

O Marcelo, também Presidente da República, observou os escritos organizados pela métrica do seu criador com fascínio, notando que algo tão simples podia ser tão poderoso. 

Achei genial. Pensei para mim mesmo: "O Segredo da Vida está no caderno do Tino". 

Não só naquele caderno específico, nem naquelas palavras, mas em todas as ideias que os sonhadores natos, colocam em prática com a sua criatividade única. 

Existem mais cadernos, mais sonhadores, mais gente que não se acomoda porque a sociedade lhes diz que são pequenos. Estão por aí, a passar despercebidos aos olhos de quem gosta de julgar. No entanto elevam-se, em total oposição a pequenez com que os querem cingir. 

Não se importam de ir sozinhos, pois sabem que gente vazia só serve para estorvar. Têm um brilho nos olhos inconfundível para quem o sabe reconhecer. Uma confiança que, apesar de parecer inocente, vai mais longe do que a normalidade. 

Quem tem a curiosidade atenta e sem influências pré-concebidas, consegue entender estes mestres improváveis que, na arte da imaginação, vão impulsionando o mundo.

Nunca subestimem quem sonha. Nunca deixem de escutar quem vive no mundo da fantasia, são desses pensamentos imensos que nascem os génios. É gente assim que faz o mundo evoluir. Mesmo invisíveis, ou desacreditados, não desistem e os seus sonhos realizados são o verdadeiro triunfo!


terça-feira, novembro 17, 2020

Porta de lápis de cor


Olhei para o desenho que uma criança fez. Não compreendi ao certo de que se tratava, acho que era uma paisagem qualquer onde alguém vivia uma aventura. Sei apenas que fazia sentido na cabeça do miúdo e isso era suficiente. Na sua meninice fez dos lápis de cor a porta para o seu mundo e sem saber criou algo grandioso!
Não sei que personagens habitam a sua mente infantil, nem importa muito. São dele e isso basta. De qualquer maneira, ignorando por completo esse facto, tem na sua imaginação a maior riqueza que pode receber. 
Daqui a pouco chegam os "grandes" a dizer que é preciso estudar coisas aborrecidas. "Os desenhos não servem para nada", dizem eles, na sua ignorância adulta. Esquecem que também eles já foram pequenos e o mundo parecia maior. Depois cresceram e assumiram que a pequenez da existência é a única verdade absoluta. Néscios!
Julgam-nos a nós, os de lado de cá. Que não nos conformamos com simplesmente ser, ou a encontrar conforto nas coisas da moda. Eles consomem a fantasia como um produto descartável. Na sua ignorância desvalorizam os criadores que ousam imaginar. Gozam-nos. Apontam-nos o dedo como se fossemos menores. Mal sabem eles do seu próprio ridículo! 
Como podem eles saber quem somos? Se a criança que foram desapareceu com a carne que enruga.
Somos telepatas, empáticos, bruxas, cyberpunks, druidas, magos, esotéricos, curiosos, iluminados, batalhantes, poetas, artistas, hippies, naturistas, aventureiros, personagens à parte, seguidores dos velhos e novos costumes, mais tantos outros cujos rótulos impostos por essa gente são ostentados com orgulho. Todos unidos na fuga à banalidade!
Quem entender a importância da imaginação não se cinge à condição humana, limitada e sem o expoente que uma mente criativa pode alcançar.
É por isto que acho fundamental que exista gente com fantasia, capazes de transformar um simples pormenor numa história épica. Fazer da arte (seja ela qual for) a súmula apoteótica da existência! Gente que retira o peso enfadonho da realidade! 
Como fico contente em conhecer gente assim. Aqueles que me mostram os mundos que não são, no entanto existem e neles podemos ser a criança que nunca cresceu!

segunda-feira, novembro 16, 2020

Prole da mesma intenção


Por vezes cruzo-me com a minha "alma gémea". É inevitável. Sinto-a como um chamamento. Algo magnético que nos impele para o mesmo olhar. É aí, quando os nossos infinitos se cruzam, escondidos atrás de um rosto de feições humanas, que nós percebemos que aquela é a nossa suposta “outra metade” como dizem os românticos.
Ainda que esse encontro dure ínfimos fragmentos de segundo, temos certeza de que ele acontece. Não apenas uma, mas inúmeras vezes, sempre em faces diferentes. Sou eu que me cruzo contigo; és tu que te cruzas com o outros; são os outros que se cruzam comigo. É como uma rede de encontros momentâneos, sem futuro, embora intermináveis com o mistério que trazem. 
Nas nossas diferenças, somos todos parte do Uno. Fragmentados pela nossa sina humana, onde os instintos assumem um papel fundamental. Buscar outro que possamos entender como igual é apenas um deles. Tenho a certeza que os entendidos nas ciências da evolução, arranjam uma explicação para isso. Algo frio. Palavras complicadas que elucidam este enigma, sem romantismo, apelando apenas ao lado mais animal que habita a nossa carne. 
Existir torna-se tão vazio quando compreendemos aquilo que nos programa. É triste. Esta história da "alma gémea" perde a beleza por completo. É tão pouco ser apenas humano. Não é?
Pessoalmente fico baralhado. Falar em "alma gémea" parece até algo incestuoso quando todos somos prole da mesma intenção. Aos olhos da ciência amar é tão pouco. Tão inútil. Somente uma espécie de sobrevivência sem qualquer intenção de ser algo transcendente. Nada que mereça ser transcrito em poemas ou romances que almejam a eternidade. 
Não existe a "alma gémea", existe sim a ideia de "alma gémea". É só isto e é tão pouco. Queremos mais, mesmo que seja só ilusão, porque tão pouco não basta. Então amamos: os corpos, as almas, os sonhos, o etéreo... Sem deixar que a insignificância tome conta de nós!

terça-feira, setembro 22, 2020

A ilha de "Lost"

Setembro é um mês agridoce. Tem no seu ventre o conforto caloroso do verão e em simultâneo abre as portas do outono e traz consigo os primeiros dias invernosos. No entanto esta história aconteceu no fim de um dia quente. Quando a noite começa a cair e as primeiras estrelas convidam a olhar o céu. 

– "Gosti" –  disse com uma certa meiguice que só ela sabia ter. 

– Como quem gosta de quê? – Questionou ele, não porque duvida-se, mas porque gostava de viajar nas palavras dela. 

– Como quem gosta da lua cheia. – Respondeu sorrindo, sem timidez. 

– Desenvolve. – Insistiu ele com alguma frieza, tal como seria interpretada por quem não o conhecesse.

– Daquelas gigantes que hipnotizam! – Concluiu ela.

– Já eu, gosto de ti como uma ilha deserta. Daquelas com praias fantásticas e florestas  supertranquilas. Mas depois, quando começamos a explorar, vamos encontrando vários mistérios cativantes. Tipo aquela ilha de "Lost". – Disse ele narrando as palavras de forma a dar corpo ao sentimento.

– Ganhaste no desenvolvimento. – Comentou ela refugiando-se no sorriso.

– Também podias ter desenvolvido mais. Se quiseres continuar eu não me queixo… – Lançou-lhe o desafio, apesar de saber que seria difícil obter a continuação, já que as suas confidências são raras.

– Agora não. Tenho de ir […]. – Deixou de a escutar no momento em que disse que tinha de fazer uma mundanice qualquer. As banalidades do mundo sempre foram demasiado aborrecidas para ele. Principalmente na companhia dela. 

Contentou-se com a resposta expectável. Já sabia que ela era assim, fugidia. Chega, deixa o mistério no ar e depois vai embora com um pretexto qualquer. Não se importou em demasia. Tinha conseguido que ela lhe oferecesse um pouco do seu tempo gratuitamente. Isso para ele era muito.

A conversa talvez continuasse depois, num dia qualquer, noutro momento em que a poesia estivesse presente na decoração da natureza. Ou então, quando os sentimentos tentassem enganar a inquietude e tomassem as palavras por escape.

Contemplou o anoitecer. Não é preciso ser poeta, ou artista, para interpretar a beleza das estrelas no céu a brilhar numa noite amena. Basta gostar da tranquilidade que vai surgindo como recompensa depois da confusão dos afazeres humanos.

De certa forma aquela conversa continuava, silenciosa e distante. Como tantas outras que aconteceram antes. Pintada no cenário sossegado da noite que cai e das estrelas que cintilam ao fazer viajar a imaginação...


segunda-feira, setembro 14, 2020

Qual é o teu sonho?

Nunca compreendi porque chamam "sonhos" aos nossos projectos, ideias, ou ambições. Sonhar é algo que pertence ao sono. Uma realidade abstracta que ocorre enquanto dormimos, sem relevância maior, destinada apenas ao esquecimento. 

Dizem os entendidos que é o cérebro, com os seus mistérios, a reordenar os pensamentos. Nada de especial, portanto. Pelo contrário até, apenas um computador a desfragmentar toda a sua informação. Visto por este prisma nada existe de extraordinário em sonhar. Ainda que, tenho de admitir, seja algo que levante curiosidade pela sua excentricidade. 

Mas voltando ao pensamento inicial, aplicar o termo "sonhar" para aquilo que desejamos, indica, só por si mesmo, algo não realizável. 

Não! Eu não "sonho" dessa forma! 

Prefiro expressões como fantasioso, imaginativo, inconformado, visionário, idealista! 

Não! Não me perguntem qual é o meu "sonho"! 

Eu sou daqui. Não estou a dormir. Estou acordado. Talvez até demais. 

Estar acordado por vezes dói mas só assim consigo ver com precisão as linhas com que é tecido o mundo. A realidade crua em que a nossa forma se perde entre os chamados "sonhos por realizar". 

Posso imaginar uma utopia, impossível do ponto de vista humano, contudo se a descrever numas quantas linhas esta passa a ter o estatuto de ideia. Depois, quem sabe, pode inspirar outros, com saber suficiente para a tornar realidade. 

Seja como for, a fantasia que criei acordado, ganhou forma. Algo palpável para quem compreende a linguagem dos que pensam para lá da linha do horizonte.

A maior parte das pessoas, desses que têm "sonhos", são os mesmos que excluem gente como nós. Os que vivemos rodeados por arte e poesia. Nós, os que conhecem a realidade e sabem que ela não basta.

Tu, que estás aí desse lado, a ler estas palavras e identificas-te nelas como se fossem as tuas próprias, fica a saber que a tua condição não é única, muito menos isolada. És somente fruto do desprezo de quem não consegue ver mais do que os limites pelos quais são rodeados. 

Não aceites os julgamentos nem conselhos dessa gente comum. Dizem que "sonham" e por isso acham-se diferentes. Não passam de cópias uns dos outros. Do nosso mundo não sabem nada e nós também não os queremos cá! 

Deste lado da fantasia só as nossas verdades nos podem orientar!


sábado, junho 27, 2020

Questionar a ciência


O passado é uma distância estranha. Sei que existiu porque me lembro dele. Acredito que fiz essa viagem até aqui ao momento presente, por causa das recordações que fazem de mim quem sou. Aprendi e cresci. Posso comparar isso nas imagens que o espelho me dá. Já não vejo uma criança, aliás, custa-me até a crer que um dia fui mais jovem. Se fui, aquele não era eu. 
Dizem os entendidos que o futuro já passou, nós simplesmente não nos lembramos dele. É a ciência que afirma isto com a sua matemática precisa. Sem qualquer tipo de romantismo. É um facto puro e duro. 
O meu eu futuro não conheço. Não me posso deslocar até ele nem tenho qualquer indicação sobre quem é. Não há qualquer referência tal como existe no meu eu passado. Só este entendimento faz com que a mente seja assolada por variadas interrogações: 
Será que vou fazer as escolhas certas? 
Será que este momento existe?  
Será que as minhas decisões são mesmo minhas? 
Aqueles que defendem a existência do destino, de certa forma estão correctos, porque afinal já tudo aconteceu! Quem sabe não passamos de meros figurantes numa história muito maior que a nossa própria existência? Se assim é, o mundo que conhecemos não passa de uma ilusão! É uma conclusão possível. 
Mas o sofrimento existe, e dói. A felicidade também, e é tão bonita. Há também o intermédio e todas as coisas que conhecemos. Os sentimentos que me moldaram. As cicatrizes, em que cada uma tem a sua história. Os rostos daqueles que me rodeiam e a quem chamo pelo nome. Será que isto tudo é mesmo uma ilusão? 
A cada momento eu sou diferente. Incontáveis fragmentos de mim mesmo encaixados uns nos outros de maneira a criar uma sequência. Feitos de aprendizagem na vivência do dia-a-dia e no sentir que vai impulsionado aquilo que entendo por viver.
E se nem isso for real? Não existiu nada antes e tudo o que sei faz parte da personagem que me atribuíram. 
E se tudo está errado? A ciência? O destino? O próprio tempo? Só este momento é verdadeiro! 
A inquietação é grande no meio de todas estas questões inúteis, já que tanto faz que tudo seja uma ilusão. Eu estou aqui. Para mim sou real. Sinto o toque quente ou frio. Sei o que senti e o que sinto. Também o que quero sentir. Vejo as letras, por mim pensadas, a organizarem-se de modo a serem compreendidas por outros que também os julgo como verdadeiros. Todos tivemos a mesma base de aprendizagem e conseguimos nos fazer compreender uns aos outros. 
Tudo isto é real. Tem de ser real. Mesmo que seja mentira...

sábado, dezembro 14, 2019

Nas horas da insónia


Bem-vindos às altas horas da noite. Aqui todos somos Poetas. Temos uma fragilidade natural, que nos impele a brincar com as palavras numa tentativa absurda de descrever sentimentos. Vivemos aqui, assim, como se nada mais importasse, além daquilo que nos faz sonhar. O dia já passou há muito. Agora, só a madrugada interessa. A manhã ainda tarda, por isso ignorarmos que ela existe.
Aqui estamos nus, sem pudor, nem vergonha, daquilo que nos é íntimo. Com a nossa pele de vestir atirada para o chão, como roupa usada. Agora somos outros. Uma versão alternativa da nossa figura. Gente que só existe muito depois que o sol se põe e os afazeres terminam. Talvez, até, alguém que amanhã não se entenda assim, porque lá fora tudo dói e há que escudar a consciência.
Portanto, aqui me exponho, na mais profunda das sensibilidades. Enquanto a insónia não me deixa adormecer. Verdadeiro em todas as confissões que se soltam do meu âmago. Pensamentos que lutam para emergir. Anseios que aguardam a sua vez para serem transformados em rimas delicadas. Por vezes só sobram os gestos que buscam outros toques. A conversa intensifica-se no silêncio entre a telepatia da entrega.
Depois, o relógio aparta-nos, insensível ao nosso amar. O sol também quer trazer a sua luz à natureza que o chama. Já nós, temos as nossas regras e vamos. Os horários que impomos a nós mesmos, porque alguém nos disse que era assim. Nós aceitamos e fazemos disso a nossa tormenta. Lamentamos o nosso fado sem nunca o desejar abandonar. Quem sabe porque sem isso, já não havia madrugada, nem poesia, sentimentos ou nudez. E já ninguém nos encontrava…

terça-feira, novembro 26, 2019

Quando uma criança imagina


Quando o pensamento é jovem a sua força pode linear destinos, ainda que, de forma esboçada, ausente de pormenores. Isto porque a juventude é naturalmente desprovida de conhecimento sobre a vivência humana. O futuro pode assim ser traçado, porque um dia uma criança idealizou que assim seria. Como um argumento cru, resumido ao mínimo.
Julgo eu, que esta força, provém exactamente da ignorância infantil face àquilo que a fantasia pode alcançar e que esta seja, de facto, um propulsor para a vontade do Universo. Sem bases científicas que apoiem esta minha avaliação, não me ocorre outra denominação para o poder do pensamento, a não ser magia!
Sem me julgar mago, olho para a minha própria existência e comparo-a com aquilo que um dia a criança que fui imaginou. As aventuras, os amores e as conquistas. Retiro todos os cenários que servem de entulho e resumo-me a sentimentos. Num golpe de ironia eles estão lá, os mesmos que um dia desejei, ofertados pelas leis da vida.
Claro que, com toda a azáfama com que somos confrontados na nossa qualidade de seres humanos, tudo fica confuso. Torna-se inevitável questionar o que nos rodeia, seja material, regras impostas, ou vontades alheias. É fácil esquecer o que queremos, quando não existe a percepção de que, para sentir, há que percorrer um caminho que sirva de aprendizagem.
Há coisas que doem viver e a fantasia morre aos poucos na ambição dos adultos. Dei por mim a cumprir pena de amargura porque, na inocência da criança que fui, cometi o crime de um dia desejar o que não compreendia. Esta conclusão está repleta de ironia, contudo vou tentando encará-la de frente. Não como um herói, mas alguém que assimila as respostas depois de uma revelação.
No fundo, posso dizer que a magia se limita a duas coisas: pensar e sentir. Todo o resto são adornos impostos pela ilusão em que crescemos. Cingindo-me, assim, a esta mera reflexão ao fim da tarde, sem reconhecer qualquer autoridade nas minhas próprias palavras. Quem compreender, compreendeu. Quem discordar, discordou. Pouco mais há a dizer…

terça-feira, setembro 24, 2019

Lūna lūcet


Olhei para a Lua cheia e esqueci-me de todos os meus amores.
Erguia-se luminosa e soberana acima da escuridão profunda da noite. As estrelas recolhiam-se como que em submissão à Rainha do firmamento. Havia nela um feitiço, quase erógeno, que me impelia a contemplar o seu brilho hipnótico. Uma presença feminina, superior a toda a beleza, que nenhuma mulher podia ousar rivalizar.
Não existia toque, mas senti a sua carícia como quem partilhava o desejo com uma amante impossível. Entreguei-me ao erotismo poético de quem revela um segredo na hora do prazer. Houve um arrepio de silêncio sussurrado ao ouvido das trevas que me completam. Apresentei-me assim, com a alma despida de qualquer sol. Ofertei a minha ignorância virgem ao enigma da génese e sonhei.
Quando compreendi a ausência de sentido dos mistérios indizíveis do Universo, amei a liberdade como nunca tinha feito antes. Afinal, ser livre é ser parte de um todo, cósmico e infinito. O entendimento limita-se a si próprio na forma humana e aceitei isso como um dom. Algo na minha pequenez é imenso, tal como na origem de tudo que foi concebido pela sabedoria da criação.
Depois, o êxtase dissipou, entre o cansaço, o deleite e o sono. Tal como esvanecem todos os devaneios nas profundezas do esquecimento. A noite manteve-se iluminada, mas a magia calou-se. A Lua continuou cheia na sua imponência e foi amar outros que a admiravam, porque o amor é livre na sua incompreensão e todos devem provar o seu sabor, antes que chegue a madrugada…

quarta-feira, setembro 18, 2019

Pensamento alado


Vi uma multidão incontável. Era igual a um mar, em que as cabeças se perdiam como gotas. Não lhe encontrava fim, nem início. Na minha curiosidade aproximei-me. Reparei que alguns tentavam, em vão, procurar uma saída sem nunca o conseguirem. Empurravam, desesperados, os seus pares, para tentar seguir uma direcção que levava a lado nenhum. Ainda assim, iam lutando com todas as forças para se esgueirar entre os corpos com esperança de se libertarem.
Outros, limitavam-se a ficar quietos, numa espera continua. Trocavam palavras com os companheiros do lado em conversas banais. Os restantes nada faziam. Mantinham o rosto inexpressivo, como que resignados a aguardar por algo que não compreendem, sempre no mesmo lugar e posição. Aceitavam conformados aquilo que eram. Nada mais sabiam do que isso.
Eu, estava acima de todos. Não consegui perceber se me encontrava num local elevado, ou numa plataforma, ou mesmo até, se conseguia voar sobre todo aquele oceano de gente. Olhava-os cá em baixo e observava cada face. Interrogava-me que existência singular era aquela que cada um tinha, com a sua própria história pessoal, embora sem nunca me importar realmente com quem eram.
Entendi a minha altivez como uma revelação, embora sem conseguir interpretar o seu significado. Talvez fosse apenas a minha arrogância natural a atribuir essa definição. Ou então, quem sabe, fosse somente uma recompensa pelo meu espírito livre. Poder viajar sobre o pensamento de quem não sabe elevar a fantasia. Não assumi esta posição como um caminho superior, apenas como uma jornada alternativa entre aquela multidão.
Continuei a pairar sem asas, ignorando o motivo de o fazer. Por vezes, encontrava outros como eu. Elevados sem saber como. Cumprimentávamo-nos com um aceno de cabeça, sem a impureza das palavras. Também eles tentavam compreender o seu voo. Juntos na vergonha da nossa própria ignorância. No entanto, reconhecíamos em nós a mesma imaginação e desassossego que nos apartava do mundo.
Naquele silêncio encontramos algum conforto, partilhado por todos nós, sonhadores, a planar sobre o oceano de gente sem rumo. Não havia explicação, somente uma certa liberdade que aparentava ter objectivo. Sem questionar mais nada olhava para baixo, abstraído pelos pensamentos alados e, numa distracção imperdoável, esqueci-me de erguer a cabeça para a imagem acima de mim.
Não sei se era sonho, ou lembrança…

terça-feira, setembro 17, 2019

O infinito do instante


Apaixonei-me subtilmente
Porque tens olhos azul de mar
Porque caminhas devagar
Porque me sorris levemente

Amei-te impulsivamente
No momento a viajar
No momento a navegar
No momento eternamente

Desejei-te para sempre
Até a tua silhueta passar
Até o pensamento divagar
Até o infinito fugir simplesmente

Senti-te imenso somente
Apenas um mistério a chamar
Apenas um enigma a cativar
Apenas um devaneio do instante

Talvez te encontre novamente
Onde um novo olhar se cruzar
Onde um novo pensamento se tocar
Onde um novo enigma me encante

terça-feira, agosto 13, 2019

Deus, Paixão e Infinito


Gosto de acreditar que a criação do Universo se deva a uma paixão. Aquele por quem tomamos como a derradeira entidade divina, gerou um pensamento enamorado e, desse momento de felicidade absoluta, originou-se tudo aquilo que conhecemos por real.
E nós, feitos à Sua imagem e semelhança, nos sentimentos e desejos, herdamos igual capacidade de paixão e, com ela, a mesma capacidade de criação. Quando a chama da atracção se exalta, nasce um Universo próprio no nosso íntimo. Com as nossas regras, cores e magnificência.
Somos como Senhores dessa versão do existir, naquilo que chamamos sonhar. Ainda que, numa tentativa ridícula de comparação, aconteça numa dimensão mais pequena quando equiparado com tudo o resto. Não importa, não é por isso que deixa de ser igualmente magnifico.
Todos já amamos e, desse modo, também já recebemos em troca a amargura do sofrimento. Infelizmente há sempre uma dualidade na alma quando o sentir é profundo e por cada felicidade alcançada há sempre o outro extremo a espreitar. Seja como for, valeu a pena toda a génese só para que conheçamos o sabor da paixão.
Gosto desta ideia romântica de que Deus criou o infinito porque se apaixonou. Talvez como um adolescente que, coberto de ingenuidade, dá o seu primeiro beijo. Quando lábios jovens se encontram tudo se transforma em beleza e nada mais existe a não ser a fantasia.
Aquela ilusão poética que habita em mim acredita nessa quimera. Afinal de contas, algum propósito deve existir na criação e essa ideia conforta-me para lá de todos os dogmas: Ele, abismado pela grandiosidade do sentimento, concebeu-nos de forma a que, também nós, pudéssemos partilhar de igual forma o êxtase de amar!