segunda-feira, novembro 02, 2020

A rotina também tem história

Hoje é um dia em que não acontece nada de especial. Em quase tudo é semelhante a todos os outros em que também nada de relevante acontece. Levanto-me da cama como sempre. É dia de trabalho e por isso saio para cumprir a minha rotina. 

Na casa do costume os cães ladram ruidosamente à minha passagem. Tento fazer-lhes festas mas eles não desistem de proteger o seu domínio com latidos agressivos. Mesmo assim cumprimento-os como se fossem gente e continuo o meu caminho. 

Do outro lado da rua dois homens aparam um um arbusto, a meio de uma conversa tão sem sentido, quanto hilariante, dada a falta de conhecimento sobre as artes da política que eles tanto criticam. As mesmas que comentavam com a mestria de quem compreende a melhor forma de governar o mundo, sendo, na ideia deles, capazes de manter o povo satisfeito em todos os seus sectores. 

O caminho é o mesmo, os rostos com quem me cruzo são iguais, as saudações repetem-se. Mudam-se as roupas, também algumas cores no cenário, mas pouco mais. O trajecto não tem nada de especial. 

No trabalho a senda é a mesma, sem outra vontade, a não ser aquela de que o dever tem de ser cumprido em troca de um salário. 

Depois volto para casa. Pelas mesmas ruas, pelos mesmos caminhos. Abrando um pouco a velocidade e assobio uma melodia qualquer para tentar criar algo de minimamente empolgante na minha vagareza, embora sem sucesso. 

Chegado ao meu lar, encontro os mesmos rostos, aqueles com quem escolhi partilhar o fado de viver. Dou-lhes todo o afecto na conversa de circunstância que acompanha os afazeres diários. 

Já quando a noite chega, surge o cansaço da labuta que, imperceptível, sem que eu tenha reparado nele, força o meu corpo a descansar. Não tarda o sono chega sem chamamento. 

Prepara-se assim a madrugada, onde dorme o homem e acorda a consciência, para que um dia banal, como este, se transforme em palavras que não o deixam cair em esquecimento.


3 comentários:

Esquilinha e as suas coisas... disse...

Há dias assim! Mas não precisam de ser todos, não é? Porque é que amanhã, não vai por outro caminho? Porque não cumprimentar os cortadores de arbustos em vez dos cães, se já sabe que para além de latir não lhe darão mais resposta nenhuma?!
Porque não sorrir para alguém desconhecido que passe?
Porque não inventar um jogo qualquer ou uma palhaçada em família para além da conversa banal de circunstância?
Acho que somos nós que fazemos os dias. E um caminho, nem que se faça mil vezes, nunca é igual, nós mudamos a cada instante, logo, nada do que vemos, vemos igual agora e no momento seguinte.
Já me alonguei, desculpe.
Noite descansada.

António Silva disse...

Gosto quando as pessoas passam por aqui e leem, reflectem e se alongam. É sinal que alguma coisa foi desencadeada pelo texto :)
Sim eu conversei com os homens, por isso achei piada a conversa. Vario várias vezes o trajecto. Já os cães, gosto de bichos, cumprimento vários durante o dia.
Este texto não é propriamente sobre mim mas o reflexo de muitas pessoas que se cruzam comigo e acabamos por nos misturar todos nestas palavras. Não gosto de me cingir a mim quando escrevo estas coisas. Por vezes os sentimentos descritos são de personagens, é como se eu fosse um actor e esta fosse a minha forma de representar.

LÍRIO SELVAGEM disse...

O pior mesmo é quando se junta todas essas rotinas diárias a uma casa vazia no regresso...
Faz-me dar valor ao Sr Joaquim do café da esquina, que me conhece tão bem ao ponto de me desaconselhar beber café porque me faz mal.
Ou à D. Maria do quiosque ao fim da rua, que já conhece as minhas preferências semanais, guarda-as religiosamente se por um motivo qualquer não passo por lá ao sábado.
Ou o senhor da banca do pão no mercado da cidade, ou a velhinha da fruta...
Todos eles fazem parte da minha vida, atenuam a solidão e fazem-me sentir especial.