Lá dentro as luzes estão todas ligadas, como se quisessem enganar a noite. Ela observa com curiosidade. Está indecisa se deve entrar para o conforto do interior da casa ou, permanecer cá fora enquanto a penumbra cresce e o fresco lhe arrepia a pele. É como escolher entre a ilusão e a verdade. Ter, ou não, medo da fogueira onde as bruxas ardem.
Abraçou o próprio torso para sentir algum calor. Levou o pé atrás e recuou. Foi-se afastando das janelas iluminadas exageradamente. Escutava as vozes dos outros lá dentro em conversas entusiasmadas e sentiu que não era ali o seu lugar.
Virou-se para encarar o céu escurecido onde as primeiras estrelas começavam a cintilar. Sentia o chamamento. Sabia que a sua condição de mulher lhe dava acesso a sentidos não explorados pela ciência. Contudo, no seu âmago conhecia-os bem. Era capaz de ouvir algo que cantava na natureza. Sabia segredos que se mantinham ocultos. Coisas indizíveis que moldavam a sua silhueta e a sua mente feminina.
Foi caminhando pelo jardim, para longe da azáfama da casa. Olhou para o horizonte que misturava os montes à distância com a tela do firmamento. O contraste com as cores do dia parecia ocultar uma mensagem. Resolveu fazer uma prece silenciosa. Uma oração sem louvor, pedidos, ou agradecimentos. Rezar deve ser como uma viagem ao conhecimento do mundo antigo, à origem do inefável.
Tirou as sandálias veranis, para sentir melhor o chão que pisava. Soltou os cabelos e abanou-os como uma bandeira. De repente já não era ela. O frio tinha desaparecido e uma liberdade nua tomou conta de si. Sorriu, sem saber porquê, embora conhecendo o motivo. A lua cheia surgiu devagar por detrás da sombra em que a floresta se escondia.
A noite é feminina, tal como a lua, a floresta e toda a natureza que a acolhia.
Houve um silêncio profundo que parecia de reverência. Talvez só tenha durado uma pequena fracção de segundo. Contudo, ela não se importava com o tempo ou a sua duração. Ali não havia relógios e nem faziam falta. O tempo é o que se sente e deve ser medido pelo pensamento, não por uma máquina.
Alguém gritou pelo seu nome ao longe. Chamaram-na com voz de gente e perguntaram se não queria entrar. Sentiu-se importunada mas não se irritou. Os outros só conheciam o tempo que os ponteiros do relógio mostravam. Não quis explicar aquele momento só seu. Limitou-se a responder - Já vou!
Mas antes de ir demorou. Contemplou a lua mais um pouco enquanto esta subia até ao trono da noite.
O sol estava escondido, mesmo assim emprestou-lhe o seu brilho do outro lado do escuro. O universo tem esta dualidade: masculina e feminina. Contudo, faz com que ambos se encontrem em jogos de sedução. Esta verdade está presente em muitas das linhas que tecem a realidade e ela estava feliz por conhecer este segredo.
Foi caminhando sem pressa, com passos meditados para que a textura do solo se entranhasse nos seus pés descalços. Aproximou-se das janelas iluminadas. Escutou os outros que conversavam como quem dorme.
Ela também era dali: fazia parte da gente que vive no mundo, com casas, notícias, televisões, política e coisas que a sociedade tem. Não podia fugir desse propósito com que a condição humana a cingiu, portanto tinha de entrar. Colocou a mão na maçaneta e rodou.
Quando abriu a porta da casa o silêncio calou-se.
A noite tinha ficado lá fora.
2 comentários:
Amei este texto. Trouxe-me muito conforto!
jiaescreve.blogspot.com (Sou nova neste mundo dos Blogs, por isso quando tiveres tempo livre faz-me uma visita e deixa a tua opinião)
Que lindo!
Identifiquei-me bastante.
Adorei a definição do que deve ser a reza. É assim que o sinto também, essa conexão com o todo, com a natureza, com os tempos antigos, que nos leva muito além de nós mesmos.
Grata pela partilha
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