sexta-feira, outubro 09, 2015

A rebeldia (O Narrador VI)


Cresces e encontras um ideal. Fantástico! Está na altura de lutar para o defender. Vestires a pele da rebeldia e entrares numa quezília contra o mundo que é preciso mudar. Vives em guerra contra aqueles que te opõem. É bom, não é? Poderes afirmar com todo o orgulho que tens uma causa a defender. Dás a cara por ela, com sorte até a vida (de forma moderada vá)! São muitos contra ti. Não faz mal. Venham todos! Quantos mais melhor. Dessa forma tornas-te o rosto do heroísmo. Uma espécie de mártir dum motivo qualquer.
Se a maioria dos teus semelhantes está contra ti, há de haver um punhado deles que te olha com admiração e fidelidade incontestável. Convém que não sejam muitos, senão o teu brilho é ofuscado por eles, aqueles que te deviam respeitar como algo superior. É assim que deve ser quando tomas as rédeas de um objectivo. Estás no trono da rebelião!
O problema é que o tempo passa. Sabes, existem relógios e calendários para o contar. Horas, dias, meses, anos… E nada muda. O mundo continua mundo. A sociedade que era suposto mudares virou a cara à tua causa e continuou igual, alheia a protestos, discursos inflamados, ou actos enlouquecidos. Os teus confiáveis seguidores aos poucos foram-te trocando por outros caminhos, ora ouvindo outros capitães, ora absorvidos pela sociedade com quem tanto pelejaram… Traidores!
Ficas somente tu. Já ninguém ouve o que tens a dizer, as reclamações que te movem, a mudança que tanto anseias. (Será que ainda a anseias?) Vais tirando umas folgas da tua amada rebeldia para conviver com os outros humanos que na realidade até são iguais a ti. A seguir acabas por querer umas férias para poder usufruir da mundanice. Isto de lutar todos os dias contra tudo e todos afinal é duro.
Depois vem o cansaço… Ter de combater constantemente cansa… Cansa muito… E cedes. Entregas-te ao conforto do mundo que outrora tanto malfadaste. Sentiste (será que sim?) o peso da derrota por aquilo que tanto desprezaste. Secretamente o sentimento foi de alívio. O peso dum ideal ignorado é demasiado grande para as tuas costas cansadas de o suportar.
Não deves ter vergonha. Nem culpar, ou sentir remorsos. Não és caso único, pelo contrário. Abdicar de uma guerra inútil em prol da segurança da banalidade é prática comum. Basta admitir que perseguimos um erro. Ninguém te vai condenar por isso. O mais certo até é que nem se lembrem dessa tua revindicação.
Existem outros para lutar por causas perdidas. Ou causas nenhumas até. Um dia serão como tu, iguais a todos os outros. Deixa, no entanto, as vestes da rebeldia no armário. Nem que seja como recordação de que um dia tiveste força e foste imbatível, pois a vida tem a sua própria forma de nos impingir as suas causas. E mesmo que a memória te seja indiferente, há que ter em atenção de que um dia, talvez, tenhas de ser novamente assim: tu, numa quezília contra o mundo!
Por agora recosta-te no sofá. Há que relaxar em frente à televisão. Está dar um programa qualquer, sobre uma coisa qualquer, parece interessante! Não vale a pena pensares quando estas coisas pensam por ti. A seguir vai dar um filme. É dos bons. Com muita acção, pancadaria, argumento empolgante e sexo! Usufrui até te fartares. Depois dorme. Amanhã vai estar um dia quente, com sorte podes ir até à praia exibir a pele ao sol. Entretenimento para iludir o tédio existe em abundância!
Não te esqueças que também tens o amor! A paixão é um dos passatempos preferidos dos humanos (como tu). Aquilo funciona como um jogo de toca e foge ou de esconde-esconde. Existem trocas de olhares, provocações, mensagens atrevidas, timidez, e outras tantas artimanhas que tornam o acto de namoriscar interessante, até ao dia em que finalmente encontras um par que te complete. Devo dizer que é um momento de felicidade extrema! Claro que isto de amar não é uma ciência exacta e por vezes dá para o torto. Mas isso é outra história…
Também há o sexo. O pecaminoso prazer da carne que leva ao delírio a maior parte das pessoas, uns mais recatados, outros mais ousados, todos com as suas fantasias e perversões. Sem querer ser desmancha-prazeres, acho que tudo isto é uma forma da raça humana garantir que tem continuidade. Afinal a espécie tem de continuar. Não é verdade? Apesar de tudo também são animais como os outros, apesar de racionais. Mas isto tudo tu já sabes não vou insistir neste tema. Pelo menos por hoje…
Calma, talvez esteja a ser um pouco radical. Tens razão. Claro que não é minha intenção perturbar-te. Pelo menos no mau sentido, claro! Já sabes que quando começo a narrar a tua vida acabo por entrar por outros caminhos, ingressando por discursos sobre moralismo, políticas ou filosofias de trazer por casa. Já me conheces. Mesmo assim importa reflectir nestas minhas palavras. Claro que não tenho como objectivo repreender-te, nem tão pouco louvar-te. São apenas descrições daquilo que és e que tanto gosto de relatar.
Sim, acho que já falei demais neste meu discurso. Vou-me até à próxima!

P.S.
Não esqueças que já foste rebelde…

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