quinta-feira, dezembro 07, 2023

Anoitece mais cedo no outono


É engraçado, ou no mínimo curioso, como estas coisas funcionam. 

Com a chegada do outono e a insistência das primeiras chuvas, sentia falta de algo. Nada que fosse material, uma roupa quente pudesse aconchegar, ou uma comida mais forte pudesse satisfazer. Não. Nada disso. Era uma sensação inexplicável. Como se alguma coisa lá dentro mendigasse por atenção. 

A hora mudou, anoiteceu mais cedo. O tempo escuro convidou a sentar-se no sofá para um pouco de descanso antes do jantar. Navegou sem destino pela internet, até se deparar com uma imagem a representar todas as fases da lua. Compreendeu o significado. A sua espiritualidade estava a chamar. 

Pousou o portátil. Dirigiu-se ao quarto. Abriu a gaveta do meio, da mesa de cabeceira. Dentre os vários objetos pessoais, alcançou uma bolsinha de pano. Apesar de estar misturada com todas as outras coisas mundanas, pegou nela com reverência e acariciou-a. Tinha um fio que a fechava, libertou-o e de dentro tirou um baralho de tarot. 

Olhou demoradamente para a arte em cada carta. Para o comum mortal, tratava-se apenas um pedaço de papel com um desenho bonito. Podia ser só isso. E se fosse, mesmo assim era tanto. No entanto, nas suas mãos, eram coisas vivas. Mensagens por decifrar. Sabia que o oráculo precisava de atenção. Ou o melhor, o seu próprio espírito precisava de atenção.

Com um suspiro profundo, sentou-se na cama. A luz suave do candeeiro convidava à introspecção. Os dedos deslizavam com suavidade sobre a superfície lisa das cartas. Cada uma passava pelas suas mãos  devagar. Todos os pormenores das imagens desenhadas com grande cuidado, tinham um segredo. Pequenos detalhes que todos juntos formavam em simultâneo, um mistério e uma resposta. Arte e magia numa simbiose perfeita. 

Começou a embaralhar as cartas. Mesmo sendo um processo simples, demorou até se certificar de estarem todas bem misturadas. Finalmente, quando sentiu ser o momento certo, parou. Com os olhos fechados e a mente aberta, cortou o baralho a meio. Retirou a carta de cima da metade de baixo. Como estava virada não podia saber qual era. Ainda assim, sentia a energia dela. Vibrava, quase como se estivesse viva. 

Virou-a. Era a Roda da Fortuna. Carta número dez. Representa o movimento constante da vida, as mudanças inevitáveis, todos os ciclos da experiência humana. Não sentiu surpresa ao verificar o resultado. Das setenta e oito possíveis foi exactamente aquela a escolhida. A mesma que fala das fases pelas quais passamos de forma cíclica. 

Olhou para a carta com um sorriso nos lábios. Interpretou como uma mensagem de esperança. Parecia completamente adequada para o momento. Sentiu-se bem.

Olhou para todas as outras cartas também. Cada uma tinha o seu espaço. Refletiu sobre o significado delas. Eram um espelho da alma. Falavam sobre a sua jornada espiritual. Como se desprendeu de muitas coisas pesadas. Dos desafios enfrentados. A força conquistada para chegar até ali. Compreendeu e aceitou o convite para continuar a crescer. Agradeceu, depois, ao oráculo pela mensagem.

Juntou o baralho novamente e guardou-o na bolsinha de pano. Voltou a colocá-lo na gaveta, ainda com mais reverência. Naquele cantinho escondido, mas tão especial. Sentiu-se mais leve. A chuva lá fora parecia menos insistente e o outono menos melancólico.

Voltou para a sala, sentou-se no sofá e pegou no portátil novamente. Contudo, em vez de navegar sem rumo pela internet, decidiu escrever. Começou com frases soltas sobre a vida e os sentimentos. Depois, as palavras fluíam com facilidade, libertas na inspiração do éter. Nasciam poemas e prosas. Ideias e pensamentos. As páginas do processador de texto ficavam assim cheias pela criatividade outonal.

Quando terminou, sentiu uma satisfação aconchegante. Ouvia a chuva a cair. Sorriu. Respondeu ao apelo do seu espírito e sabia disso. Concluiu que o mundo interior também precisa de atenção.

Talvez por isso exista o outono. A noite vinha mais cedo porque é suposto o corpo abrandar. A chuva caia lá fora, pois o aconchego convidava a imaginação a sair. Era esse o pequeno grande mistério refugiado naquele momento. Tão simples e perfeito.


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