sexta-feira, outubro 17, 2014

O Despertar (O Narrador II)


Abriste os olhos. Está escuro. A tua mente está vazia. Lentamente os primeiros pensamentos vão chegando, com eles alguma confusão momentânea. Onde estás? Que dia é hoje? Que horas são? Tens demasiada preguiça para tentar obter respostas. Durante algum tempo deixas o teu corpo relaxado debaixo dos cobertores. Aquela ausência de memórias acompanhada de inercia sabe-te bem. Paira um silêncio no ar. Há nele tanto de aconchegante, como de perturbador. Por isso, torna-se intimidante tentar sair da cama.
No entanto, uma inquietude começa a crescer no teu íntimo e surge a questão: Afinal o que aconteceu?
Acordaste.
Foi somente isso. Algures na noite algo te roubou do sono. Levas a mão ao relógio e verificas o mostrador. O teu raciocínio começa então novamente a funcionar completamente. É um dia da semana e de compromissos. Despertaste uns quantos minutos (que mais pareceram horas) antes da hora de levantar. “Estranho”, pensas tu. Não houve nada que te fizesse acordar mais cedo. Nenhum barulho. Nenhuma agitação. Nenhuma ansiedade. Nada. Excepto talvez aquele silêncio inquietante.
Um arrepio percorre o teu corpo e aconchegas-te, enquanto aguardas que os ponteiros alcancem a meta.
A noite passou rápido, não te lembras de adormecer, nem de sonhar. Foi como se te desligassem um botão e o voltassem a ligar. Mas posso garantir que sonhaste. Eu estava lá e assisti. Sou o teu narrador, lembras-te? Perguntas se foi algo importante? Não. Apenas um emaranhado de fragmentos bizarros de memórias e fantasias que andam à deriva no teu inconsciente. Nada de interessante que mereça ser recordado.
Amanhece. Pequenos raios de luz entram pelas frinchas da janela fechada. Lá fora ouvem-se os primeiros ruídos, as pessoas começam a executar as suas rotinas. O momento tinha chegado.
A bexiga cheia e os gases intestinais acumulados durante o descanso, lembram-te que agora, finalmente, é a tua vez de sair da cama e que carregas o fardo de todo o ser humano. A fragilidade da carne. Também tens os teus hábitos matinais: casa de banho, higiene, vestir, tomar o pequeno-almoço e mais umas quantas trivialidades que efectuas todas as manhãs.
A roupa que vais vestir. A tua aparência. Perder algum tempo em frente ao espelho é essencial. É importante que causes boa impressão. Dizes para ti que não te importas com que os outros pensam, mas ambos sabemos que não é bem assim. Não é verdade? Convém que alguém repare em ti, te dê um pouco de atenção. Alem disso, nunca sabes se hoje é o dia em que algo especial vai acontecer. Tens sempre aquela esperançazinha. Porque não? Pode haver uma boa surpresa ao virar da esquina. Quem sabe?
Agora que te preparas para sair, aproveito para dizer um grande BOM DIA, alto e em bom som, cheio de entusiasmo e energia! Um Bom dia completamente sincero! Dito do fundo do coração, com grande alegria por estar contigo.
Já reparaste que a maior parte das pessoas cumprimenta os outros e também pergunta: “Está tudo bem”? Quando na realidade estão-se nas tintas para a resposta. Sabes bem que é assim, não tentes argumentar que estou a dizer um exagero. Tu também o fazes… É um facto de que, no fundo, não queremos saber dos outros. Também não há motivo para dramas. O mundo é assim. Não há muito que se possa fazer em contrário, por mais que tenhamos vontade disso.
Pois… Só agora é que notaste. Apesar de teres várias pessoas à tua volta; apesar de teres alguém mais próximo em algo que descreves como “amizade; apesar, até, de existir na tua vida uma relação amorosa, sentes o nevoeiro da solidão a encobrir-te. Esse sentimento nefasto que causa tanto medo. Ficar só assusta qualquer um. Portanto, vai-se enganando esse fado com a companhia dos outros. Nada de grave. Toda a gente faz isso. À excepção de uns quantos sortudos que vivem iluminados. Podes sentir inveja desses. Não é pecado…
Não fiques aí à porta da rua sem te mexeres. Já não estás na cama de mente vazia. O dia já corre com a sua azáfama e tens coisas marcadas. Vai lá. Faz-te à vida. Dou-te uma palmadinha nas costas de motivação. És capaz. Acredito em ti.
Entretanto, vou narrando a tua história. Entre pequenas e grandes feitos. Até breve...

3 comentários:

Red Angel disse...

Reparo que os teu olhos não vêem apenas... também sentem!

Sentem a realidade que nos abraça e não apenas a aparência.

Parabéns!

Já agora, o que são os sonhos? Porque sonhamos nós constantemente, mesmo quando ao acordar tenhamos a (falsa) sensação de que dormimos sem sonhar?

António Silva disse...

Cientificamente falando, os sonhos servem para fazer uma espécie de desfragmentação no nosso cérebro para arrumar as ideias. Ou algo assim...
Poeticamente falando, os sonhos são magia ;)

Esta é a segunda crónica do narrador. Mais se seguirão :)

Mariana disse...

Gostei muito. Escusado será dizer que está repleto de verdades :)
Parabéns!

http://cronicaseintimismos.blogspot.pt